FOGO MORTO
José Lins do Rego
A luz das
lanternas sujava a brancura do luar. Passou a carruagem na porta do Capitão
Vitorino, com os cavalos arrastando-se num passo de cansados. Vitorino viu no
carro o velho sentado com a família. O senhor do engenho não lhe tirou o
chapéu, mas ouviu bem a voz de D. Amélia, dando-lhe boa-noite. O cachorro do
Lula pensava que ele fosse um camumbembe qualquer. Botara-o uma vez fora de sua
casa. Aquilo era uma leseira de marca. Trepado naquele carro, e com o cercado
vazio, as várzeas no mato, o engenho parado. A lua cobria os arvoredos que o
vento brando sacudia de neve. Naquele silencia, ouvia as campainhas do
cabriolé, de longe, tinindo, enquanto os cachorros começaram a latir para a
lua. Cantavam os galos no poleiro de Sinhá Adriana.
--- Minha
velha, amanhã tenho que ganhar os campos. Não sou marica para ficar dentro de
casa. As eleições estão aí e nestes últimos dias nada tenho feito. Vou dar uma
queda no José Paulino que vai ser um estouro.
--- Vitorino,
eu te acho ainda muito machucado.
--- Não tenho
mais nada. Você não viu o compadre e o cego como estavam andando? Apanharam
muito e não ficaram de papo pro ar numa rede como mulher parida. Um homem que
se preza não deve se entregar. Vou para a cabala, amanhã, na feira de Serrinha.
Quero olhar para a cara de Manuel Ferreira. Este cachorro vive na Serrinha
roubando o povo com parte de que é deputado. É outra safadeza de José Paulino,
deixar que vá para a Assembleia do Estado num tipo como Manuel Ferreira. Boto
abaixo tudo isto.
--- É, Vitorino,
mas tu vai sofrer outra desfeita.
--- Que
desfeita? Um homem que luta não é desfeiteado. Cala esta boca. Peguei-me com a
força e botei três réus na rua. Isto é ser desfeiteado? Por que você não se
danou com o filho? Era melhor. Pelo menos não me vinha com estas palavras de
ofensa. O seu marido, mulher, não traz desfeita para casa. Não me diga mais uma
coisa desta.
Levantou-se
outra vez, e saiu para a frente de casa.
Vitorino, tem
cuidado com o sereno, tu podes apanhar um resfriado. Ontem levaste a noite
tossindo. Bota o chapéu na cabeça.
O velho não
respondeu. Os cachorros latiam desesperadamente.
--- Estes
pestes não param. Parece que querem morde a lua.
--- Entra para
dentro, Vitorino, está muito frio. A friagem da lua te faz mal.
Ele não
respondeu. No outro dia sairia pelo mundo para trabalhar pelo povo. Para ele,
Antônio Silvino e o Tenente Maurício, José Paulino e Quinca do Engenho Novo,
todos valiam a mesma coisa. Quando entrasse na casa da Câmara sacudiriam flores
em cima dele. Dariam vivas, gritando pelo chefe que tomava a direção do
município. Mandaria abrir as portas da cadeia.
Todos ficariam contentes com o seu triunfo. A queda de José Paulino
seria de estrondo. Ah, com ele não havia grandes mandando em pequenos. Ele de
cima quebraria a goga dos parentes que pensavam que a vila fosse bagaceira de
engenho.
--- Vitorino,
vem dormir.
--- Já vou.
E, escorado no
portal da casa de taipa, de chão de barro, de paredes pretas, Vitorino era dono
do mundo que via, da terra que a lua branqueava, do povo que precisava de sua
proteção.
REGO, José
Lins do. Fogo Morto. 14. ed. Rio de Janeiro,
José
Olympio,1973. p.287-8.
Camumbembe: vadio, vagabundo.
Leseira: moleza, preguiça; tolice.
Cabriolé: carruagem leve, de duas rodas,
puxada por um cavalo.
Cabala: trama, conspiração.
Desfeita: ofensa, injúria; derrota.
Goga: vaidade, orgulho.
1 – Na visão do Capitão Vitorino, como o Coronel Lula de
Holanda o considera?
Como
um vadio, um vagabundo qualquer.
2 – Segundo o Capitão Vitorino, o Coronel Lula não tinha
razão para ser tão orgulhoso, deixando de cumprimenta-lo. O que o levava a
pensar assim?
O
Coronel Lula não tinha razão para ser tão orgulhoso porque estava parado, o
cercado vazio e as várzeas no mato.
3 – Qual é a intenção do Capitão Vitorino na sua primeira
fala à mulher?
Acabar com o José Paulino.
4 – Como sinhá Adriana reage diante do comportamento de seu
marido?
Sinhá
Adriana ainda o considera muito machucado, sem condições para brigar ou lutar
por qualquer coisa.
5 – A crítica considera o Capitão Vitorino um herói
quixotesco. “Quixotesco” é um adjetivo que se refere a Dom Quixote, personagem
criada pelo escritor espanhol Miguel de Cervantes. Esse adjetivo designa uma
pessoa ingênua, sonhadora, romântica ou mesmo aquela que se envolve em
confusões. Quais as atitudes do Capitão Vitorino que podem ser consideradas
quixotescas?
Sair
pelo mundo e lutar pelo povo; sentir-se dono do mundo e achar que o povo
precisava de sua proteção.
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