sábado, 29 de agosto de 2020

CRÔNICA: AS PALAVRAS QUE NINGUÉM DIZ - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

 Crônica: AS PALAVRAS QUE NINGUÉM DIZ

                Carlos Drummond de Andrade

     -- Sabe o que é diadelfo? Não sabe. É isso aí: ninguém aprende mais nada na escola, não há professor que ensine o que é diadelfo. Entretanto, basta você sair por aí, na Gávea, e dá de cara com pencas de diadelfos. Tão fácil distingui-los. Pelo visto, sou capaz de jurar que você também nunca experimentou a emoção do ilapso. Ou por outra: pode até ter experimentado, mas sem identificá-lo pelo nome. Não alcançou a maravilhosa consciência de haver merecido o ilapso. Conheci um nordestino que na mocidade exercera a profissão de ultor, e que ignorava o que é ultor: como é que pode ser tão mau profissional?

        Praticamente, as coisas deixaram de ser nomeadas na boca dos falantes. O vocabulário azulou. São incapazes de reconhecer o que é beltiano, e mais ainda de qualificá-lo. Paranzela, já ouviu falar? Conhece entre suas relações alguém que algum dia lhe falou em oniquito? Se vou ao Number One e peço alfitetes, pensam que estou louco, acham que eu quero comer alfinetes. Não adianta argumentar que, como paguilha, faço jus à maior consideração: de resto, sabem lá o que seja paguilha?

        Olhe, não é só a piara que ignora tudo, inclusive que ela é piara. Os da alta, é a mesma coisa. Participei de umas boedrômias em certa mansão do Cosme Velho, e pude verificar que todos, satisfeitíssimos com o que faziam, estavam longe de imaginar que tudo aquilo que se passava em torno da piscina eram boedrômias, autênticas boedrômias. Uma situação de poslimínio é absolutamente indecifrável para muitos doutores que conheço. E quantos só dormem sossegados se têm um talambor a protegê-lo, desconhecendo embora que instalaram um talambor em casa?

        Menino, você gosta remuito de siricaia e não sabe o que é siricaia e o que é remuito? Santa ignorância! Mas que o seu pai, professor ilustre pratique o harpaxismo e nem desconfie de ser harpaxista, meus pêsames às codornas. Lamentável ainda, a incontinência de seus borborigmos em reuniões sociais, pois não?

        Quanta gente por aí, precisando de auriscálpio, e se aconselho que procure obter um, fica perturbada, imaginando coisas... Chega a manifestar aversamento, sem mesmo desconfiar do que seja aversamento. De português não aprendem um pigalho. Aventure-se alguém, numa roda seleta, a falar em cristadelfos. Os que se julgam mais informados pensarão que nos referimos a porcelanas de Delft.

        Pessoas que adoram determinados pitéus, não os visita a mínima noção de gamararologia (não quer dizer que estejam gamadas, é outra coisa muito diferente). Dispomos de alguns estratólogos, a quem ninguém trata pela correta denominação, e se esta for mencionada, haverá quem supunha tratar-se de peritos em rodoviarismo ou em extratos de contas. Fui cumprimentar uma campeã de tênis, chamando-a lindamente de vitrice, e ela abespinhou-se. Achou talvez algo de venéfico no vocábulo. Sabe tênis e não sabe o idioma.

        Vamos dar uma volta seral? Propus a outra moça, que arregalou os olhos. Não houve meio de convencê-la de que pretendia levá-la por aí, sob a paz das estrelas. Imagine se eu lhe propusesse usar subsiles. Ainda que eu aplicasse o máximo de catexe, não conseguiria nada. E talvez ela até chamasse a polícia.

        Bem, não estou exagerando. Você que me ouve, sabe (pelo menos isso) que eu evito toda e qualquer espécie de cinquete. Ah, também não sabe o que é cinquete? Era de se esperar. Não posso falar que sua cabeça mais parece uma abatiguera, porque a bem dizer, você nunca plantou nada aí, e em consequência nada aí se pode colher. Certas coisas a gente vê logo, não carece ser mirioftalmo. Passe bem, ignaro, ou melhor, passe mal!

