A CRÍTICA
DESTRUTIVA E A COCHINCHINA
Toda semana,
abro contente a caixa de correio pra receber os e-mails de leitores. As reações
são sempre interessantes. A correspondência se divide em quatro tipos. O
primeiro é o escritor folgado que, com o jeitinho hipertrofiado e a cara de pau
a toda prova, pede favores. Quando estava nos EUA, eram indicações de
faculdades, bolsa, passagem aérea e o escambau. Agora, pedem dicas da Europa e
até, pasme, que vá a uma loa para ver se é de confiança(?!).
O segundo tipo
é o leitor que elogia. A esses, meus mais sinceros agradecimentos.
O terceiro é o
que critica ideias. São os merecedores da mais entusiasmada recepção e apreço.
O objetivo aqui sempre foi suscitar discussões, trazer ideias novas e também
ouvi-las. Quando se nota que isso acontece, há uma sensação recompensadora de
dever cumprido. As vezes, as críticas são ásperas, mas é do jogo – até porque a
pancadaria é recíproca, e este escriba não é lá muito diplomático. Mas em geral
as críticas mais ferozes são de grupos protegidos, que se veem afrontados por
denúncias, o que me deixa feliz, sinal de que a carapuça serviu.
O último tipo é
o que incomoda. É o ataque pessoal, agressivo e desrespeitoso, que não visa
construir nada. A esses, uma minoria, só cabe o olímpico desprezo. Mas, como os
argumentos são repetidos e não passam de distorções, fico pensando até que
ponto são repartidos por uma maioria silenciosa e que, talvez, essas falsas
concepções funcionem como uma muralha que proíbe a contemplação das ideias.
Como as personalidades são irrelevantes e o que fica são as ideias, tratemos de
destruir esse véu.
O primeiro argumento
é que este espaço deveria ser usado com mais “responsabilidade”, dada a
importância do veículo. Gostaria de compreender o conceito de responsabilidade
dessas pessoas – ao que me parece, se é irresponsável quando se é contrário a
elas. Passo por irresponsável. Se os dois lados reclamam, sinal de que não se
está tomando partido. Seguirei, assim, no livre exercício da minha
irresponsabilidade, contemplando apenas a honestidade intelectual como lema.
A segunda
tecla, que não cansa de ser martelada como uma falha: só aponto problemas, sem
mostrar soluções. Fico lisonjeado por imaginar que alguns leitores pensam que
eu tenho todas as respostas e as guardo por maldade. Não as tenho. Quando
desconheço a solução, prefiro ficar calado a dar chute, o que é meio estranho
em um país de ambidestros, que falam até sobre a bauxita refratária. Pretendo
continuar respeitando a minha ignorância. Mas não acho que apontar problemas
seja um desserviço. Toda solução começa com a percepção do problema, e discutir
o problema é um passo no caminho da solução.
O terceiro
ponto, que reaparece mais frequentemente quando o cacete desce sobre o andar de
cima, é que este escriba também seria da referida elite e, assim, não teria
direito de criticar. Ora, pelo contrário. Não escondo o berço, que não me
parece defeito, mas trunfo: as críticas e os questionamentos são mais legítimos
e contundentes justamente quando feitos por quem pertence ao grupo avantajado.
Somos, você e eu, elite: Lemos jornal. Mas acredito na criação de uma elite
responsável, que entenda que esse país precisa mudar, e só espero poder botar
mais minha minhoca na cabeça de quem acha que não precisa se preocupar.
Por último, os
escritos são desacreditados por virem de alguém que teria abandonado o seu país
e agora cospe no prato em que comeu. Essa é a mais engraçada de todas. Nunca
gostei tanto do Brasil quanto agora. Todo esse tempo fora do país tem servido
como um grande laboratório para entender como e por que os países desenvolvidos
funcionam enquanto nós patinamos, e aguardo o tempo de voltar à pátria e ajudar
na criação de um grande país. Retorno esse que deve ser breve, pra desespero de
todos que me escrevem sugerindo passagem só de ida pra Cochinchina.
IOSCHPE,
Gustavo. Folha de São Paulo, p. 7, 6 dez. 1999.
1 – Por que o autor afirma que aqueles que criticam suas
ideias “são merecedores da mais entusiasmada recepção e apreço”?
Porque
são aqueles que dialogam com ele: são capazes de contra argumentar, discutir e
sustentar suas próprias ideias.
2 – De início, ele diz que aqueles que o criticam à base do
ataque pessoal deveriam ser ignorados porque suas críticas não visam construir
nada. No entanto, em seguida, ele resolve responder a essas críticas. Por quê?
Como
as críticas com ataques pessoais se repetem, o autor pensa que elas podem ser
compartilhadas por muita gente e, por isso, ele resolve atacá-las.
3 – Ele se contrapõe, então, a quatro afirmações típicas
dessa crítica que ele considera destrutiva. Quais são essas quatro afirmações e
que argumentos ele contrapõe a cada uma?
a) O espaço deveria ser usado com mais
“responsabilidade”.
Ele questiona o conceito de responsabilidade de seus críticos
e diz que, ao que lhe parece, ser irresponsável para estas pessoas é ser
contrário a elas. Por isso, ele afirma que seguirá no livre exercício de sua
“irresponsabilidade”, adotando a honestidade como lema.
b) Ele só aponta
problemas, sem mostrar soluções.
Reconhece que não tem (nem pode ter) solução para tudo.
Quando não sabe, prefere ficar calado a dar chute. Mas considera que apontar
problemas é fundamental para solucioná-los porque compreendê-los com clareza é
um passo na busca de sua solução.
c) Ele seria da
elite e não teria direito de criticá-la.
Reconhece que é da elite (ele e o leitor porque ambos leem jornal) e
defende a ideia de que o país precisa de uma elite responsável, que entenda que
o país precisa mudar. Por isso, acha que tem sim o direito (e o dever) de criticar.
d) Ele está
desacreditado porque abandonou seu país.
Ele
diz que vai logo retornar e que este tempo fora do país tem sido fundamental
para ele entender como e por que os países desenvolvidos funcionam enquanto nós
patinamos.
4 - O texto está
escrito em língua-padrão. No entanto, o autor usa, algumas vezes, palavras e
expressões que pertencem a uma variedade mais informal da língua, como
escambau, cara de pau, dar chute. Que outras expressões tem essa mesma
característica? Qual é o efeito dessa seleção lexical no texto?
“Martelada” / “quando o cacete desce sobre o andar de cima” / “cospe no
prato em que comeu” / “passagem só com ida para Conchinchina” / ...
Efeito desta seleção lexical: deixar o texto mais
informal, mas em tom de bate-papo e para dar força expressiva àquilo que se
está dizendo.
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