terça-feira, 4 de agosto de 2020

CONTO: AS MARGENS DA ALEGRIA - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM GABARITO

Conto: As margens da alegria

João Guimarães Rosa

        Esta é a estória.

        Ia um menino, com os tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda com o escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos. A mãe e o pai vinham trazê-lo ao aeroporto. A tia e o tio tomavam conta dele, justínhamente. Sorria-se, saudava-se, todos se ouviam e falavam. O avião era da companhia, especial, de quatro lugares. Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele. O voo ia ser pouco mais de duas horas. O menino fremia no acorçoo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes ralar numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago, de proteção, e logo novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se — certo como o ato de respirar — o de fugir para o espaço em branco. O menino. E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da consciência das necessidades. Davam-lhe balas, chicles, à escolha. Solicito de bem-humorado, o tio ensinava-lhe como esta reclinável o assento bastando a gente premer manivela. Seu lugar era o da janelinha, para o amável mundo.

        Entregavam-lhe revistas, de folhear, quantas quisesse, até um mapa, nele mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde. O menino deixava-as, fartamente, sobre os joelhos, e espiava: as nuvens de amontoada amabilidade, o azul de só ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde; e, além, baixa, a montanha. Se homens, meninos, cavalos e bois — assim insetos? Voavam supremamente. O menino, agora, vivia; sua alegria despedindo todos os raios. Sentava-se, inteiro, dentro do macio rumor do avião: o bom brinquedo trabalhoso.

        Ainda nem notara que, de fato, teria vontade de comer, quando a tia já lhe oferecia sanduíches. E prometia-lhe o tio as muitas coisas que ia brincar e ver, e fazer e passear, tanto que chegassem. O menino tinha tudo de uma vez, e nada, ante a mente. A luz e a longa-longa-longa nuvem.

        Chegavam.

II

        Enquanto mal vacilava a manhã.

        A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão: a mágica monotonia, os diluídos ares. O campo de pouso ficava a curta distância da casa — de madeira, sobre estações, quase penetrando na mata. O menino via, vislumbrava.

        Respirava muito. Ele queria poder ver ainda mais vívido — as novas tantas coisas — o que para os seus olhos se pronunciava. A morada era pequena, passava-se logo à cozinha, e ao que não era bem quintal, antes breve clareira, das árvores que não podem entrar dentro de casa. Altas, cipós e orquideazinhas amarelas delas se suspendiam. Dali, podiam sair índios, a onça, leão, lobos, caçadores?

        Só sons. Um — e outros pássaros — com cantos compridos. Isso foi o que abriu seu coração. Aqueles passarinhos bebiam cachaça?

        Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a casa e as árvores da mata. O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão brusco, rijo se proclamara.

        Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto — o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonltriante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruzlou outro gluglo. O menino riu, com todo o coração. Mas só bis-viu. Já o chamavam, para o passeio.

III

        Iam de jipe, iam aonde ia ser um sítio do Ipê. O menino repetia-se em íntimo o nome de cada coisa.

        A poeira, alvissareira. A malva-do-campo, os lentiscos. O velame-branco, de pelúcia. A cobra-verde, atravessando a estrada. A arnica: em candelabros pálidos. A aparição angélica dos papagaios.

        As pitangas e seu pingar. O veado campeiro: o rabo branco. As flores em pompa arroxeadas da canela-de-ema. O que o tio falava: que ali havia “imundície de perdizes”. A tropa de seriemas, além, fugindo, em fila, índio-a-índio. O par de garças. Essa paisagem de muita largura, que o grande sol alagava.

        O buriti, à beira do corguínho, onde, por um momento, atolaram. Todas as coisas, surgidas do opaco. Sustentava-se delas sua incessante alegria, sob espécie sonhosa, bebida, em novos aumentos de amor. E em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos já armados. Tudo, para a seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e desconhecido. Ele estava nos ares. Pensava no peru, quando voltavam. Só um pouco, para não gastar fora de hora o quente daquela lembrança, do mais importante, que estava guardado para ele, no terreirínho das árvores bravas. Só pudera tê-lo um instante, ligeiro, grande, demoroso. Haveria um, assim, em cada casa, e de pessoa?

        Tinham fome, servido o almoço, tomava-se cerveja. O tio, a tia, os engenheiros. Da sala, não se escutava o galhardo ralhar dele, seu grugulejo? Esta grande cidade ia ser a mais levantada no mundo.

        Ele abria leque, impante, explodido, se eunava… Mal comeu dos doces, a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o perfume em açúcar e carne de flor. Saiu, sôfrego de o rever.

        Não viu: imediatamente. A mata é que era tão feia de altura. E — onde? Só umas penas, restos, no chão. — “Uê se matou. Amanhã não é o dia-de-anos do doutor?”

        Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podiam? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru aquele. O peru-seu desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um minuto, o menino recebia em si um miligrama de morte.

        Já o buscavam: — “Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago.

IV

        Cerrava-se, grave, num cansaço e numa renúncia à curiosidade, para não passear com o pensamento.

        Ia. Teria vergonha de falar do peru. Talvez não devesse, não fosse direito ter por causa dele aquele doer, que põe e punge, de dó, desgosto e desengano. Mas, matarem-no, também, parecia-lhe obscuramente algum erro. Sentia-se sempre mais cansado. Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circuntristeza: o um horizonte, homens no trabalho de terraplenagem, os caminhões de cascalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o velame-do-campo apenas uma planta desbotada, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira. Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia. Abaixava a cabecinha.

