sábado, 29 de agosto de 2020

BILHETE: UMA HISTÓRIA DIFERENTE - BEATRIZ C. COTRIM - COM GABARITO

 BILHETE: Uma história diferente


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 Beatriz C. Cotrim

        Assim Ângela soubera que Luís queria conversar sobre algo com ela: ao chegar em casa, logo após seu último encontro com ele, achara dois bilhetes 

        Numa folha azul, tinta verde, letra de fôrma:

ESTUPEFATO.

COMO DESCREVER?

NÃO É PAISAGEM, NÃO É UMA VISÃO.

MEU CORPO ESTÁ NO MEIO E O QUE ACONTECE SÃO SENSAÇÕES FORTES, DE EXPANSÃO.

COMO GRITOS PLENOS, VIVOS E NÃO PALAVRAS, MOVIMENTOS, E NÃO COISAS VISTAS.

UMA GRANDE, VASTA SENSAÇÃO DE DENTRO DE MIM.

O MUNDO SE ALARGOU.

        Papel branco, folha inteira, a caligrafia rabiscada do Luís:

Ângela,

        Queria contar sobre mim e pensei que algumas coisas têm que ser logo ditas. Por mim, que preciso saber que no amor é possível dividir algum peso, é possível se ajudar.

        A gente conversa, quero muito isso.

        Quero me abrir.

                           Beijos,

                                                Luís.

        A primeira folha – a azul – estava amassada e manchada, parecia meio velha. A letra era trêmula. Não parecia do Luís.

        A segunda folha, sim, parecia com o Luís que ela conhecia.

        ... Mas o que eram aqueles “gritos”, aqueles “uivos” e o mundo que “se alargou”? De onde viriam essas sensações descritas na folha azul?

        Ângela desejava a conversa e sentia medo...

 

Ângela conhecendo Luís: nova experiência e muitas diferenças

        Ângela andava distraída. Andava distraída pensando no Luís. Bom, isso já fazia algum tempo, mas agora estava diferente: queria entende-lo melhor. Talvez por isso tivesse se apaixonado por ele. Luís tinha uma complexidade intrigante! Os outros garotos eram de leitura direta, reta, uma. Podia se referir a eles com um ou dois adjetivos. Luís, não. Você não sabia tudo sobre ele; quando participava de algo, trazia uma combinação surpreendente, diferente dos outros.

        Ele lhe dava a impressão de uma riqueza que a convidava a se aproximar...

        Daquela vez do trabalho de História, por exemplo, quando tiveram de preparar um seminário sobre a navegação e as trocas econômicas após a descoberta do Novo Mundo, e ele viera com aquelas histórias de piratas...

        Virou o seminário de cabeça para baixo, deixou todo mundo interessado com as histórias que contou no seu tom irônico.

        O período histórico adquiriu uma qualidade aguda que não havia antes e todo mundo ficou interessado naquele assunto tão reprisado.

        Até o professor mudou – teve que mudar – de trilhos para discutir as conclusões do seminário!

        ... Ou então daquela vez que entrou gritando na escola, no meio do intervalo, sem dar explicação e nem se importando por chegar no meio do período, tendo faltado às primeiras aulas.

        Gritava que todos estavam impassíveis, enquanto a vida corria lá fora. Que o mundo acontecia enquanto eles seguiam indo para a escola... Que havia as guerras, perseguições raciais. Que as crianças continuavam morrendo na África. Que o nordeste do Brasil era a África. E eles indo para as aulas. Depois, ficou quieto. Alguns foram falar com ele e – lógico! – foi parar na diretoria.

        Tinha se apaixonado por essas e outras, como a extraordinária delicadeza que ele sempre tinha para “chegar nela”. Talvez a maneira cuidada, sutil, fosse uma composição de insegurança e compreensão: insegurança consigo e compreensão do sentimento dos outros.

        Bom, mas tudo isso não tinha grande importância. Agora.

        Ângela tinha ficado tão aquecida por dentro quando ele lhe dera aquelas folhas! Sentiu que a olhava como uma pessoa realmente íntima, próxima, de confiança. Que queria uma intimidade maior com ela, ao pedir para conversar.

        Luís era o namorado mais importante que tivera. É claro que isso era fácil, pois tinha quinze anos e antes dele só tinha havido o Humberto e o Cláudio. Mas parecia tudo tão criancice agora!

