Romance: O mulato cap. XII – Fragmento
Aluísio Azevedo
[...]
Uma só palavra bolava à superfície dos
seus pensamentos: “Mulato”. E crescia, crescia, transformando-se em tenebrosa
nuvem, que escondia todo o seu passado. Ideia parasita, que estrangulava todas
as outras ideias.
— Mulato!

Esta só palavra explica-lhe agora todos
os mesquinhos escrúpulos, que a sociedade do Maranhão usara para com ele.
Explicava tudo: a frieza de certas famílias a quem visitara; a conversa cortada
no momento em que Raimundo se aproximava; as reticências dos que lhe falavam
sobre os seus antepassados; a reserva e a cautela dos que, em sua presença,
discutiam questões de raça e de sangue; a razão pela qual D. Amância lhe
oferecera um espelho e lhe dissera: “Ora mire-se!” a razão pela qual diante
dele chamavam de meninos os moleques da rua. Aquela simples palavra dava-lhe
tudo o que ele até aí desejara e negava-lhe tudo ao mesmo tempo, aquela palavra
maldita dissolvia as suas dúvidas, justificava o seu passado; mas retirava-lhe
a esperança de ser feliz, arrancava-lhe a pátria e a futura família; aquela
palavra dizia-lhe brutalmente: “Aqui, desgraçado, nesta miserável terra em que
nasceste, só poderás amar uma negra da tua laia! Tua mãe, lembra-te bem, foi
escrava! E tu também o foste!”
— Mas, replicava-lhe uma voz interior,
que ele mal ouvia na tempestade do seu desespero; a natureza não criou cativos!
Tu não tens a menor culpa do que fizeram os outros, e no entanto és castigado e
amaldiçoado pelos irmãos daqueles justamente que inventaram a escravidão no
Brasil!
E na brancura daquele caráter imaculado
brotou, esfervilhando logo, uma ninhada de vermes destruidores, onde vinham o
ódio, a vingança, a vergonha, o ressentimento, a inveja, a tristeza e a
maldade. E no círculo do seu nojo, implacável e extenso, entrava o seu país, e
quem este primeiro povoou, e quem então e agora o governava, e seu pai, que o
fizera nascer escravo, e sua mãe, que colaborara nesse crime. “Pois então de
nada-lhe lhe valia ter sido bem educado e instruído; de nada lhe valia ser bom
e honesto?... Pois naquela odiosa província, seus conterrâneos veriam nele,
eternamente, uma criatura desprezível, a quem repelem todos do seu seio?...” E
vinham-lhe então, nítidas à luz crua do seu desalento, as mais rasteiras
perversidades do Maranhão; as conversas de porta de botica, as pequeninas
intrigas que lhe chegavam aos ouvidos por intermédio de entes ociosos e
objetos, a que ele nunca olhara senão com desprezo. E toda essa miséria, toda
essa imundícia, que até então se lhe revelava aos bocadinhos, fazia agora uma
grande nuvem negra no seu espírito, porque, gota a gota, a tempestade se
formara. E, no meio desse vendaval, um desejo crescia, um único, o desejo de
ser amado, de formar uma família, um abrigo legítimo, onde ele se escondesse
para sempre de todos os homens.
Mas o seu desejo só pedia, só queria,
só aceitava Ana Rosa, como se o mundo inteiro houvera desaparecido de novo ao
redor daquela Eva pálida e comovida, que lhe dera a provar, pela primeira vez,
o delicioso veneno do fruto proibido.
AZEVEDO, Aluísio. O
mulato. 19. ed. São Paulo, Ática, 1999. p. 167-168. (Série Bom Livro).
Fonte: Português. Série
novo ensino médio. Volume único. Faraco & Moura – 1ª edição – 4ª impressão.
Editora Ática – 2000. São Paulo. p. 228-229.
Entendendo o romance:
01 – Qual palavra atormenta os
pensamentos de Raimundo?
A palavra que
atormenta Raimundo é "mulato". Ela representa o preconceito racial
que ele enfrenta e que obscurece sua visão de si mesmo e de seu passado.
02 – Que revelações a palavra
"mulato" traz para Raimundo?
A palavra revela
a Raimundo as razões por trás do tratamento frio e discriminatório que ele
recebe da sociedade maranhense. Ela explica a frieza das famílias, as conversas
interrompidas, as reticências sobre seu passado e a forma como as questões
raciais eram tratadas em sua presença.
03 – Que sentimentos negativos
surgem em Raimundo após a revelação?
Sentimentos de
ódio, vingança, vergonha, ressentimento, inveja, tristeza e maldade surgem em
Raimundo. Ele se sente injustiçado e amaldiçoado pela sociedade.
04 – Como Raimundo reage à
injustiça que sente?
Raimundo
questiona a injustiça de ser punido por algo que não fez, lembrando que a
natureza não criou cativos. Ele também sente raiva de seu pai e de sua mãe por
terem contribuído para sua condição.
05 – Que desejo cresce em
Raimundo em meio ao desespero?
Em meio ao
desespero, cresce em Raimundo o desejo de ser amado e de formar uma família, um
refúgio onde ele possa se esconder do preconceito.
06 – Qual o papel de Ana Rosa
nos desejos de Raimundo?
Ana Rosa
representa a possibilidade de amor e aceitação para Raimundo. Ele a vê como a
única capaz de lhe proporcionar a felicidade que ele tanto almeja.
07 – Qual a crítica social
presente no fragmento?
O fragmento
apresenta uma crítica contundente ao preconceito racial e à hipocrisia da
sociedade maranhense do século XIX. Aluísio Azevedo expõe a crueldade do
racismo e os efeitos devastadores que ele causa na vida de Raimundo.
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