        Ali fabricava-se o grande chão do aeroporto — transitavam no extenso as compressoras, caçambas, cilindros, o carneiro socando com seus dentes de pilões, as betumadoras.

        E como haviam cortado lá o mato? — a tia perguntou.

        Mostraram-lhe a derrubadora, que havia também: com à frente uma lâmina espessa, limpa-trilhos, à espécie de machado. Queria ver? Indicou-se uma árvore: simples, sem nem notável aspecto, à orla da área matagal. O homenzinho tratorista tinha um toco de cigarro na boca.

        A coisa pôs-se em movimento.

        Reta, até que devagar. A árvore, de poucos galhos no alto, fresca, de casca clara…, e foi só o chofre: uh… sobre o instante ela para lá se caiu, toda, toda.

        Trapreara tão bela. Sem nem se poder apanhar com os olhos o acertamento — o inaudito choque — o pulso da pancada. O menino fez ascas.

        Olhou o céu — atônito de azul. Ele tremia. A árvore, que morrera tanto. A limpa esguiez do tronco e o marulho imediato e final de seus ramos — da parte de nada.

        Guardou dentro da pedra.

V

        De volta, não queria sair mais ao terreirinho, lá era uma saudade abandonada, um incerto remorso.

        Nem ele sabia bem. Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica. Mas foi, depois do jantar. E — a nem espetaculosa surpresa — viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o grugulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro. Sua chegada e presença, em todo o caso, um pouco consolavam.

        Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era já o vir da noite.

        Porém, o subir da noitinha é sempre e sofrido assim, em toda a parte. O silêncio saía de seus guardados. O menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma.

        Mas o peru se adiantava até a beira da mata. Ali adivinhara o quê? Mal dava para se ver, no escurecendo. E era a cabeça degolada do outro, atirada ao monturo. O menino se doía e se entusiasmava.

        Mas: não. Não por simpatia companheira e sentida o peru até ali viera, certo, atraído. Movia-o um ódio. Pegava de bicar, feroz, aquela outra cabeça. O menino não entendia. A mata, as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo.

        Trevava.

        Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! — tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a alegria.

João Guimarães Rosa, no livro “Primeiras estórias”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

Entendendo o conto:

01 – O título “As margens da alegria” constitui uma chave de interpretação: se o leitor identifica quais são as margens da alegria, em relação ao protagonista menino, estabelece o eixo que sustenta e estrutura o conto.

        Pela leitura global do texto, pode-se dizer que, para o menino, as margens da alegria se definem pelos seguintes fatores:

a)   Encantamento com a luz e medo perante a escuridão.

b)   Deslumbramento com a beleza e dor frente à morte.

c)   Curiosidade da criança e descrença do homem.

d)   Construção da cidade e destruição das árvores.

02 – Esta é a estória.

        Ao escolher a frase acima para iniciar seu texto, o autor promove o seguinte efeito de sentido junto ao leitor.

a)   Ficcionalidade.

b)   Realidade.

c)   Diacronia.

d)   Ação.

03 – O conto, publicado em 1962, refere-se à construção de uma cidade cujo nome não é mencionado. Trechos da narrativa permitem supor que se trata de Brasília, fundada em 1960. O trecho do conto que torna mais provável essa suposição é:

a)   Ia um menino, com os tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade.

b)   A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão.

c)   Esta grande cidade ia ser a mais levantada do mundo.

d)   “Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago...”.

04 – Os episódios que envolvem os dois perus são fundamentais para o menino e seu conhecimento de mundo.

        No que diz respeito à violência, esses episódios indicam a seguinte percepção do menino:

a)   Nem os homens nem os animais são violentos.

b)   Os homens são violentos sem motivo aparente.

c)   Tanto os homens quanto os animais são violentos.

d)   Os animais são violentos por motivo de sobrevivência.

05 – Guimarães Rosa é conhecido por seus neologismos, isto é, pelas palavras que criava. O trecho que contém um neologismo se encontra em:

a)   Era uma viagem inventada no feliz; para eles, produzia-se em caso de sonho.

b)   E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia.

c)   Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circuntristeza.

d)   O que o Tio falava: que ali havia “imundície de perdizes”.

06 – Quem é a personagem principal?

      A personagem é o Menino e, assim como ele, as outras personagens são apenas identificadas pelo grau de parentesco.

07 – Que tipo de narrador traz o conto?

      O conto é narrado em terceira pessoa.

08 – Em que tom o conto é narrado?

      Em um tom lírico reflexivo.

09 – Que fatos provocaram o desenrolar dos acontecimentos descritos no texto?

      A primeira viagem de um menino, a descoberta do mundo: a crueldade representada pela morte do peru e a beleza e a alegria representadas pelo vagalume.

10 – De que forma o autor se identifica profundamente com o protagonista?

      Como se ele espelhasse sua própria trajetória, sua infância, nessas delicadas passagens, em seus estados de alma, nos dolorosos conflitos, nas fascinantes descobertas.

11 – O clímax de tanta felicidade após a viagem se dá por qual motivo?

      Quando o menino encontra um peru majestoso.

12 – Por que durou pouco tempo a felicidade do menino por ter encontrado um peru?

      O menino fica sabendo que a ave havia sido morta para o aniversário do Tio.

13 – A luz do vagalume em meio a escuridão da floresta simboliza o quê?

      Simboliza a esperança que se deve ter após a queda do Paraíso, após o mergulho nas imperfeições da condição humana.

     

 

 


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