Carta: Carta
a Manuel Bandeira, São Paulo, 28-III-31.
Manú, bom-dia.
Amanhã é domingo pé-de-cachimbo, e levarei sua carta, (isto é vou ainda rele-la
pra ver si a passo levar tal como está, ou não podendo contarei) pra Alcântara
com Lolita que também ficarão satisfeitos de saber que você já está mais
faqueirinho e o acidente não terá consequência nenhuma. Esse caso de você
ter medo duma possível doença comprida e chupando lentamente o que tem de
perceptível na gente, pro lado lá da morte, é mesmo um caso sério. Deve ser
danado a gente morrer com lentidão, mas em todo caso sempre me parece inda, não
mais danado, mas semvergonhamente pueril, a gente morrer e repente. Eu jamais
que imagino na morte, creio que você sabe disso. Aboli a morte do mecanismo da
minha vida e embora já esteja com meus trinta e oito anos, faço projetos pra
daqui a dez anos, quinze, como si pra mim a morte não tivesse de “vim” ... como
todos pronunciam.
A ideia da morte desfibra danadamente a atividade, dá logo vontade da gente
deitar na cama e morrer, irrita. Aboli a noção de morte pra minha vida e tenho
me dado bem regularmente com esse pragmatismo inocente. Mas levado pela sua
carta, não sei, mas acho que não me desagradava não me pôr em contato com a
morte, ver ela de perto, ter tempo pra botar os meus trabalhos do mundo em
ordem que me satisfaça e diante da infalível vencedora, regularizar pra com
Deus o que em mim sobrar de inútil pro mundo.
(ANDRADE,
Mário de. Cartas de Mário de Andrade a Manoel Bandeira.
Rio
de Janeiro: Organização Simões, 1958, pp. 269-270).
Entendendo
o texto:
01 – Embora
procure manifestar para seu amigo Manú (Manoel Bandeira) uma visão prática e
uma preocupação maior com a vida, Mário de Andrade deixa escapar certa
preocupação com a vida após a morte. Releia a carta e, a seguir, explique em
que passagem se pode verificar essa preocupação.
No final da carta, Mário de Andrade
manifesta a preocupação de “regularizar” com Deus aquilo que tiver feito “de
inútil pro mundo”. Ou seja, Mário considera como “pecados”, ou como falhas
pelas quais deverá prestar contas, toda a sua ação ou produção que não
apresente valor ou utilidade para a vida dos outros homens. Vemos confirmado,
assim, e existencialmente ampliado, o conceito que ele tinha de seu trabalho de
escritor, que encarava como um serviço ao País, à cidadania e em geral à
humanidade.
02 –
Envolvido, como declara mais de uma vez em suas cartas, na criação de um
discurso literário próprio, culto, mas com aproveitamentos de recursos e
soluções da linguagem coloquial, Mário de Andrade apresenta nos textos de suas
cartas soluções de ortografia, pontuação, variações coloquial de vocábulos e de
regência que podem surpreender um leitor desavisado. Escreve, por exemplo, no
último período do trecho citado, ver ela de perto, tal como se usa
coloquialmente. Aponte a forma que teria essa passagem em discurso formal,
culto.
Reescrita conforme as normas a linguagem
escrita culta, ver ela de perto se transforma em vê-la de perto.
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