As palavras que ninguém diz. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 95-98.

    Fonte: Português – Uma proposta para o letramento – Ensino fundamental – 8ª série – Magda Soares – Ed. Moderna, 2002 – p. 159/163.


Entendendo a Crônica:

01 – No último parágrafo, o narrador afirma: “Bem, não estou exagerando”.

a)   Determine o que está implícito nessa frase: que comportamento do narrador poderia estar sendo considerado um exagero?

Citar um número tão grande de palavras, criticando as pessoas por não conhece-las.

b)   Qual é a sua opinião: o narrador exagera ou não?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: exagera, porque é este o objetivo da crônica surpreender o leitor com grande quantidade de palavras desconhecidas.

02 – As palavras que ninguém diz citadas na crônica podem ser divididas em dois grupos:

·        Palavras que designam seres, coisas, sentimentos, ações que são raros, pouco conhecidos (por exemplo, paranzela);

·        Palavras que designam seres, coisas sentimentos, ações que são bem conhecidas, mas geralmente são nomeados por outras palavras e expressões (por exemplo, ultor).

Cite exemplos de cada um dos dois grupos.

Palavras que têm equivalente na linguagem comum (segundo grupo): abespinhar-se, aversamento, borborigmo, cinquete, ignaro, paguilha, piara, pitéu, remuito, seral, talambor, venéfico, vitrice; as demais pertencem ao primeiro grupo.

03 – Observe que o texto começa com um travessão; por quê?

      Porque o travessão indica que o texto é uma fala, que o narrador está se dirigindo ao leitor ou ouvinte.

04 – Recorde esta frase do narrador, no último parágrafo: “Você que me ouve, sabe...”. Por que o narrador usa ouve e não (você que me lê...)?

      Porque o texto é apresentado como se o narrador estivesse falando, conversando com alguém, não como se estivesse escrevendo para um leitor.

05 – O narrador acusa várias pessoas de ignorarem o significado de palavras:

a)   Várias vezes o narrador acusa você de ser ignorante; cite frases do texto dirigidas a você.

Há várias; exemplos: “Sabe o que é diadelfo? Não sabe”; “Basta você sair por aí...”; “... sou capaz de jurar que você também nunca experimentou...”; “Já ouviu falar?” Etc.

b)   Muitas vezes o narrador acusa outros – eles – de serem ignorantes; cite frases em que a ignorância dos outros é apontada.

Há várias; exemplos: “Conheci um nordestino...”; “... não é só a piara que ignora tudo.”; “Os da alta é a mesma coisa.”; “Quanta gente por aí...”; etc.

06 – Para o narrador, você é ignorante, eles são ignorantes. Que opinião a respeito de si mesmo ele deixa transparecer na crônica? Escolha a resposta entre as frases abaixo, e escreva-a em seu caderno:

·        Eu conheço palavras que ninguém conhece.

·        Eu sei mais português que você e que eles.

·        Eu uso palavras que não precisam ser usadas.

07 – O que o narrador diz não está de acordo com o título da crônica – qual é a contradição?

      O título anuncia palavras que ninguém diz, que ninguém conhece, mas o narrador acusa as pessoas de não conhecerem essas palavras.

08 – Escolha, entre as frases abaixo, a que, na sua opinião, expressa o objetivo da crônica; escreva-a em seu caderno:

·        A crônica é uma crítica a pessoas de vocabulário pobre.

·        A crônica ironiza o uso de palavras que ninguém diz.

·        A crônica mostra como a língua é rica em palavras.

·        A crônica é uma brincadeira com palavras incomuns.

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: excetuada a primeira opção, as três outras são aceitáveis. O objetivo é levar o aluno a explicitar o sentido que construiu para texto.

 

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