LIVRO: A BAGACEIRA - OS SALVADOS
A casa grande,
situada numa colina, sobranceava o caminho apertado, no trecho fronteiro, entre
o cercado e o açude.
Num repentino
desenfado, Dagoberto estirou o olhar, por cima das mangueiras meãs enfileiradas
ladeira abaixo, para a estrada revolta.
Parecia a poeira
levantada, a sujeira do chão num pé de vento.
Era o êxodo da
seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos – esqueletos redivivos,
com aspecto terroso e o teor das covas podres.
Os fantasmas
estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos e trêmulos, num passo
arrastado de quem leva as pernas em vez de ser lavado por elas.
Andavam devagar,
olhando para trás, como quem quer voltar, não tinham pressa em chegar, porque
não sabiam aonde iam. Expulsos do seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao
acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados.
Fugiam do sol e
o sol guiava-os nesse forçado nomadismo.
Adelgaçados na
magreira cômica, cresciam como se o vento os levantasse. E os braços afinados
desciam-lhes aos joelhos, de mãos abanando.
Vinham
escoteiros, menos os hiprópicos – doentes de alimentação tóxica – com os fardos
das barrigas alarmantes.
Não tinham sexo,
nem idade, nem condição nenhuma.
Meninotas, com
as pregas da súbita velhice, caretavam torcendo as carinhas decrépitas de
ex-voto. Os vaqueiros másculos, como titãs alquebrados em petição de miséria.
Pequenos fazendeiros, no arremesso igualitário, baralhavam-se nesse anônimo
aniquilamento.
Fariscavam o
cheiro enjoativo do melado que lhes exacerbava os estômagos jejunos. E, em vez
de comerem, eram comidos pela própria fome numa autofagia erosiva.
Lúcio almoçava
com o sentido nos retirantes. Escondia côdeas nos bolsos para distribuir com
eles como quem lança migalhas e aves de arribação.
(...)
--- Vem tirar a
barriga da miséria...
Párias da
bagaceira, vítimas de uma emperrada organização do trabalho e dependência que
os desumanizava, eram os mais insensíveis ao martírio das retiradas.
A colisão dos
meios pronunciava-se no contato das migrações periódicas. Os sertanejos eram
malvistos nos brejos. E o nome de brejeiro cruelmente pejorativo.
Lúcio
responsabilizava a fisiografia paraibana por esses choques rivais. A cada zona
correspondiam tipos e costumes marcados. Essa diversidade criava grupos sociais
que acarretavam os conflitos de sentimentos.
Estrugia a trova
repulsiva:
Eu não vou na
sua casa,
Você não venha na minha,
Porque tem a
boca grande,
Vem comer minha
farinha...
Homens do
sertão, obcecados na mentalidade das reações cruentas, não convocaram as
derradeiras energias num arranque selvagem. A história das secas era uma
história de passividades.
Limitavam-se a
fitar os olhos terríveis nos seus ofensores. Outros ronronavam, como se
estivessem engolindo golfadas de ódio.
E nas terras
copiosas, que lhe denegavam as promessas visionadas, goravam seus sonhos de
redenção.
Dagoberto olhava
por olhar, indiferente a essa tragédia viva.
A seca
representava a valorização da sara. Os senhores de engenho, de uma avidez vã,
refaziam-se da depreciação dos tempos normais à custa da desgraça periódica.
José
Américo Almeida. A Bagaceira, 12ª ed. Rio:
Livraria José Olympio Ed, 1972, p. 4-6.
1 – Assinale a afirmativa falsa:
a)
A
Bagaceira é o primeiro romance regionalista do chamado Modernismo brasileiro.
b)
A
linguagem do autor do texto é culta, com vocabulário erudito e até com
construções clássicas.
c)
A
titulação do texto refere-se aos retirantes sertanejos, como restos que
escapavam do flagelo da seca.
d)
Há
presença de imagens criadas a partir de elementos científicos.
e)
Há ausência da análise crítica das estruturas sociais brasileiras
que caracterizou a segunda geração do Modernismo.
2 – Assinale a afirmação FALSA sobre a linguagem do texto:
a)
Predominam
os períodos curtos, incisivos.
b)
Há
muitas frases nominais, como, por exemplo, todo o décimo segundo parágrafo.
c)
O
autor faz largo uso dos paroxítonos e de longos proparoxítonos, criando um
ritmo áspero e forte, como, por exemplos, “fantasmas estropiados, trôpegos e
trêmulos adelgaçados na magreira cômica...”.
d)
O
texto é predominantemente descritivo, com digressões do autor. Como exemplo, o
décimo sétimo parágrafo.
e)
No texto só ocorrem imagens visuais.
3 – Sobre o texto, NÃO se pode afirmar:
a) O autor projeta poeticamente o
antagonismo de estruturas sociais.
b) O autor preocupa-se com a linguagem
bem selecionada e expressiva.
c) Há a presença do enfoque da
problemática da seca e da vida nordestina.
d) O ambiente é apenas um pano de fundo
para a ação dos personagens, é motivação para a escritura.
e)
Quanto à forma de narrar, o texto mantém uma aproximação maior do
Romantismo do que do Realismo/Naturalismo.
4 – Assinale a opção indicadora das obras cuja temática é a
mesma que a do texto lido:
a) Gabriela Cravo e Canela e São
Bernardo.
b)
Vidas secas e O Quinze.
c) Menino de Engenho e Fogo Morto.
d) Jubiabá e Caetés.
e) Usina e Banguê.
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