sexta-feira, 5 de maio de 2017

ARTIGO DE OPINIÃO: A CRÍTICA DESTRUTIVA E A COCHINCHINA - GUSTAVO IOSCHPE - COM GABARITO

 A CRÍTICA DESTRUTIVA E A COCHINCHINA

    Toda semana, abro contente a caixa de correio pra receber os e-mails de leitores. As reações são sempre interessantes. A correspondência se divide em quatro tipos. O primeiro é o escritor folgado que, com o jeitinho hipertrofiado e a cara de pau a toda prova, pede favores. Quando estava nos EUA, eram indicações de faculdades, bolsa, passagem aérea e o escambau. Agora, pedem dicas da Europa e até, pasme, que vá a uma loa para ver se é de confiança(?!).
        O segundo tipo é o leitor que elogia. A esses, meus mais sinceros agradecimentos.
        O terceiro é o que critica ideias. São os merecedores da mais entusiasmada recepção e apreço. O objetivo aqui sempre foi suscitar discussões, trazer ideias novas e também ouvi-las. Quando se nota que isso acontece, há uma sensação recompensadora de dever cumprido. As vezes, as críticas são ásperas, mas é do jogo – até porque a pancadaria é recíproca, e este escriba não é lá muito diplomático. Mas em geral as críticas mais ferozes são de grupos protegidos, que se veem afrontados por denúncias, o que me deixa feliz, sinal de que a carapuça serviu.
        O último tipo é o que incomoda. É o ataque pessoal, agressivo e desrespeitoso, que não visa construir nada. A esses, uma minoria, só cabe o olímpico desprezo. Mas, como os argumentos são repetidos e não passam de distorções, fico pensando até que ponto são repartidos por uma maioria silenciosa e que, talvez, essas falsas concepções funcionem como uma muralha que proíbe a contemplação das ideias. Como as personalidades são irrelevantes e o que fica são as ideias, tratemos de destruir esse véu.
        O primeiro argumento é que este espaço deveria ser usado com mais “responsabilidade”, dada a importância do veículo. Gostaria de compreender o conceito de responsabilidade dessas pessoas – ao que me parece, se é irresponsável quando se é contrário a elas. Passo por irresponsável. Se os dois lados reclamam, sinal de que não se está tomando partido. Seguirei, assim, no livre exercício da minha irresponsabilidade, contemplando apenas a honestidade intelectual como lema.
        A segunda tecla, que não cansa de ser martelada como uma falha: só aponto problemas, sem mostrar soluções. Fico lisonjeado por imaginar que alguns leitores pensam que eu tenho todas as respostas e as guardo por maldade. Não as tenho. Quando desconheço a solução, prefiro ficar calado a dar chute, o que é meio estranho em um país de ambidestros, que falam até sobre a bauxita refratária. Pretendo continuar respeitando a minha ignorância. Mas não acho que apontar problemas seja um desserviço. Toda solução começa com a percepção do problema, e discutir o problema é um passo no caminho da solução.
        O terceiro ponto, que reaparece mais frequentemente quando o cacete desce sobre o andar de cima, é que este escriba também seria da referida elite e, assim, não teria direito de criticar. Ora, pelo contrário. Não escondo o berço, que não me parece defeito, mas trunfo: as críticas e os questionamentos são mais legítimos e contundentes justamente quando feitos por quem pertence ao grupo avantajado. Somos, você e eu, elite: Lemos jornal. Mas acredito na criação de uma elite responsável, que entenda que esse país precisa mudar, e só espero poder botar mais minha minhoca na cabeça de quem acha que não precisa se preocupar.
        Por último, os escritos são desacreditados por virem de alguém que teria abandonado o seu país e agora cospe no prato em que comeu. Essa é a mais engraçada de todas. Nunca gostei tanto do Brasil quanto agora. Todo esse tempo fora do país tem servido como um grande laboratório para entender como e por que os países desenvolvidos funcionam enquanto nós patinamos, e aguardo o tempo de voltar à pátria e ajudar na criação de um grande país. Retorno esse que deve ser breve, pra desespero de todos que me escrevem sugerindo passagem só de ida pra Cochinchina.

                                 IOSCHPE, Gustavo. Folha de São Paulo, p. 7, 6 dez. 1999.

1 – Por que o autor afirma que aqueles que criticam suas ideias “são merecedores da mais entusiasmada recepção e apreço”?
       Porque são aqueles que dialogam com ele: são capazes de contra argumentar, discutir e sustentar suas próprias ideias.

2 – De início, ele diz que aqueles que o criticam à base do ataque pessoal deveriam ser ignorados porque suas críticas não visam construir nada. No entanto, em seguida, ele resolve responder a essas críticas. Por quê?
       Como as críticas com ataques pessoais se repetem, o autor pensa que elas podem ser compartilhadas por muita gente e, por isso, ele resolve atacá-las.

3 – Ele se contrapõe, então, a quatro afirmações típicas dessa crítica que ele considera destrutiva. Quais são essas quatro afirmações e que argumentos ele contrapõe a cada uma?
a)     O espaço deveria ser usado com mais “responsabilidade”.
       Ele questiona o conceito de responsabilidade de seus críticos e diz que, ao que lhe parece, ser irresponsável para estas pessoas é ser contrário a elas. Por isso, ele afirma que seguirá no livre exercício de sua “irresponsabilidade”, adotando a honestidade como lema.

       b) Ele só aponta problemas, sem mostrar soluções.
       Reconhece que não tem (nem pode ter) solução para tudo. Quando não sabe, prefere ficar calado a dar chute. Mas considera que apontar problemas é fundamental para solucioná-los porque compreendê-los com clareza é um passo na busca de sua solução.

       c) Ele seria da elite e não teria direito de criticá-la.
       Reconhece que é da elite (ele e o leitor porque ambos leem jornal) e defende a ideia de que o país precisa de uma elite responsável, que entenda que o país precisa mudar. Por isso, acha que tem sim o direito (e o dever) de criticar.

       d) Ele está desacreditado porque abandonou seu país.
       Ele diz que vai logo retornar e que este tempo fora do país tem sido fundamental para ele entender como e por que os países desenvolvidos funcionam enquanto nós patinamos.

4 -  O texto está escrito em língua-padrão. No entanto, o autor usa, algumas vezes, palavras e expressões que pertencem a uma variedade mais informal da língua, como escambau, cara de pau, dar chute. Que outras expressões tem essa mesma característica? Qual é o efeito dessa seleção lexical no texto?
       “Martelada” / “quando o cacete desce sobre o andar de cima” / “cospe no prato em que comeu” / “passagem só com ida para Conchinchina” / ...
Efeito desta seleção lexical: deixar o texto mais informal, mas em tom de bate-papo e para dar força expressiva àquilo que se está dizendo.


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