Conto: O Ateneu cap. IV – Fragmento
Raul Pompéia
[...]
Depois das horas do serão de estudo,
quando se retiravam os estudantes para os dormitórios, fiquei com o Franco a
trabalhar. Tive que suspender, ao fim de quatro páginas. Devorava-me o remorso
como uma febre; aterrava-me a ideia do banho na manhã seguinte, os rapazes
atirando-se à vingança pérfida, a água toldada de rubro. Impossível fazer mais
uma linha. Deixei o companheiro e fugi para o salão dos médios.

A excitação recrudesceu; eu rolava na
cama sobre um tormento de lascas cortantes. Que fazer? Denunciar o Franco de
madrugada? Correr, às escuras, e abrir o escoadouro ao tanque? Prevenir aos
colegas pedindo que espalhassem? A controvérsia avultava-me no crânio como uma
inchação de meninges. Dar-se-ia caso que Franco, possuído de arrependimento,
fosse apresentar cedinho aos inspetores a delação do próprio feito? Cheguei a
tentar o engodo da consciência com a ponderação de que talvez não saltassem ao
tanque muitos de uma vez, e o primeiro ferido salvaria os outros. Mas a febre
vencia, com a perspectiva do sangue. Dez, vinte, trinta rapazes, à borda,
gemendo, extraindo dificilmente da carne as lascas encravadas! E eu, cúmplice,
que o permitira, e maior culpado, que me não cegava a razão, em suma, de justa
desforra...
Ergui-me da cama, e descalço nas tábuas
frias, para ver se me acalmava o mal-estar, errei pelos salões adormecidos.
Os colegas, tranquilos, na linha dos
leitos, afundavam a face nas almofadas, palejante da anemia de um repouso sem
sonhos. Alguns afetavam um esboço comovedor de sorriso ao lábio; alguns, a
expressão desanimada dos falecidos, boca entreaberta, pálpebras entrecerradas,
mostrando dentro a ternura embaciada da morte. De espaço a espaço, os lençóis
alvos ondeavam do hausto mais forte do peito, aliviando-se depois por um desses
longos suspiros da adolescência, gerados, no dormir da vigília inconsciente do
coração. Os menores, mais crianças, conservavam uma das mãos ao peito, outra a
pender da cama, guardando no abandono do descanso uma atitude ideal de voo. Os
mais velhos, contorcidos no espasmo de aspirações precoces, vergavam a cabeça e
envolviam o travesseiro num enlace de carícias. O ar de fora chegava pelas
janelas abertas, fresco, temperado da exalação noturna das árvores; ouvia-se o
grito compassado de um sapo, martelando os segundos, as horas, a pancadas de
tanoeiro; outros e outros, mais longe. O gás, frouxamente, nas arandelas de
vidro fosco, bracejando dos balões de asa de mosca, dispersava-se igual sobre
as camas. doçura dispersa de um olhar de mãe.
Que venturosa segurança naquele museu
de sono! E amanhã, pobres colegas! o banho, a volta, pés ensanguentados,
listrando de vestígios vermelhos o caminho!
Voltei ao meu salão. Tirei da gaveta a
imagem de Santa Rosália; beijei-a com lágrimas, pedi conselho como um filho. A
inquietação não passava.
[...].
POMPÉIA, Raul. O
Ateneu. 20. ed. São Paulo, Ática, 1998. p. 61-62. (Série Bom Livro).
Fonte: Português. Série
novo ensino médio. Volume único. Faraco & Moura – 1ª edição – 4ª impressão.
Editora Ática – 2000. São Paulo. p. 230.
Entendendo o conto:
01 – Qual o sentimento que
domina o narrador após o estudo com Franco?
O narrador é dominado pelo remorso e pelo
terror, antecipando o banho na manhã seguinte e a vingança dos colegas.
02 – Que opções o narrador
considera para evitar a tragédia no banho?
O narrador
considera denunciar Franco, esvaziar o tanque ou alertar os colegas, mas
nenhuma opção o tranquiliza completamente.
03 – Como o narrador descreve
o sono dos colegas?
O narrador descreve o sono dos colegas
como tranquilo e vulnerável, com expressões de inocência e fragilidade.
04 – Que detalhes da descrição
do dormitório contribuem para a atmosfera do fragmento?
A descrição do
silêncio, da luz fraca, dos suspiros e da brisa noturna cria uma atmosfera de
calma e melancolia, contrastando com a angústia do narrador.
05 – Qual a reação do narrador
diante da imagem de Santa Rosália?
O narrador beija
a imagem de Santa Rosália e pede conselho, buscando alívio para sua
inquietação.
06 – Qual a importância do
banho para o narrador?
O banho
representa um momento de violência iminente, que perturba profundamente o
narrador e o leva a questionar sua própria culpa.
07 – Que temas o fragmento
aborda?
O fragmento aborda temas como culpa,
medo, violência, inocência e a fragilidade da condição humana, explorando as
complexidades da psicologia do narrador.
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