Conto: As luzes do carrossel – Fragmento
[...]
-- E' uma beleza, — disse Pedro Bala
olhando o velho carrossel armado. E João Grande abria os olhos para ver melhor.
Penduradas estavam as lâmpadas azuis, verdes, amarelas, vermelhas.
É velho e desbotado o carrossel de
Nhozinho França. Mas tem a sua beleza. Talvez esteja nas lâmpadas, ou na música
da pianola (velhas valsas de perdido tempo) ou talvez nos ginetes de pau. Entre
eles tem um pato que é para sentar dentro os mais pequenos. Tem a sua beleza,
sim, porque a opinião unanime dos Capitães da Areia é que ele é maravilhoso.
Que importa que seja velho, roto e de cores apagadas se agrada ás crianças?
Foi uma surpresa quase incrível quando
naquela noite o Sem-Pernas chegou no trapiche dizendo que ele e Volta Seca iam
trabalhar uns dias num carrossel. Muitos não acreditaram, pensaram que fosse
mais uma pilhéria do Sem-Pernas. Então iam perguntar a Volta Seca que, como
sempre, estava metido no seu canto sem falar, examinando um revólver que
furtara numa casa de armas. Volta Seca fazia que sim com a cabeça e por vezes
dizia:
— Lampeão já rodou nele. Lampeão é meu
padrim...
O Sem-Pernas convidou a todos para irem
ver o carrossel na outra noite quando o acabariam de armar. E saiu para
encontrar Nhozinho França. Naquele momento todos os pequenos corações que
pulsavam no trapiche invejaram a suprema felicidade do Sem-Pernas. Até mesmo
Pirulito que tinha quadros de santos na sua parede, até mesmo João Grande que
nesta noite iria com o Querido de Deus ao candomblé de Procópio, no Matatú, até
mesmo o Professor que lia livros, e quem sabe se também Pedro Bala. que nunca
inveja nenhum porque era o chefe de todos? Todos o invejaram, sim. Como
invejaram a Volta Seca que no seu canto, o cabelo mestiço e ralo despenteado,
os olhos apertados e a boca rasgada naquele ríctus de raiva apontava o revolver
ora para um dos meninos, ora para um rato que passava, ora para as estrelas que
eram muitas no céu.
Na outra noite foram todos com o Sem-Pernas
e Volta Seca (estes tinham passado o dia fora, ajudando Nhozinho a armar o
carrossel) ver o carrossel armado. E estavam parados diante dele extasiados de
beleza, as bocas abertas de admiração. O Sem-Pernas mostrava tudo. Volta Seca
levava um por um para mostrar o cavalo que tinha sido cavalgado por seu
padrinho Virgulino Ferreira Lampião. Eram quase cem crianças olhando o velho
carrossel de Nhozinho França que a estas horas estava encornado num pifão
tremendo na "Porta do Mar".
O Sem-Pernas mostrou a máquina (um
pequeno motor que falhava muito) com um orgulho de proprietário. Volta Seca não
se desprendia do cavalo onde rodara Lampião. O Sem-Pernas estava muito
cuidadoso do carrossel e não deixava que eles o tocassem, que bulissem em nada.
Foi quando o Professor perguntou:
— Tu já sabe mover com as maquinas?
— Amanhã é que vou saber..., — disse o
Sem-Pernas com um certo desgosto. — Amanhã seu Nhozinho vai me ensinar.
— Então amanhã quando acabar a função tu
pode botar ele pra rodar só com a gente. Tu bota as coisas pra andar, a gente
se aboleta.
Pedro Bala apoiou a ideia com
entusiasmo. Os outros esperavam a resposta do Sem-Pernas ansiosos. O Sem Pernas
disse que sim e então muitos bateram palmas, outros gritaram. Foi quando Volta
Seca deixou o cavalo onde montara Lampião e veio para eles:
— Quer ver uma coisa bonita?
