domingo, 13 de maio de 2018

CONTO: A CARTEIRA - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

Conto: A CARTEIRA
          Machado de Assis

        ...De repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:
        - Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.
        - É verdade, concordou Honório envergonhado.
        Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma voragem.
        - Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C. advogado e familiar da casa.
        - Agora vou, mentiu o Honório.
        A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, em que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.
        D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política.
        Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era.
        - Nada, nada.
        Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A ideia de que os dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou: emprestado, para pagar mal, e a más horas.
        A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua da Assembleia é que viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando.
        Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, - enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encostou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar-lhe; insinuação que lhe deu ânimo.
        Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinquenta e vinte; calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de pagar a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá-la.
        Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal.
        "Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar-me do dinheiro," pensou ele.
        Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira? ... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele.
        A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dois empurrões, mas ele resistiu.
        "Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer."
        Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado, e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa.
        - Nada.
        - Nada?
        - Por quê?
        - Mete a mão no bolso; não te falta nada?
        - Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. Sabes se alguém a achou?
        - Achei-a eu, disse Honório entregando-lhe.
        Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas.
        - Mas conheceste-a?
        - Não; achei os teus bilhetes de visita.
        Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.
                                                                           Machado de Assis.
Entendendo o texto:

01 – Identifique o autor do conto e, em seguida, as características do narrador
      Autor - Machado de Assis; narrador - um narrador em terceira pessoa, que tudo sabe. 

02 – Observe que, o narrador de "A carteira" apresenta várias características das personagens, em especial de Honório. Primeiro, liste as personagens deste conto. Em seguida, diga o que ficamos sabendo a respeito de Honório. 
      Personagens: principal- Honório; coadjuvantes - Gustavo, Dona Amélia; secundário - o homem à porta. 
      Ficamos sabendo, logo no quarto parágrafo, que Honório tem uma dívida vencendo no dia seguinte e não dispõe de dinheiro para pagá-la. 

03 – Qual é o incidente que move o enredo do conto? Por quê? 
      A carteira achada na rua. Ela resolvia o problema da dívida e da falta de dinheiro para pagá-la. Ficamos, então, na expectativa do desfecho da narrativa. 

04 – O motivo "carteira achada na rua" aparece em muitas narrativas. Como justificar o interesse narrativo deste motivo? 
      Dinheiro fácil / dramas de consciência. 

05 – Qual é o sentido da seguinte afirmação do narrador no quarto parágrafo? 
        "(...) mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias (...)." 
      Os valores das dívidas são sempre relativos. Dependem das circunstâncias - uma dívida de 50 reais é pequena para quem dispõe de muito dinheiro e grande para quem não dispõe de dinheiro. 

06 – O narrador nos diz que Gustavo, ao pegar a carteira, "olhou desconfiado para o amigo". E que este olhar "foi para Honório como um golpe de estilete; (...) era um triste prêmio". Com o desfecho do conto, percebemos que Honório estava interpretando a desconfiança de modo muito equivocado. Por quê? 
      Honório pensou que Gustavo desconfiava dele quando, na verdade, Gustavo queria saber se Honório tinha visto o bilhete comprometedor. 

07 – Em que espaços se dão os eventos do conto? (Note que o espaço psicológico é ingrediente importante neste conto. É nele que se dá o embate de Honório consigo mesmo para saber o que faria com seu achado.) 
      O evento principal ocorre na rua e Honório, depois de achar a carteira, perambula pelas ruas do centro do Rio de Janeiro. A cena final se passa na casa de Honório. 

08 – Quanto ao tempo, observe que o conto começa num "hoje" ("...Honório tem de pagar amanhã uma dívida..."), volta um pouco para o passado e retorna para o presente (os eventos que vão do encontro da carteira até o desfecho). Por que o narrador teve de voltar ao passado? 
      Para justificar a relevância da carteira achada para Honório. 

09 – A que se refere o narrador quando diz: "Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dois empurrões, mas ele resistiu"? 
      Honório tinha grandes dívidas (a necessidade) e ficou provocado (os empurrões) pela possibilidade de saldá-las com o dinheiro da carteira achada. Mas acabou desistindo.


46 comentários:

  1. Quais são os personagens do conto?

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    1. Que traços psicológicos de Honório o levaram a não se apropriar do dinheiro alheio e a não descobrir a traição? *

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    2. Pelo fato de Honório ter princípios. Era honesto consigo mesmo e principalmente com os outros.

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  2. Explique o espaço geográfico ou físico onde a narrativa se passa

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  3. O protagonista bateu-se com alguns dilemas. quais foram?

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  4. Respostas
    1. O conflito foi o fato dele ter achado a carteira e ter que decudir entre pagar a dívida com o argiota ou fazer o que era certo, ou seja, devolver a carteira ao dono

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  5. O que se espera de um texto cm esse titulo

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  6. Qual o assunto principal tratado por machado de assis nessestou contexto

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  7. O tempo é cronológico ou psicológico?

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    1. Acho que o tempo é psicológico por estar em conflito com as suas contas e dívidas.

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  8. O que o escritor tenta abordar sobre o convívio social?

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  9. O que é possível acontecer na história em relação a vida real???

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  10. Qual situação crucial da história

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  11. Qual era a profissão do Honório? Por que ele andava em estado de preocupação

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  12. Por que o personagem tinha medo de abrir a carteira?

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  13. Sobre a leitura "A Carteira" faz nós compreender melhor a sociedade que vivemos,Concorda? Justifique sua resposta

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  14. O texto apresenta dois problemas sérios ligados à moral e à ética: devolução de
    um objeto que não te pertence e traição. Explique como cada um deles ocorre no texto.

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  15. Qual o papel da sequência de fatos/tempo?

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  16. Qual o papel da sequência de fatos/tempo?

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  17. Qual era a maior preocupação dos personagens?

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  18. Que Espaço(s) foi/Foram descritos na narrativa?

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  19. Identifique na obra, os elementos de possíveis relações jurídicas pessoais e reais. Me ajudem nessa por favor!

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  20. O título cria expectativa sobre o tema ?sobre o quê falaremos no conto cujo título a carteira?

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  21. Quantas histórias principais aconteciam no conto ? Quais são elas

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  22. Será que os bilhetinhos foram lidos e desvendados o segredo pelo marido? O que é possível acontecer na história em relação à vida real?

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  23. Honório significa “aquele que merece honras”. Logo, qual a importância da escolha desse nome para referir-se a esse personagem?

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  24. Alguém me diz as Questões 10 11 e 12

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  25. Honório pode ser classificado como personagem plano (simples, previsível, que não se transforma) ou complexo (imprevisível, também chamado de personagem redondo, que se transforma no decorrer da história)? Justifique sua resposta.

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  26. Quais temáticas estao presente no conto

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  27. " De repende honório olhou para o chão e viu uma carteira.Abaixar-se, apanhá-la foi obra de alguns instantes. "

    Os termos destacados no período referem a:

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  28. oq foi concluído das atitudes de Honório ao longo do conto, as julgaria?

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  29. Que elementos da narrativa estão presentes na obra de Machado de Assis a carteira

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  30. Como o Realismo psicológico está presente no conto A carteira, indicado para essa avaliação.

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