        Ângela se sentia mergulhada na vida, no namoro com o Luís!

Luís e sua mãe: desencontro  

        -- Ô, mãe! Quem mexeu nas minhas coisas?

        -- Que coisas, filho?

        -- O meu quarto, mãe! Foi você?

        -- O que é isso? Está me acusando, filho? Por que é que eu mexeria nas suas coisas?

        -- É, justamente, isto não está certo. Se for pra mexer, tem que falar comigo antes.

        -- Como assim? Eu sou sua mãe, só quero o seu bem! Eu sou sua mãe, por que vou pedir permissão?

        -- Ah, mãe! Então foi você? Não vê que isso é invasivo? Eu tenho direito à privacidade! Não sou um menininho que precisa ser carregado, já soou adulto e tenho alguns direitos.

        -- Direitos! Direitos? Você come e dorme nesta casa, que foi paga com o trabalho do seu pai e o meu! Além disso, você está fazendo coisas erradas!

        -- Mãe, não é quando eu fizer tudo certo que vou ser adulto! Qualquer coisa que a senhora pense, converse comigo. Não precisa invadir o meu espaço, nem ficar organizando minha vida, como se fosse um guarda-roupa, que tem lugar certo pra toalha e pra cueca!

        -- Do que você está falando? Tudo na vida tem o seu lugar certo! Um filho é um filho. O que é certo é certo, e o que é errado é errado! Não tem o que conversar! Você sabe o que é certo. Desde que você era pequeno eu sempre lhe digo o que pode e o que não pode fazer! O que você tem pra conversar? O que você está fazendo é errado. Eu sei! Eu achei isso aqui, ó! (Mostra um papelote com um pouco de cocaína).

        -- Mãe! O que a senhora sabe de mim? O que a senhora sabe?

        -- O que eu sei é que é errado! É um caminho errado, você está errado!

        -- Mãe, você não está vendo o que está fazendo desse jeito? Eu não sou um armário, pô!

        -- É você que não está vendo nada! Você está errado e não admite! Vou ter que falar com o seu pai!

        E daí, mãe? E daí!

        (Luís sai completamente arrasado e desanimado, mas ainda escuta a mãe falar).

        -- Como “e daí”? Não vou ficar resolvendo este problema sozinha com você, que não está sendo razoável. Que falta de respeito! Como “e daí”? É o seu pai! É ele que sustenta a casa!

        A vida se tornava uma mistura insuportável de desespero e saco-cheio. Havia um ponto, um nódulo de resistência: uma parte do desespero era de não ceder para não ficar igual àquele vazio, àquela falta de nexo na vida das pessoas.

                                  Drogas, mitos e verdades, Beatriz C. Cotrim.

                               Fonte: Livro – Encontro e Reencontro em Língua Portuguesa – 8ª Série – Marilda Prates – Ed. Moderna, 2005 – p. 35/8.

Entendendo o texto:

01 – Identifique, a partir do primeiro texto, as características de Luís.

      O Luís era criativo, inteligente, bem informado e alternava estados de excitação e delicadeza.

02 – Por que, para Ângela, o bilhete amassado não parecia ter sido escrito por Luís?

      Porque ele sempre a tratava com delicadeza, atitude que não parecia combinar com o bilhete amassado e sua mensagem carregada de intensidade.

03 – Segundo Ângela, alguns garotos podem ser definidos por um ou dois adjetivos.

a)   O que você entende por essa afirmação?

A afirmação permite imaginar garotos de personalidade linear, pouco complexa, imaturos.

b)   Como você imagina que sejam os garotos assim definidos?

Resposta pessoal do aluno.

c)   Por que seriam necessários mais de dois adjetivos para descrever Luís?

Porque ele tinha personalidade complexa, inconstante e surpreendente.

04 – Ângela e seus colegas ficaram muito interessados pelas explicações de Luís sobre História.

a)   Qual o motivo do interesse dos alunos?

O enfoque original abordado por Luís.

b)   Por que as explicações de Luís influenciaram até mesmo o comportamento do professor?

Porque motivaram o professor a dar a mesma aula sob um ponto de vista diferente.

05 – Luís comparou, em um momento, o Nordeste do Brasil à África. Qual a semelhança entre os dois locais mencionados?