Todos queriam. O sertanejo trepou no
carrossel, deu corda na pianola e começou a música de uma valsa antiga. O rosto
sombrio de Volta Seca se abria num sorriso. Espiava a pianola, espiava os
meninos envoltos em alegria. Escutavam religiosamente aquela música que saia do
bojo do carrossel na magia da noite da cidade da Bahia só para os ouvidos
aventureiros e pobres dos Capitães da Areia. Todos estavam silenciosos. Um
operário que vinha pela rua vendo a aglomeração de meninos na praça veio para o
lado deles. E ficou também parado escutando a velha música. Então a luz da lua
se estendeu sobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou
de todo manso (talvez que Iemanjá tivesse vindo também ouvir a música) e a
cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os
Capitães da Areia. Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E
amaram-se uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho
e sem conforto e agora tinham o carinho e conforto da música. Volta Seca não
pensava com certeza em Lampião neste momento. Pedro Bala não pensava em ser um
dia o chefe de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas em se jogar no mar
onde os sonhos são todos belos. Porque a música saia do bojo do velho carrossel
só para eles e para o operário que parará. E era uma valsa velha e triste, já
esquecida por todos os homens da cidade. [...].
Capitães da areia. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 66-68.
Fonte: Livro –
Português: Linguagens, 3 / William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães,
11. Ed. – Ensino médio. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 167-170.
Entendendo o conto:
01
– Qual o significado do carrossel para os Capitães da Areia?
O carrossel
representa um escape da dura realidade das ruas para os Capitães da Areia. É um
símbolo de alegria, de infância, de um mundo mágico e distante da miséria em
que vivem. A beleza das luzes, a música da pianola e a sensação de liberdade
proporcionada pelo movimento do carrossel criam um momento de pura felicidade
para essas crianças.
02
– Qual o papel de Volta Seca na história e qual sua relação com o carrossel?
Volta Seca é um
personagem complexo e enigmático. Ele representa a figura do bandido, mas
também demonstra um lado mais humano ao se conectar com a música e com a
alegria das crianças. Sua relação com o carrossel, especialmente com o cavalo
que Lampião teria montado, simboliza sua busca por identidade e pertencimento a
um grupo.
03
– Como a música da pianola influencia os Capitães da Areia?
A música da
pianola exerce um poder transformador sobre os Capitães da Areia. Ela cria uma
atmosfera mágica e une as crianças em um momento de profunda emoção. A música
as transporta para um outro mundo, onde os problemas e as dificuldades da vida
nas ruas são momentaneamente esquecidos.
04
– Qual o papel do Professor na história?
O Professor
representa a figura do intelectual e do líder entre os Capitães da Areia. Ele
busca conhecimento e cultura, e sua presença demonstra a importância da
educação mesmo em condições adversas. O Professor também demonstra uma
capacidade de organização e liderança ao propor que o Sem-Pernas coloque o
carrossel em movimento para todos.
05
– Qual a importância do espaço da cidade na narrativa?
A cidade é um
personagem fundamental na história. A Bahia, com suas ruas, praças e o mar,
serve como pano de fundo para a vida dos Capitães da Areia. O contraste entre a
beleza da cidade e a miséria das crianças cria uma atmosfera de tensão e
intensifica o impacto da história.
06
– Qual a mensagem principal do fragmento?
O fragmento
transmite uma mensagem de esperança e resiliência. Apesar das dificuldades, as
crianças encontram momentos de alegria e solidariedade. A beleza do carrossel e
a força da música demonstram que mesmo em meio à adversidade, é possível
encontrar momentos de felicidade e construir laços de amizade.
07
– Como a obra de Jorge Amado contribui para a compreensão da realidade social
brasileira?
Jorge Amado,
através de suas obras, como "Capitães da Areia", retrata a realidade
social brasileira de forma realista e crítica. Ele denuncia as desigualdades
sociais, a pobreza e a exploração, ao mesmo tempo em que celebra a força do
povo brasileiro e sua capacidade de resistir e superar as adversidades. A obra
de Amado contribui para a construção de uma memória coletiva e para a reflexão
sobre os desafios da sociedade brasileira.