CONTO: A
MODORRA
Monteiro Lobato
Um dia Pedrinho enganou Dona Benta que
ia visitar o tio Barnabé, mas em vez disso tomou o rumo da mata virgem de seus
sonhos. Nem o bodoque levou consigo. “Para que bodoque, se levo o saci na
garrafa e ele é uma arma melhor do que quanto canhão ou metralhadora existe?”
Que beleza! Pedrinho nunca supôs que
uma floresta virgem fosse tão imponente. Aquelas árvores enormes, velhíssimas,
barbadas de musgos e orquídeas; aquelas raízes de fora dando ideia de
monstruosas sucuris; aqueles cipós torcidos como se fossem redes; aquela
galharada, aquela folharada e sobretudo aquele ambiente de umidade e sombra,
lhe causaram uma impressão que nunca mais se apagou.
Volta e meia ouvia um rumor estranho,
de inambu ou jacu a esvoaçar por entre a folhagem, ou então, de algum galho
podre que tombava do alto e vinha num estardalhaço — brah, ah, ah… —
esborrachar-se no chão.
E quantas borboletas, das azuis, como
cauda de pavão; das cinzentas, como casca de pau; das amarelas, cor de gema de
ovo!
E pássaros! Ora um enorme tucano de
bico maior que o corpo e lindo papo amarelo. Ora um pica-pau, que interrompia o
seu trabalho de bicar a madeira de um tronco para atentar no menino com
interrogativa curiosidade.
Até um bando de macaquinhos ele viu,
pulando de galho em galho com incrível agilidade e balançando-se, pendurados
pela cauda, como pêndulos de relógio.
Pedrinho foi caminhando pela mata
adentro até alcançar um ponto onde havia uma água muito límpida, que corria,
cheia de barulhinhos mexeriqueiros, por entre velhas pedras verdoengas de limo.
Em redor erguiam-se as esbeltas samambaiaçus, esses fetos enormes que parecem
palmeiras. E quanta avenca de folhagem mimosa, e quanto musgo pelo chão!
Encantado com a beleza daquele sítio, o
menino parou para descansar. Juntou um monte de folhas caídas; fez cama;
deitou-se de barriga para o ar e mãos cruzadas na nuca. E ali ficou num enlevo
que nunca sentira antes, pensando em mil coisas em que nunca pensara antes, seguindo
o voo silencioso das grandes borboletas azuis e embalando-se com o chiar das
cigarras.
De repente, notou que o saci dentro da
garrafa fazia gestos de quem quer dizer qualquer coisa.
Pedrinho não se admirou daquilo. Era
tão natural que o capetinha afinal aparecesse…
— Que aconteceu que está assim
inquieto, meu caro saci? — perguntou-lhe em tom brincalhão.
— Aconteceu que este lugar é o mais
perigoso da floresta; e que se a noite pilhar você aqui, era uma vez o neto de Dona
Benta…
Pedrinho sentiu um arrepio correr-lhe
pelo fio da espinha.
— Por quê? — perguntou, olhando
ressabiadamente para todos os lados.
— Porque é justamente aqui o coração da
mata, ponto de reunião de sacis, lobisomens, bruxas, caiporas e até da
mula-sem-cabeça. Sem meu socorro você estará perdido, porque não há mais tempo
para voltar para casa, nem você sabe o caminho. Mas o meu auxílio eu só darei
sob uma condição…
— Já sei, restituir a carapuça —
adiantou Pedrinho.
—
Isso mesmo. Restituir-me a carapuça e com ela a liberdade. Aceita?
Pedrinho sentia muito ver-se obrigado a
perder um saci que tanto lhe custara a apanhar, mas como não tinha outro
remédio senão ceder, jurou que o libertaria se o saci o livrasse dos perigos da
noite e pela manhã o reconduzisse, são e salvo, à casa de Dona Benta.
— Muito bem — disse o saci. — Mas nesse
caso você tem de abrir a garrafa e me soltar. Terei assim mais facilidade de
ação. Você jurou que me liberta; eu dou minha palavra de saci que mesmo solto o
ajudarei em tudo. Depois o acompanharei até o sítio para receber minha carapuça
e despedir-me de todos.
Pedrinho soltou o saci e durante o
resto da aventura tratou-o mais como um velho camarada do que como um escravo.
Assim que se viu fora da garrafa, o capeta pôs-se a dançar e a fazer cabriolas
com tanto prazer que o menino ficou arrependido de por tantos dias ter
conservado presa uma criaturinha tão irrequieta e amiga da liberdade.
