domingo, 23 de março de 2025

ROMANCE: AMAR, VERBO INTRANSITIVO - FRAGMENTO - MÁRIO DE ANDRADE - COM GABARITO

 Romance: Amar, verbo intransitivo – Fragmento

                  Mário de Andrade

        [...]

        Pancadas na porta de Fräulein. Virou assustada, resguardando o peito. Abotoava a blusa:

        — Quem é?

        — Sou eu, Fräulein. Queria lhe falar.

        Abriu a porta e dona Laura entrou.

        — Queria lhe falar. Um pouco...

        — Estou às suas ordens, minha senhora.

        Esperou. Dona Laura respirava muito nervosa, não sabendo principiar.

        — É por causa do Carlos...

        — Ah... Sente-se.

        — Não vê que eu vinha lhe pedir, Fräulein, pra deixar a nossa casa. Acredite: isto me custa muito porque já estava muito acostumada com você e não faço má ideia de si, não pense! mas... Creio que já percebeu o jeito de Carlos... ele é tão criança!... Pelo seu lado, Fräulein, fico inteiramente descansada... Porém esses rapazes... Carlos...

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgv4sE61B2_J7yxt-WHy29a1XgepxRwLj3ROuUD4WtBmd2Z2HemQ2w1a2n1OX4pTsljAr0iKUImzZetccwj4Y8bQGFzwP4ACGWnEswOZT0HHszTr5SpRMWhh0Ygz26bbHa4mu5nSYl_zjPrFkcl0XfEn1Eunq4XjXSbEUVi3BHLAFK-9C01_iZBkZNRzG0/s320/51aSKRvky7L._AC_UF1000,1000_QL80_.jpg


        — Já vejo que o senhor seu marido não lhe disse o que vim fazer aqui.

        Dona Laura teve uma tontona, escancarou olhos parados:

        — Não!

        — É lamentável, minha senhora, o procedimento do senhor seu marido, evitaria esta explicação desagradável. Pra mim. Creio que pra senhora também. Mas é melhor chamar o seu marido. Ou quer que desçamos pro hol?

        Foram encontrar Sousa Costa na biblioteca. Ele tirou os olhos da carta, ergueu a caneta, vendo elas entrarem.

        — O senhor me prometeu contar a sua esposa a razão da minha presença aqui. Lamento profundamente que o não tenha feito, senhor Sousa Costa.

        Sousa Costa encafifou, desacochado por se ver colhido em falta. Riscou uma desculpa sem inteligência:

        — Queira desculpar, Fräulein. Vivo tão atribulado com os meus negócios! Demais: isso é uma coisa de tão pouca importância!... Laura, Fräulein tem o meu consentimento. Você sabe: hoje esses mocinhos... é tão perigoso! Podem cair nas mãos de alguma exploradora! A cidade... é uma invasão de aventureiras agora! Como nunca teve!. COMO NUNCA TEVE, Laura... Depois isso de principiar... é tão perigoso! Você compreende: uma pessoa especial evita muitas coisas. E viciadas! Não é só bebida não! Hoje não tem mulher-da-vida que não seja eterômana, usam morfina... E os moços imitam! Depois as doenças!... Você vive na sua casa, não sabe... é um horror! Em pouco tempo Carlos estava sifilítico e outras coisas horríveis, um perdido! É o que eu te digo, Laura, um perdido! Você compreende... meu dever é salvar o nosso filho... Por isso! Fräulein prepara o rapaz. E evitamos quem sabe? até um desastre!... UM DESASTRE!

        Repetia o “desastre” satisfeito por ter chegado ao fim da explicação.

        Passeava de canto a canto. Assim se fingem as cóleras, e os machos se impõem, enganando a própria vergonha. Dona Laura sentara numa poltrona, maravilhada. Compreendia! Porém não juro que compreendesse tudo não. Aliás isso nem convinha pra que pudesse ceder logo. Fräulein é que estava indignada. Que diabo! atos da vida não é arte expressionista, que pode ser nebulosa ou sintética. Não percebera bem a claridade latina daquela explicação. O método germanicamente dela e didática habilidade no agir, não admitiam tal fumarada de palavras desconexas. Aquelas frases sem dicionário nem gramática irritaram-na inda mais. Queria, exigia sujeito verbo e complemento. Só uma coisa julgara perceber naquele ingranzéu, e, engraçado! Justamente o que Sousa Costa pensava, mas não tivera a intenção de falar: pagavam só pra que ela se sujeitasse às primeiras fomes amorosas do rapaz.

        [...].

Mário de Andrade. Amar, verbo intransitivo. 19. ed. Belo Horizonte. Rio de Janeiro: Vila Rica Editores Reunidos, 1993. p. 75-77.

Fonte: Lições de texto. Leitura e redação. José Luiz Fiorin / Francisco Platão Savioli. Editora Ática – 4ª edição – 3ª impressão – 2001 – São Paulo. p. 203-204.

Entendendo o romance:

01 – Qual o motivo da visita de Dona Laura a Fräulein?

      Dona Laura visita Fräulein para pedir que ela deixe a casa da família, preocupada com a influência que a jovem alemã poderia ter sobre seu filho Carlos.

02 – Como Sousa Costa justifica a presença de Fräulein na casa?

      Sousa Costa alega que contratou Fräulein para "preparar" Carlos para a vida adulta, protegendo-o de "aventureiras" e dos perigos da vida na cidade, como doenças e vícios.

03 – Qual a reação de Fräulein à explicação de Sousa Costa?

      Fräulein fica indignada com a explicação de Sousa Costa, considerando-a confusa e desprovida de clareza. Ela percebe que a verdadeira intenção era que ela iniciasse sexualmente o rapaz.

04 – Como Dona Laura reage à revelação do marido?

      Dona Laura fica surpresa e atordoada com a revelação do marido, mas acaba aceitando a situação, embora não compreenda completamente as intenções de Sousa Costa.

05 – Qual a profissão de Fräulein no romance?

      Fräulein é contratada como governanta e professora de alemão para Carlos.

06 – Qual a crítica social presente no fragmento?

      O fragmento critica a hipocrisia da sociedade burguesa da época, que, sob o pretexto de proteger os jovens, explora e objetifica as mulheres.

07 – Qual o estilo literário de Mário de Andrade presente no fragmento?

      O estilo modernista de Mário de Andrade é evidente na linguagem coloquial, na ironia e na crítica social presentes no fragmento.

 

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