TEXTO LITERÁRIO: SÃO BERNARDO
Graciliano Ramos
Nove
horas no relógio da sacristia.
O nordeste começou a soprar, e a porta
bateu com fúria. Mergulhei os dedos nos cabelos.
--- Que estás fazendo, peste?
O cabrito fugiu.
Nem sei quanto
tempo estie ali, em pé. A minha raiva se transformava em angústia, a angústia
se transformava em cansaço.
--- Para quem
era a carta?
E olhava
alternadamente Madalena e os santos do oratório. Os santos não sabiam, Madalena
não quis responder.
O que me
espantava era a tranquilidade que havia no rosto dela. Eu tinha chegado
fervendo, projetando matá-la.
Podia viver com a autora de semelhante maroteira?
À medida,
porém, que as horas se passavam, sentia-me cair num estado de perplexidade e
covardia.
As imagens de
gesso não se importavam com a minha aflição. E Madalena tinha quase a
impassibilidade delas. Por que estaria assim tão calma?
Afirmei a mim
mesmo que matá-la era ação justa. Para que deixar viva mulher tão cheia de
culpa? Quando ela morresse, eu lhe perdoaria os defeitos.
As minhas mãos
contraíam-se, movia-se para ela mas agora as contrações eram fracas e
espaçadas.
--- Fale,
exclamei com voz mal segura.
--- Para quê?
--- Há uma
carta. Eu preciso saber, compreende?
Meti a mão no
bolso e apresentei-lhe a folha, já amarrotada e suja. Madalena estendeu-a sobre
a mesa, examinou-a, afastou-a para um lado.
--- Então?
--- Já li.
A vela
acabou-se. Acendi outra e fiquei com o fósforo entre os dedos até queimar-me.
--- Diga alguma
coisa.
Pareceu-me que
havia ali um equívoco e que, se Madalena quisesse, tudo se esclareceria. O
coração dava-me coices desesperados, desejei doidamente convencer-me da
inocência dela.
--- Para quê? murmurou
Madalena. Há três anos vivemos uma vida horrível. Quando procuramos
entender-nos, já temos a certeza de que acabamos brigando.
--- Mas a
carta?
Madalena
apanhou o papel, dobrou-o e entregou-me:
--- O resto está
no escritório, na minha banca. Provavelmente esta folha voou para o jardim
quando eu escrevia.
--- A quem?
--- Você verá.
Está em cima da banca. Não é caso para barulho.
Você verá.
--- Bem.
Respirei. Que
fadiga!
--- Você me
perdoa os desgostos que lhe dei, Paulo?
--- Julgo que
tive as minhas razões.
--- Não se
trata disso. Perdoa?
Rosnei um
monossílabo.
--- O que
estragou tudo foi esse ciúme, Paulo.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 12. ed.
São Paulo, Martins, 1970. p. 218-9.
Nordeste: vento que sopra desse ponto.
Maroteira: velhacaria, malandrice, patifaria.
Perplexidade: qualidade ou estado de quem está
admirado, espantado, atônito.
Impassibilidade: qualidade de impassível,
indiferente à dor ou à alegria.
1 – Que fato desencadeia o ciúme de Paulo Honório?
A
carta que Madalena estava escrevendo.
2 – Logo no início do texto, o próprio Paulo Honório
demonstra consciência de seus sentimentos. Que sentimentos são esses?
Raiva
e angústia.
3 – Ao perguntar a Madalena para quem era a carta, Paulo
Honório parecia estar muito inquieto. Que atitude sua demonstra isso?
O fato
de olhar alternadamente para Madalena e para os santos do oratório, contrair as
mãos...
4 – A raiva que ele sentia de Madalena chegou a um clímax. Em
que momento?
Quando ele deseja matá-la.
5 – Apesar da insistência de Paulo Honório, Madalena não vê
sentido em responder-lhe. Por quê?
Porque
vivem muito mal há três anos e a procura de um entendimento sempre resulta em
briga.
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