domingo, 21 de maio de 2017

VIDAS SECAS - QUESTÕES COM GABARITO

TEXTO LITERÁRIO:VIDAS SECAS
                                        Graciliano Ramos

       O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal, provavelmente o sertão ia pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se nas árvores da beira do rio, descansavam, bebiam e, como em redor não havia comida, seguiam viagem para o sul. O casal agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado.
       Sinhá Vitória falou assim, mas Fabiano resmungou, franziu a testa, achando a frase extravagante. Aves matarem bois e cabras, que lembrança! Olhou a mulher, desconfiado, julgou que ela estivesse tresvariando. Foi sentar-se no banco do copiar, examinou o céu limpo, cheio de claridade de mau agouro, que a sombra das arribações cortava. Um bicho de penas, matar o gado! Provavelmente Sinhá Vitória não estava regulando.
       Fabiano estirou o beiço e enrugou mais a testa suada: impossível compreender a intenção da mulher. Não atinava, um bicho tão pequeno! Achou a coisa obscura e desistiu de aprofundá-la. Entrou em casa, trouxe o aió, preparou um cigarro, bateu com o fuzil na pedra, chupou uma tragada longa. Espiou os quatro cantos, ficou alguns minutos voltados para o norte, coçando o queixo.
       --- Chi! Que fim de mundo!
       Não permaneceria ali muito tempo. No silêncio comprido só se ouvia um rumor de asas.
       Como era que a Sinhá Vitória tinha dito? A frase dela tornou ao espírito de Fabiano e logo a significação apareceu. As arribações bebiam a água. Bem o gado curtia sede e morria. Muito bem. As arribações matavam o gado. Estava certo. Matutando, a gente via que era assim, mas Sinhá Vitória largava tiradas embaraçosas. Agora Fabiano percebia o que ela queria dizer. Esqueceu a infelicidade próxima, riu-se encantando com a esperteza de Sinhá Vitória. Uma pessoa como aquela valia ouro. Tinha ideias, sim senhor, tinha muita coisa no miolo. Nas situações difíceis encontravam saída. Então! descobrir que as arribações matavam o gado! É, matavam. Àquela hora o mulungu do bebedouro, sem folhas e sem flores, uma garrancharia pelada, enfeitava-se de penas.
       Desejou ver aquilo d perto, levantou-se, botou o aió a tiracolo, foi buscar o chapéu de couro e a espingarda de pederneira. Desceu o copiar, atravessou o pátio, avizinhou-se da ladeira pensando na cachorra Baleia. Coitadinha. Tinham-lhe aparecido aquelas coisas horríveis na boca, o pelo caíra, e ele precisava matá-la. Teria procedido bem? Nunca havia refletido nisso. A cachorra estava doente. Podia consentir que ela mordesse os meninos? Podia consentir? Loucura expor as crianças à hidrofobia. Pobre da Baleia. Sacudiu a cabeça para afastá-la do espírito. Era o diabo daquela espingarda que lhe trazia a imagem da cadelinha. A espingarda, sem dúvida. Virou o rosto defronte das pedras no fim do pátio, onde a Baleia aparecera fria, inteiriçada, com olhos comidos pelos urubus.
       Alargou o passo, desceu a ladeira, pisou a terra de aluvião, aproximou-se do bebedouro. Havia um bater doido de asas por cima da poça de água preta, a garrancheira do mulungu estava completamente invisível. Pestes. Quando elas desciam do sertão, acabava-se tudo. O gado ia finar-se, até os espinhos secariam.
       Suspirou. Que havia de fazer? Fugir de novo, aboletar-se noutro lugar, recomeçar a vida. Levantou a espingarda, puxou o gatilho sem pontaria. Cinco ou seis aves caíram no chão, o resto se espantou, os galhos queimados surgiram nus. Mas pouco a pouco se foram cobrindo, aquilo não tinha fim.
       Fabiano sentou-se desanimado na ribanceira do bebedouro, carregou lentamente a espingarda com chumbo miúdo e não socou a bucha, para a carga espalhar-se e alcançar muitos inimigos. Novo tiro, novas quedas, mas isto não deu nenhum prazer a Fabiano. Tinha ali comida para dois ou três dias; se possuísse munição, teria comida para semanas e meses.
       Examinou o polvarinho e o chumbeiro, pensou na viagem, estremeceu.
Tentou iludir-se imaginou que ela não se realizaria se ele não a provocasse com ideias ruins. Reacendeu o cigarro, procurou distrair-se falando baixo. Sinhá Terta era pessoa de muito saber naquelas beiradas. Como andariam as contas com o padrão? Estava ali o que ele não conseguia nunca decifrar. Aquele negócio de juros engolia tudo, e afinal o branco ainda achava que fazia favor. O soldado amarelo...
       Fabiano, encaiporado, fechou as mãos e deu murros na coxa. Diabo. Esforçava-se por esquecer uma infelicidade, e vinham outras infelicidades. Não queria lembrar-se do patrão nem do soldado amarelo. Mas lembrava-se, com desespero, enroscando-se como uma cascavel assanhada. Era um infeliz, era a criatura mais infeliz do mundo. Devia ter ferido naquela tarde o soldado amarelo, devia tê-lo cortado a facão. Cabra ordinário, mofino, encolhera-se e ensinara o caminho. Esfregou a testa suada e enrugada. Para que recordar vergonha? Pobre dele. Estava então decidido que viveria sempre assim?
                                                                                               GRACILIANO RAMOS.

1 – Graciliano Ramos traz uma inovação para o romance brasileiro:
a)     O ambiente nordestino pela primeira vez na Literatura Brasileira.
b)    A solução para os problemas da classe trabalhadora está no melhor aproveitamento do ambiente.
c)     A agressividade da paisagem nordestina.
d)    A abordagem psicológica no Romance do Nordeste.
e)     O tratamento ficcional das estruturas socioeconômicas.

2 – A estrutura dramática do texto está realçada a partir de imagens em torno:
a)     Das consequências da seca e do soldado amarelo.
b)    Das aves de arribação e dos pensamentos de Sinhá Vitória.
c)     Da fuga da seca e dos pensamentos de Sinhá Vitória.
d)    Do patrão opressor e da busca de uma nova vida.
e)     Da fome e da luta pela sobrevivência.

3 – NÃO é característica do texto lido:
a)     O predomínio de orações coordenadas que emprestam ao texto um conjunto de imagens visuais.
b)    A presença do monólogo interior do personagem, estreitando a distância entre este e o narrador.
c)     Embora escreva rigorosamente dentro dos padrões cultos do português, o autor permeia sua linguagem de regionalismos e coloquialismos.
d)    Os personagens são delineados a partir da inteligência, do instinto e da emoção.
e)     O contexto social integra a narrativa como mero cenário onde se passam as ações em que se envolvem os personagens.

4 – Retire do texto passagens que exemplifiquem o discurso indireto livre.
       “Uma pessoa como aquela valia ouro”.
       “Cabra ordinário, mofino...”


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