sexta-feira, 28 de março de 2025

CONTO: O ATENEU - CAP. IV - FRAGMENTO - RAUL POMPEIA - COM GABARITO

 Conto: O Ateneu cap. IV – Fragmento

            Raul Pompéia

        [...]

        Depois das horas do serão de estudo, quando se retiravam os estudantes para os dormitórios, fiquei com o Franco a trabalhar. Tive que suspender, ao fim de quatro páginas. Devorava-me o remorso como uma febre; aterrava-me a ideia do banho na manhã seguinte, os rapazes atirando-se à vingança pérfida, a água toldada de rubro. Impossível fazer mais uma linha. Deixei o companheiro e fugi para o salão dos médios.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEibM2aPu-oF7r4QY5VdwRMmlgo2wuH3V0PYANBzkeCU1Hq-yS-L2RF4NlvydMULSRMNci9TPkRmaucO4D4QUAQOfMy0AApSLTuCSDh7jFpfarIaLCM1Vt8njVE4H21hE9QPetAHzWel2KswIMJiTJ0dBVzWzr0wxGu-f_VfwvLUshw9WTGgeBG1sVBmhwM/s320/o-ateneu-.jpg


        A excitação recrudesceu; eu rolava na cama sobre um tormento de lascas cortantes. Que fazer? Denunciar o Franco de madrugada? Correr, às escuras, e abrir o escoadouro ao tanque? Prevenir aos colegas pedindo que espalhassem? A controvérsia avultava-me no crânio como uma inchação de meninges. Dar-se-ia caso que Franco, possuído de arrependimento, fosse apresentar cedinho aos inspetores a delação do próprio feito? Cheguei a tentar o engodo da consciência com a ponderação de que talvez não saltassem ao tanque muitos de uma vez, e o primeiro ferido salvaria os outros. Mas a febre vencia, com a perspectiva do sangue. Dez, vinte, trinta rapazes, à borda, gemendo, extraindo dificilmente da carne as lascas encravadas! E eu, cúmplice, que o permitira, e maior culpado, que me não cegava a razão, em suma, de justa desforra...

        Ergui-me da cama, e descalço nas tábuas frias, para ver se me acalmava o mal-estar, errei pelos salões adormecidos.

        Os colegas, tranquilos, na linha dos leitos, afundavam a face nas almofadas, palejante da anemia de um repouso sem sonhos. Alguns afetavam um esboço comovedor de sorriso ao lábio; alguns, a expressão desanimada dos falecidos, boca entreaberta, pálpebras entrecerradas, mostrando dentro a ternura embaciada da morte. De espaço a espaço, os lençóis alvos ondeavam do hausto mais forte do peito, aliviando-se depois por um desses longos suspiros da adolescência, gerados, no dormir da vigília inconsciente do coração. Os menores, mais crianças, conservavam uma das mãos ao peito, outra a pender da cama, guardando no abandono do descanso uma atitude ideal de voo. Os mais velhos, contorcidos no espasmo de aspirações precoces, vergavam a cabeça e envolviam o travesseiro num enlace de carícias. O ar de fora chegava pelas janelas abertas, fresco, temperado da exalação noturna das árvores; ouvia-se o grito compassado de um sapo, martelando os segundos, as horas, a pancadas de tanoeiro; outros e outros, mais longe. O gás, frouxamente, nas arandelas de vidro fosco, bracejando dos balões de asa de mosca, dispersava-se igual sobre as camas. doçura dispersa de um olhar de mãe.

        Que venturosa segurança naquele museu de sono! E amanhã, pobres colegas! o banho, a volta, pés ensanguentados, listrando de vestígios vermelhos o caminho!

        Voltei ao meu salão. Tirei da gaveta a imagem de Santa Rosália; beijei-a com lágrimas, pedi conselho como um filho. A inquietação não passava.

        [...].

POMPÉIA, Raul. O Ateneu. 20. ed. São Paulo, Ática, 1998. p. 61-62. (Série Bom Livro).

Fonte: Português. Série novo ensino médio. Volume único. Faraco & Moura – 1ª edição – 4ª impressão. Editora Ática – 2000. São Paulo. p. 230.

Entendendo o conto:

01 – Qual o sentimento que domina o narrador após o estudo com Franco?

      O narrador é dominado pelo remorso e pelo terror, antecipando o banho na manhã seguinte e a vingança dos colegas.

02 – Que opções o narrador considera para evitar a tragédia no banho?

      O narrador considera denunciar Franco, esvaziar o tanque ou alertar os colegas, mas nenhuma opção o tranquiliza completamente.

03 – Como o narrador descreve o sono dos colegas?

      O narrador descreve o sono dos colegas como tranquilo e vulnerável, com expressões de inocência e fragilidade.

04 – Que detalhes da descrição do dormitório contribuem para a atmosfera do fragmento?

      A descrição do silêncio, da luz fraca, dos suspiros e da brisa noturna cria uma atmosfera de calma e melancolia, contrastando com a angústia do narrador.

05 – Qual a reação do narrador diante da imagem de Santa Rosália?

      O narrador beija a imagem de Santa Rosália e pede conselho, buscando alívio para sua inquietação.

06 – Qual a importância do banho para o narrador?

      O banho representa um momento de violência iminente, que perturba profundamente o narrador e o leva a questionar sua própria culpa.

07 – Que temas o fragmento aborda?

      O fragmento aborda temas como culpa, medo, violência, inocência e a fragilidade da condição humana, explorando as complexidades da psicologia do narrador.

 

 

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