segunda-feira, 1 de maio de 2017

SÃO BERNARDO - GRACILIANO RAMOS - (FRAGMENTO) COM GABARITO

TEXTO LITERÁRIO: SÃO BERNARDO
                                         Graciliano Ramos

        Nove horas no relógio da sacristia.
        O nordeste começou a soprar, e a porta bateu com fúria. Mergulhei os dedos nos cabelos.
        --- Que estás fazendo, peste?
        O cabrito fugiu.
        Nem sei quanto tempo estie ali, em pé. A minha raiva se transformava em angústia, a angústia se transformava em cansaço.  
        --- Para quem era a carta?
        E olhava alternadamente Madalena e os santos do oratório. Os santos não sabiam, Madalena não quis responder.
        O que me espantava era a tranquilidade que havia no rosto dela. Eu tinha chegado fervendo, projetando matá-la.
Podia viver com a autora de semelhante maroteira?
        À medida, porém, que as horas se passavam, sentia-me cair num estado de perplexidade e covardia.
        As imagens de gesso não se importavam com a minha aflição. E Madalena tinha quase a impassibilidade delas. Por que estaria assim tão calma?
        Afirmei a mim mesmo que matá-la era ação justa. Para que deixar viva mulher tão cheia de culpa? Quando ela morresse, eu lhe perdoaria os defeitos.
        As minhas mãos contraíam-se, movia-se para ela mas agora as contrações eram fracas e espaçadas.
        --- Fale, exclamei com voz mal segura.
        --- Para quê?
        --- Há uma carta. Eu preciso saber, compreende?
        Meti a mão no bolso e apresentei-lhe a folha, já amarrotada e suja. Madalena estendeu-a sobre a mesa, examinou-a, afastou-a para um lado.
        --- Então?
        --- Já li.
        A vela acabou-se. Acendi outra e fiquei com o fósforo entre os dedos até queimar-me.
        --- Diga alguma coisa.
        Pareceu-me que havia ali um equívoco e que, se Madalena quisesse, tudo se esclareceria. O coração dava-me coices desesperados, desejei doidamente convencer-me da inocência dela.
        --- Para quê? murmurou Madalena. Há três anos vivemos uma vida horrível. Quando procuramos entender-nos, já temos a certeza de que acabamos brigando.
        --- Mas a carta?
        Madalena apanhou o papel, dobrou-o e entregou-me:
        --- O resto está no escritório, na minha banca. Provavelmente esta folha voou para o jardim quando eu escrevia.
        --- A quem?
        --- Você verá. Está em cima da banca. Não é caso para barulho.
Você verá.
        --- Bem.
        Respirei. Que fadiga!
        --- Você me perdoa os desgostos que lhe dei, Paulo?
        --- Julgo que tive as minhas razões.
        --- Não se trata disso. Perdoa?
        Rosnei um monossílabo.
        --- O que estragou tudo foi esse ciúme, Paulo.

                                                           RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 12. ed.
                                                                       São Paulo, Martins, 1970. p. 218-9.
Nordeste: vento que sopra desse ponto.
Maroteira: velhacaria, malandrice, patifaria.
Perplexidade: qualidade ou estado de quem está admirado, espantado, atônito.
Impassibilidade: qualidade de impassível, indiferente à dor ou à alegria.

1 – Que fato desencadeia o ciúme de Paulo Honório?
       A carta que Madalena estava escrevendo.

2 – Logo no início do texto, o próprio Paulo Honório demonstra consciência de seus sentimentos. Que sentimentos são esses?
       Raiva e angústia.

3 – Ao perguntar a Madalena para quem era a carta, Paulo Honório parecia estar muito inquieto. Que atitude sua demonstra isso?
       O fato de olhar alternadamente para Madalena e para os santos do oratório, contrair as mãos...

4 – A raiva que ele sentia de Madalena chegou a um clímax. Em que momento? 
       Quando ele deseja matá-la.

5 – Apesar da insistência de Paulo Honório, Madalena não vê sentido em responder-lhe. Por quê?
       Porque vivem muito mal há três anos e a procura de um entendimento sempre resulta em briga.
   


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