      A África é um continente em que há imensa desigualdade social, explorado por pequenos grupos, esquecido pelas organizações internacionais a despeito da miséria e dos graves problemas ligados à área da saúde. O Nordeste brasileiro é também violentamente explorado por uma minoria cada vez mais enriquecida, apresenta grande desigualdade social e não recebe do governo federal a atenção merecida.

06 – “Gritava que todos estavam impassíveis, enquanto a vida corria lá forra. Que o mundo acontecia enquanto eles seguiam indo para a escola”.

a)   Você já se sentiu assim como Luís enquanto estava na escola? Por quê?

Resposta pessoal do aluno.

b)   Frequentar a escola pode ser uma forma de trabalhar pela construção de um mundo melhor? Por quê?

Resposta pessoal do aluno.

07 – O que a mãe de Luís realmente queria saber quando perguntava a ele “Por que é que eu mexeria nas suas coisas”?

      Ela provoca o filho para que ele confesse estar usando drogas.

08 – “Como assim? Eu sou sua mãe, só quero o seu bem! Eu sou sua mãe, por que vou pedir permissão”?

a)   Qual o objetivo da mãe de Luís ao fazer esses comentários?

Justificar o fato de ter entrado no quarto de Luís, afirmar que ela tinha o direito de fazer isso.

b)   Por que esses comentários permitiram que Luís percebesse que ela havia de fato entrado em seu quarto?

Porque suas justificativas serviram como uma confissão.

09 – Luís afirma que a mãe organiza a vida dele como se fosse um armário. O que você entende por essa comparação?

      Luís se ressente pelo fato de sua mãe tratar seus sentimentos de maneira mecânica, simplista.

10 – “Mas você não está vendo o que está fazendo desse jeito?” O que Luís quer dizer?

      A atitude da mãe de Luís é de opressão e desrespeito. Ela não abre espaço para o diálogo, pois parte do pressuposto de que ele está errado e não oferece argumentos consistentes para justificar sua posição.

11 – “Havia um ponto, um nódulo de resistência: uma parte do desespero era de não ceder para não ficar igual àquele vazio, àquela falta de nexo na vida das pessoas”. O que, na fala da mãe, permite identificar a falta de nexo criticada por Luís?

      O comportamento furioso e a falta de argumentos da mãe mostram essa falta de nexo.

 

Ângela: pensando na vida

             Beatriz C. Cotrim

        “Meus Deus! quanta coisa...

        Assim, nesta longa conversa, eu soube a origem da folha azul: tinha sido escrita por Luís na primeira vez que cheirara... Isso fora um pouco antes de me conhecer.

        Fico pensando e pensando, porque o que Luís me disse fica passando pela minha cabeça, o tempo todo. Parecem imagens que são minhas, de tão intensas.

        Minha mãe diz que é perigoso, porque ele tem experiência e eu não. Porque é ele que vai dominar a relação, por saber mais, ter vivido mais... E eu, vou perder a oportunidade de viver no meu ritmo, influenciada pela experiência dele. Que vou ser levada pela opinião dele... Que ele vai me impressionar e eu não vou desenvolver meu ponto de vista.

        Não sei – eu, realmente, não sei.

        Tenho medo disso. Medo de não saber avaliar a situação e errar. Medo de que minha mãe tenha razão e eu me arrisque se não considerar o que ela diz.

        Mas eu gosto dele e o que ele me conta me comove! Quero saber o que vai acontecer com ele, quero ficar perto e saber dele! Eu entendo o que está tentando fazer!

        Ele parece cheio de vida e me disse que não quer ficar nessa. Quer viver, e não errar na única vida da qual estamos certos. Que o que acontece é que ele fica com uma raiva e desespero enormes, não tem onde pôr essa revolta e quer então arrebentar, reagir... Meter-se no submundo, experimentar aquilo que todo mundo diz que é arriscado e justamente do que devemos manter distância, surge como um sentido, uma significação no nada, no vazio das respostas que sente...

        ... Que o pai ter se importado, ter olhado para ele, faz uma diferença enorme. Fora sem dúvida algo que o ajudara a parar e pensar. Mas o que tinha pensado era dele, não dependia do pai. Ele apenas queria não precisar ficar tão desesperado. Não sabia se queria se arrebentar ou, se encontrar pessoas tão arrebentadas, servia para ele se sentir alguém na vida.

