sábado, 22 de agosto de 2020

CONTO: DE MUITO PROCURAR - MARINA COLASANTI - COM GABARITO

 Conto: DE MUITO PROCURAR

                    Marina Colasanti

        Aquele homem caminhava sempre de cabeça baixa. Por tristeza, não. Por atenção. Era um homem à procura. À procura de tudo o que os outros deixassem cair inadvertidamente, uma moeda, uma conta de colar, um botão de madrepérola, uma chave, a fivela de um sapato, um brinco frouxo, um anel largo demais.

        Recolhia, e ia pondo nos bolsos. Tão fundos e pesados, que pareciam ancorá-lo à terra. Tão inchados, que davam contornos de gordo à sua magra silhueta.

        Silencioso e discreto, sem nunca encarar quem quer que fosse, os olhos sempre voltados para o chão, o homem passava pelas ruas despercebido, como se invisível. Cruzasse duas ou três vezes diante da padaria, não se lembraria o padeiro de tê-lo visto, nem lhe endereçaria a palavra. Sequer ladravam os cães, quando se aproximava das casas.

        Mas aquele homem que não era, via longe. Entre as pedras do calçamento, as rodas das carroças, os cascos dos cavalos e os pés das pessoas que passavam indiferentes, ele era capaz de catar dois elos de uma correntinha partida, sorrindo secreto como se tivesse colhido uma fruta.

        À noite, no cômodo que era toda sua moradia, revirava os bolsos sobre a mesa e, debruçado sobre seu tesouro espalhado, colhia com a ponta dos dedos uma ou outra mínima coisa, para que à luz da vela ganhasse brilho e vida. Com isso, fazia-se companhia. E a cabeça só se punha para trás quando, afinal, a deitava no travesseiro.

        Estava justamente deitando-se, na noite em que bateram à porta. Acendeu a vela. Era um moço.

        Teria por acaso encontrado a sua chave? Perguntou. Morava sozinho, não podia voltar para casa sem ela.

        Eu... Esquivou-se o homem. O senhor, sim, insistiu o moço acrescentando que ele próprio já havia vasculhado as ruas inutilmente.

        Mas quem disse... resmungou o homem, segurando a porta com o pé para impedir a entrada do outro.

        Foi a velha da esquina que se faz de cega, insistiu o jovem sem empurrar, diz que o senhor enxerga por dois.

        O homem abriu a porta.

        Entraram. Chaves havia muitas sobre a mesa. Mas não era nenhuma daquelas. O homem então meteu as mãos nos bolsos, remexeu, tirou uma pedrinha vermelha, um prego, três chaves. Eram parecidas, o moço levou as três, devolveria as duas que não fossem suas.

        Passados dias bateram à porta. O homem abriu, pensando que fosse o moço. Era uma senhora.

        Um moço me disse... Começou ela. Havia perdido o botão de prata da gola e o moço lhe havia garantido que o homem saberia encontrá-lo. Devolveu as duas chaves do outro. Saiu levando seu botão na palma da mão.

        Bateram à porta várias vezes nos dias que se seguiram. Pouco a pouco espalhava-se a fama do homem.

        Pouco a pouco esvaziava-se a mesa dos seus haveres.

        Soprava um vento quente, giravam folhas no ar, naquele fim de tarde, nem bem outono, em que a mulher veio. Não bateu à porta, encontrou-a aberta. Na soleira, o homem rastreava as juntas dos paralelepípedos. Seu olhar esbarrou na ponta delicada do sapato, na barra da saia. E manteve-se baixo.

        Perdi o juízo, murmurou ela com voz abafada, por favor, me ajude.

        Assim, pela primeira vez, o homem passou a procurar alguma coisa que não sabia como fosse. E para reconhecê-la, caso desse com ela, levava consigo a mulher.

        Saíam com a primeira luz. Ele trancando a porta, ela já a esperá-lo na rua. E sem levantar a cabeça ─ não fosse passar inadvertidamente pelo juízo perdido ─ o homem começava a percorrer rua após rua.

        Mas a mulher não estava afeita a abaixar a cabeça. E andando, o homem percebia de repente que os passos dela já não batiam ao seu lado, que seu som se afastava em outra direção. Então parava, e sem erguer o olhar, deixava-se guiar pelo taque-taque dos saltos, até encontrar à sua frente a ponta delicada dos sapatos e recomeçar, junto deles, a busca.

COLASANTI. Marina. Histórias de um viajante. São Paulo: Global, 2005

Entendendo a conto:

01 – O homem, personagem principal do texto, é descrito ao longo do conto. Como ele é?

      Era magro, taciturno, calado e solitário.

02 – A que se referem os adjetivos “fundos e pesados” e “inchados”?

      Referem-se aos bolsos da calça daquele homem.

03 – No trecho: “Mas aquele homem que não era, via longe.” (4.º parágrafo), a que característica do homem o narrador se refere com a expressão em destaque:

      Ao fato de ele andar de cabeça baixa, passava pelos lugares e pelas pessoas desapercebido, por isso o termo “que não era”.

04 – Escreva, de outra forma, a frase “Com isso, fazia-se companhia”, no quinto parágrafo, substituindo o SE por aquilo a que ele se refere:

      Com isso, fazia o seu tesouro de companhia.     

05 – Repare que há um diálogo no trecho que vai do oitavo ao décimo parágrafo. Escreva-o, usando a pontuação característica de um diálogo:

      “-- Eu... Esquivou-se o homem.

       -- O senhor, sim, insistiu o moço acrescentando que ele próprio já havia vasculhado as ruas inutilmente.

        -- Mas quem disse... resmungou o homem, segurando a porta com o pé para impedir a entrada do outro.

        -- Foi a velha da esquina que se faz de cega, insistiu o jovem sem empurrar, diz que o senhor enxerga por dois.”     

06 – O que significam as reticências nesse trecho?

      Foram usadas para indicar a suspensão ou interrupção de uma ideia ou pensamento.

07 – A quem se refere a palavra destacada em: “Devolveu as duas chaves do outro”?

      O outro aqui se refere ao rapaz que havia perdido a chave de casa, e que levou três chaves para ver qual serviria, e então a mulher devolveu as outras duas.

08 – O que significa o termo “seus haveres”? (16.º parágrafo)?

      Refere-se aos seus achados e perdidos.

09 – A chegada da mulher provocou inicialmente duas mudanças na vida do homem. Quais?

      Ele passou a procurar alguma coisa que não sabia como fosse e o homem também acabou perdendo o juízo.

10 – O que significa a expressão “afeita a abaixar a cabeça”, no último parágrafo?

      Significa que não estava disposta a abaixar a cabeça; andava altiva.

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