terça-feira, 4 de agosto de 2020

CRÔNICA: A ALIANÇA - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

Crônica: A aliança

              Luís Fernando Veríssimo

        Esta é uma história exemplar, só não está muito claro qual é o exemplo. De qualquer jeito, mantenha-a longe das crianças. Também não tem nada a ver com a crise brasileira, o apartheid, a situação na América Central ou no Oriente Médio ou a grande aventura do homem sobre a Terra. Situa-se no terreno mais baixo das pequenas aflições da classe média. Enfim. Aconteceu com um amigo meu. Fictício, claro.

        Ele estava voltando para casa como fazia, com fidelidade rotineira, todos os dias à mesma hora. Um homem dos seus 40 anos, naquela idade em que já sabe que nunca será o dono de um cassino em Samarkand, com diamantes nos dentes, mas ainda pode esperar algumas surpresas da vida, como ganhar na loto ou furar-lhe um pneu. Furou-lhe um pneu. Com dificuldade ele encostou o carro no meio-fio e preparou-se para a batalha contra o macaco, não um dos grandes macacos que o desafiavam no jângal dos seus sonhos de infância, mas o macaco do seu carro tamanho médio, que provavelmente não funcionaria, resignação e reticências… Conseguiu fazer o macaco funcionar, ergueu o carro, trocou o pneu e já estava fechando o porta-malas quando a sua aliança escorregou pelo dedo sujo de óleo e caiu no chão. Ele deu um passo para pegar a aliança do asfalto, mas sem querer a chutou. A aliança bateu na roda de um carro que passava e voou para um bueiro. Onde desapareceu diante dos seus olhos, nos quais ele custou a acreditar. Limpou as mãos o melhor que pôde, entrou no carro e seguiu para casa. Começou a pensar no que diria para a mulher. Imaginou a cena. Ele entrando em casa e respondendo às perguntas da mulher antes de ela fazê-las.

        — Você não sabe o que me aconteceu!

        — O quê?

        — Uma coisa incrível.

        — O quê?

        — Contando ninguém acredita.

        — Conta!

        — Você não nota nada de diferente em mim? Não está faltando nada?

        — Não.

        — Olhe.

        E ele mostraria o dedo da aliança, sem a aliança.

        — O que aconteceu?

        E ele contaria. Tudo, exatamente como acontecera. O macaco. O óleo. A aliança no asfalto. O chute involuntário. E a aliança voando para o bueiro e desaparecendo.

        — Que coisa – diria a mulher, calmamente.

        — Não é difícil de acreditar?

        — Não. É perfeitamente possível.

        — Pois é. Eu…

        — SEU CRETINO!

        — Meu bem…

        — Está me achando com cara de boba? De palhaça? Eu sei o que aconteceu com essa aliança. Você tirou do dedo para namorar. É ou não é? Para fazer um programa. Chega em casa a esta hora e ainda tem a cara-de-pau de inventar uma história em que só um imbecil acreditaria.

        — Mas, meu bem…

        — Eu sei onde está essa aliança. Perdida no tapete felpudo de algum motel. Dentro do ralo de alguma banheira redonda. Seu sem-vergonha!

        E ela sairia de casa, com as crianças, sem querer ouvir explicações. Ele chegou em casa sem dizer nada. Por que o atraso? Muito trânsito. Por que essa cara? Nada, nada. E, finalmente:

        — Que fim levou a sua aliança? E ele disse:

        — Tirei para namorar. Para fazer um programa. E perdi no motel. Pronto. Não tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso casamento agora, eu compreenderei.

        Ela fez cara de choro. Depois correu para o quarto e bateu com a porta. Dez minutos depois reapareceu. Disse que aquilo significava uma crise no casamento deles, mas que eles, com bom-senso, a venceriam.

        — O mais importante é que você não mentiu pra mim.

Luís Fernando Veríssimo

Entendendo a crônica:

01 – Do que trata o texto?

      Retrata fatos do cotidiano, que são muitas vezes, banais ou comuns.

02 – O tema é cotidiano?

      Sim, discutindo o cotidiano do casamento, levantando fatos sobre fidelidade x traição e tomando a aliança como um símbolo de compromisso e respeito mútuo.

03 – Qual o tipo de linguagem?

      Linguagem informal (coloquial).

04 – É um texto longo ou curto?

      O texto é curto.

05 – A trama se desenvolve em torno de um único conflito? Explique.

      Sim. A perda da aliança que caiu no bueiro, enquanto ele trocava o pneu.

06 – Existem muitos personagens? Quem são?

      Não. É apenas o marido e a mulher.

07 – Analise o foco narrativo, ou seja, o autor escolhe o ponto de vista que vai adotar:  escreve na primeira pessoa (eu vi, eu fiz, eu senti) e se transforma em parte da narrativa – é o autor-personagem; ou fica de fora e escreve na terceira pessoa (ele fez, eles sentiram) – é o autor – observador. O narrador narra em primeira ou terceira pessoa?

      A crônica é narrativa e tem por base uma história contada em terceira pessoa do singular.

08 – Qual é o tom da crônica: bem-humorado, poético, irônico, reflexivo ou sério?

      O tom é bem-humorado, pois o marido conhecendo a mulher, sabia que ela não acreditaria na verdade, então resolveu mentir sobre sua infidelidade, na qual ela acreditou.

09 – Determine a classe gramatical da palavra “muito” nos trechos a seguir, informando também a que classe gramatical pertence a palavra que está sendo modificada por aquela primeira palavra (“muito”):

a)   “... só não está muito claro qual é o exemplo”.

“Muito” é advérbio e está modificando o adjetivo “claro”.

b)   “... mas o macaco do seu carro tamanho médio, que muito provavelmente não funcionaria...”

“Muito” é advérbio e está modificando o advérbio “provavelmente”.

c)   “... diante dos seus olhos, nos quais ele custou muito a acreditar”.

“Muito” é advérbio e está modificando a forma verbal “custou”.

10 – Leia a crônica com bastante atenção e copie as palavras-chave do texto.

      Aliança, mentira, casamento, homem, mulher, relacionamento, crise, traição, verdade, bom-senso, fidelidade, rotina, namorar, meia-idade.

 

 


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