segunda-feira, 17 de agosto de 2020

CRÔNICA: O GAVIÃO - RUBEM BRAGA - COM GABARITO

 Crônica: O gavião

               Rubem Braga

      Gente olhando para o céu: não é mais disco voador.

        Disco voador perdeu o cartaz com tanto satélite beirando o sol e a lua. Olhamos todos para o céu em busca de algo mais sensacional e comovente – o gavião malvado, que mata pombas.

        O centro da cidade do Rio de Janeiro retorna assim à contemplação de um drama bem antigo, e há o partido das pombas e o partido do gavião. Os pombistas ou pombeiros (qualquer palavra é melhor que “columbófilo”) querem matar o gavião. Os amigos deste dizem que ele não é malvado tal; na verdade come a sua pombinha com a mesma inocência com que a pomba come seu grão de milho.

        Não tomarei partido; admiro a túrgida inocência das pombas e também o lance magnífico em que o gavião se despenca sobre uma delas. Comer pombas é, como diria Saint-Exupéry, “a verdade do gavião”, mas matar um gavião no ar com um belo tiro pode também ser a verdade do caçador.

        A verdade é que não posso mais falar de aves: dei meus passarinhos. No fim eram apenas um casal de canários e um corrupião. Faço muitas viagens curtas e achei que a empregada não cuidava deles bastante e bem na minha ausência; mesmo que os cuidasse não lhes fazia companhia, pois mora longe. E o prazer de minhas pequenas viagens era estragado com a lembrança do corrupião tristemente trancado em uma sala o dia inteiro, sem ter com quem conversar, ele que é tão animado e tagarela. Sinto saudades deles (da canarinha; na verdade, não: era sem graça, e andava doente) e sem eles me sinto mais solteiro. Mas se, por exemplo, desaba uma chuvarada súbita, ainda me assusto pensando em tirar os bichos da varanda em que ficam nas noites quentes; quando me lembro que não estão mais comigo, que não devo mais ter esse susto e essa aflição, então me vem um certo alívio. Sou mais só, mas também mais livre.

        Que o gavião mate a pomba e o homem mate alegremente o gavião; ao homem, se não houver outro bicho que o mate, pode lhe suceder que ele encontre seu gavião em outro homem. A vida é rapina. Perdi os cantos do meu canário e os assovios de meu sofrer; meu coração está mais triste, mas mais leve também.

(Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana, 1999)

Entendendo a crônica:

01 – O termo gavião, destacado em sua última ocorrência no texto – ... pode lhe suceder que ele encontre seu gavião em outro homem. –, é empregado com sentido:

a)   Próprio, equivalendo a inspiração.

b)   Próprio, equivalendo a conquistador.

c)   Figurado, equivalendo a ave de rapina.

d)   Figurado, equivalendo a alimento.

e)   Figurado, equivalendo a predador.

02 – O fato de o gavião matar a pomba é visto, pelo autor, como um evento:

a)   Mórbido, o qual denuncia a natureza cruel dos seres vivos.

b)   Espetacular, pois é algo raro de se encontrar na natureza.

c)   Irrelevante, uma vez que não interfere no cotidiano da cidade.

d)   Natural, que não é essencialmente positivo nem negativo.

e)   Entediante, que não justifica alguma reflexão filosófica.

 

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