— Vou revelar os segredos da mata
virgem — disse-lhe o saci — e talvez seja você a primeira criatura humana a
conhecer tais segredos. Para começar, temos de ir ao “sacizeiro” onde nasci,
onde nasceram meus irmãos e onde todos os sacis se escondem durante o dia,
enquanto o sol está fora. O sol é o nosso maior inimigo. Seus raios
espantam-nos para as tocas escuras. Somos os eternos namorados da lua. É por
isso que os poetas nos chamam de filhos das trevas. Sabe o que é trevas?
— Sei. O escuro, a escuridão.
— Pois é isso. Somos filhos das trevas,
como os beija-flores, os sabiás e as abelhas são filhos do Sol.
Assim falando, o saci levou o menino
para uma cerrada moita de taquaraçus existente num dos pontos mais espessos da
floresta.
Pedrinho assombrou-se diante das
dimensões daqueles gomos quase da sua altura e grossos que nem uma laranja de
umbigo.
(LOBATO, Monteiro. O saci. )
Vocabulário
Modorra: vontade incontrolável de dormir.
Bodoque: arco com duas cordas e uma rede (malha) ou couro em que se põe a bola
de barro, pedra ou chumbo, com
que se atira. Também conhecido como estilingue.
Virgem: intacto, puro; diz-se da mata que ainda não foi explorada.
Inambu e jacu: espécies de ave.
Taquaraçu: espécie de bambu.
Pilhar: Agarrar, pegar.
Entendendo
o texto:
01 – Após
capturar o Saci, Pedrinho enganou Dona Benta e foi para a mata. Diz o texto que
o menino não levou sequer o bodoque. Segundo seus conhecimentos sobre esse ser
lendário, explique por que o menino acreditava que o Saci era a melhor arma
existente.
Pedrinho acreditava que o Saci possuía
poderes mágicos e que poderia ajudá-lo em uma situação de risco.
02 –
Pedrinho surpreendeu-se pela imponência, pela grandiosidade daquela floresta.
Por que essa mata virgem impunha sua importância? O que ela tinha de diferente
de outras florestas?
A mata visitada por Pedrinho ainda não
havia sido explorada pelo homem, não havia qualquer interferência humana,
permanecendo com sua estrutura intacta.
03 – No texto
narrativo, há o momento em que se tem a apresentação, o início dos
acontecimentos. Quais são os fatos que indicam a situação inicial do texto?
Os fatos que correspondem a situação
inicial são quando Pedrinho engana Dona Benta e vai para a mata virgem.
04 – O que
Pedrinho fazia no momento em que notou que o Saci dentro da garrafa parecia
querer dizer alguma coisa?
O menino estava deitado, descansando.
05 – No início
da conversa entre o Pedrinho e o Saci, aquele falava em um tom brincalhão. O
que o Saci disse para que Pedrinho ficasse assustado? Explique o motivo do medo
do menino.
O saci afirmou que ali era o ponto mais
perigoso da floresta, pois estavam bem no coração da mata, lugar em que outros
seres lendários habitavam.
06 – Saci
ofereceu ajuda para livrar Pedrinho dos perigos da noite e levá-lo de volta
para casa. Qual foi a condição estabelecida para que isso acontecesse
Pedrinho deveria devolver a carapuça ao
Saci, bem como a liberdade dele.
07 –
Segundo o texto, “Pedrinho soltou o Saci e durante o resto da aventura tratou-o
mais como um velho camarada do que como um escravo.” O que significa tratar
alguém como um velho camarada? E como um escravo?
Tratar alguém como um velho camarada é o
mesmo que tratar a um amigo, com respeito, com brincadeiras e com certa
intimidade. Já tratar a um escravo e exigir que se cumpram determinados trabalhos,
dar ordens e fazer com que estas sejam cumpridas.
08 – O Saci
é chamado no texto de “capeta”. Por que ele recebeu esse apelido?
Saci levou esse apelido por ser muito sapeca,
fazer muitas travessuras.
09 – O primeiro
lugar a que o Saci levaria Pedrinho seria o sacizeiro. Como e onde era esse
lugar?
Era uma cerrada moita de taquaraçus num
dos pontos mais espessos da floresta.
10 – De acordo
com o desfecho desse texto, Pedrinho chegou a ver algum outro Saci, que não o
que estava com ele? Qual foi a reação do menino nesse trecho?
O menino não chega a ver outro Saci,
apenas sente-se assombrado por estar naquele lugar em que esses seres nascem.
11 –
Releia os trechos a seguir e indique a quem corresponde a fala.
a) “Para
que bodoque, se levo o saci na garrafa e ele é uma arma melhor do que quanto
canhão ou metralhadora existe?”
Corresponde a fala de Pedrinho.
b) “Que
beleza!”
Corresponde a fala do narrador.
c) “E
pássaros!”
Corresponde a fala do narrador.
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