        ... Ter gostado de mim era importante – era ‘muito importante’, ele dissera isso! –, pois eu sou diferente dele. Diz que pareço nova e frágil, mas que tenho algo dentro... uma ‘consistência’, uma ‘tranquilidade’... Comigo, parecia que ele encontrava o entendimento – e eu só escuto! Às vezes nem sei o que falar... o que achar...

        [...]

        Então, ele me avisou que vai aceitar a sugestão do médico e ir a uma clínica, tratar-se. Mas acha que é para ter onde ir conversar e poder organizar suas ideias. Não acha que é dependente. Só que reconhece que precisa de um lugar calmo, que o ajude a pensar. A vida que leva, disse, não permite isso. Mas o que o ajudara tinha sido também eu – eu! só ouvindo... E seu pai, solidário. E também o médico, que soubera escutá-lo.

        Bom, o que será que acontecerá depois comigo e com o Luís?

        Por enquanto só sei que gosto muito, muito dele! Vou ficar com ele, porque ele não está legal e porque eu quero.

        ... Depois, depois eu vejo...”

Drogas, mitos e verdades. Beatriz C. Cotrim.

                           Fonte: Livro – Encontro e Reencontro em Língua Portuguesa – 8ª Série – Marilda Prates – Ed. Moderna, 2005 – p. 38/40.

Entendendo o texto:

01 – Finalmente, Ângela pensa na vida. Em tudo o que ouviu e viveu. Foi nesse momento que entendeu a diferença entre os dois bilhetes que abrem essa história. Você sabe dizer qual é ela?

      No 1° bilhete Luís estava sob a influência das drogas, “perdido”, num mundo sem horizontes. A própria letra era trêmula, o que comprova seu estado de espírito.

      No 2° bilhete, Luís demonstra buscar auxílio no amor, na convivência, na verdade. Indica talvez o começo da recuperação.

02 – Qual a preocupação da mãe de Ângela? Você concorda com o fato de Ângela recorrer a mãe para dialogar? Por quê?

      A opinião da mãe é que Ângela será levada, influenciada, pela opinião de Luís, que é muito mais experiente que a menina e que, naquele momento, apresentava problemas. É natural que Ângela recorra aos conselhos da mãe. Ela é sua amiga e experiente.

03 – Por que Ângela não quer abandonar Luís neste momento?

      Porque ele confia nela. Sente nela a tranquilidade: uma força para melhorar...

04 – “Meter-se no submundo, experimentar aquilo que todo mundo diz que é arriscado e justamente do que devemos manter distância, surge como um sentido, uma significação no nada, no vazio das respostas que sente”.

a)   A que respostas Luís se refere?

Às respostas sobre o porquê da vida e das escolhas das pessoas.

b)   Considerando o raciocínio de Luís para justificar a opção pelo consumo de drogas, reflita: a atitude da mãe do garoto contribuiu para fazer com que ele mudasse de ideia? Por quê?

Não, pois como a mãe não conseguia argumentar de maneira consistente sua posição, ela apenas reforçava a sensação de falta de sentido que incomodava Luís.

c)   O que você pensa da solução encontrada por Luís?

Resposta pessoal do aluno.

05 – Pelo texto percebemos que a mãe de Luís recorreu ao marido. E que ele se importou com a situação. Isso pesou na decisão de Luís em querer abandonar a droga? O que você conclui?

      A preocupação do pai foi um ponto forte que pesou muito na vontade do rapaz de querer abandonar a droga.

06 – O que pesou mais na decisão de Luís em querer abandonar a droga?

      O seu relacionamento com Ângela, uma pessoa muito especial para ele.

07 – Que decisão tomou Luís? Por quê? Ele era um dependente?

      Luís não se considerava um dependente. Aceitou a sugestão do médico de ir a uma clínica para tratar-se, a fim de levar uma vida melhor, mais equilibrada e feliz.

08 – Comente a decisão de Ângela.

        Ela decidiu ficar com Luís, porque gostava dele e precisava estar a seu lado para ajudá-lo.

09 – Compare os dois bilhetes.

a)   Qual deles parece estar organizado como um armário?

O segundo bilhete.

b)   Que outro recurso você sugeriria a Luís para que ele pudesse encontrar uma nova organização para seu “armário interior”?

Resposta pessoal do aluno.

 

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