CONTO - AMOR
LUIZ VILELA
Ela apontou
para a vitrine:
--- Olha ali
que amor de sapato”
Chegaram mais de perto. Ele viu seu rosto refletido
difusamente no vidro: um rosto cansado, encardido, a barba crescida.
--- Não é um amor?
--- É.
--- Qual que você está pensando? Estou falando é aquele ali,
aquele branco ali, ó.
--- Eu sei.
--- Aquele branco de lá.
Ele olhava fixo para o vidro, aproximando e afastando a
cabeça, tentando apanhar a imagem completa de seu rosto, que parecia fugir numa
brincadeira diabólica.
--- Você acha mesmo?
--- Acha o quê?
--- Bonito, esse sapato, o que...
--- Acho; não falei que acho?
--- Então qual que é Ele?
--- Aquele ali – arriscou.
--- Não.
--- Estou falando aquele segundo, de lá pra cá.
--- Na fila de cima?
--- É.
--- Também não.
--- Então é aquele furadinho ali.
--- Furadinho? Ah: também não.
--- Então não sei, pronto.
Começou a andar, de cara fechada. Ela o acompanhou.
Era fim de tarde, avenida movimentada, pessoas voltando para
casa com embrulhos, rapazes na beirada do passeio, colegiais em grupos, lojas
fechando, filas, rosto cansados, gastos, suados, barulho dos lotações, estalo
dos elétricos.
--- Estava só querendo puxar conversa – ela falou – Não era
caso de você ficar assim,
--- Assim?
--- Com essa cara.
--- Quê que tem minha cara?
--- Nada. Não tem nada.
Ele olhou para ela: ela não olhou para ele.
--- Está bem, aqui minha cara, ó – fez uma careta alegre. –
tá boa assim?
--- Não foi pra chatear que eu estava perguntando; queria só
puxar conversa; você estava tão calado...
--- Eu sei, bem, eu sei – Ele falou, sem raiva, sem
irritação, sem mágoa, pensando como devia ser bom estar àquela hora lá em cima
daquela serra, aquela serra alta, aquela serra calma, longe, azulada, que
aparecia lá no fim da avenida, por trás dos edifícios.
--- Mas se você não quer conversar, então não conversemos;
como você quiser.
--- Eu quero – quero o quê? pensou, sem se importar com a
resposta, olhando para um lotação que passou soltando fumaça.
--- Você anda tão diferente... – ela desabafou. – Calado,
distraído... ríspido...
--- Estou cansado.
--- Você sempre diz isso.
--- E quê que você queria que eu dissesse?
--- A verdade.
--- E essa não é a verdade?
--- Não.
--- Então qual que é a verdade?
Ela não respondeu.
--- Hem, qual que é a verdade? Você não vai me dizer?
Ela não respondeu.
--- Bem, então não diga.
--- Você não é mais como era antes, quando nos conhecemos...
--- E você; você acha que é a mesma? Ninguém é sempre o
mesmo.
--- Você era alegre, brincalhão...
--- Bem, eu estou cansado, você não vê? Não vê que eu estou cansado?
Olha pra minha cara: não vê?
--- Não é cansaço.
--- Então me diga quê que é.
--- Você sabe.
--- Não sei.
--- Sabe sim.
--- Juro que não sei.
--- Você não gosta mais de mim.
--- É? Escuta: por que você diz isso se sabe que eu gosto,
hem?
--- Se você gostasse você não estaria assim.
--- Assim como?
--- Como está agora.
--- Ai meu Deus – ele passou a mão pelo rosto sofridamente.
--- Aí, não estou dizendo? Não pode falar nada que você
explode.
--- Isso é explodir?
--- Você está uma pilha.
--- Tá bom; então não vou falar mais nada; não posso falar
mais nada que você diz que eu estou explodindo, ríspido, uma pilha e não sei
mais o quê.
--- Não fale, a boca é sua.
--- Sua é que não é.
--- Ainda bem.
O silêncio ia inteirar um quarteirão, quando ele falou:
--- Por que não podemos passar sem brigas? Por que a gente
tem que estar sempre brigando?
--- Não é minha culpa.
--- Eu sei: é minha.
--- Hoje, por exemplo: estava só puxando conversa e você...
--- Foi ríspido, já sei; não precisa começar tudo de novo.
--- Quer saber duma coisa? O melhor é nós terminarmos.
--- Terminarmos?
Ele sentiu um frio.
--- Não combinamos mais mesmo.
De repente tudo perdido, não há mais palavras nem gestos, só
um espaço escuro sufocando a garganta.
--- Acho que não é caso disso... Não é caso da gente
terminar... Eu sei, reconheço que estou mesmo como você falou: mas não é minha
culpa – falou de cabeça baixa, como quem pede perdão. – Não é porque eu quero
que eu estou assim.
Haviam chegado ao ponto de ônibus, que já estava para sair.
--- Vou tomar esse ainda – disse ela. – Tenho de chegar mais
cedo hoje em casa.
Ele olhou para ela, e não sabendo o que dizer, voltou a olhar
para o chão.
--- Até logo – ela disse.
--- Amanhã te telefono?
--- Se você quiser.
--- E você?
Ela já havia entrado no ônibus.
Da janelinha olhou para ele: mas não sorriu, nem abanou lhe a
mão.
Ele ficou vendo o ônibus se distanciar pela avenida, o rosto
abatido, pensando por que o amor era tão difícil.
VILELA, Luiz. Amor. In: _____. Tarde da noite. 2. ed.
São Paulo, Ática, 1980. p. 58-61.
1 – No diálogo das personagens predomina o nível coloquial de
linguagem. Copie três expressões que comprovem essa afirmativa.
Qual
que você está pensando; aquele branco ali, ó; Qual que é ele? puxar conversa; E
quê que você queira...
2 – O contista concentra-se em fixar um momento que seja
muito importante, singular, na vida das personagens.
a) Que momento é esse, no conto lido?
A consciência de que o
relacionamento amoroso é complexo.
b) Que frase do último parágrafo resume
o significado desse momento?
“... por que o amor era tão
difícil.”
c) Que fato serve de pretexto para
desencadear esse momento?
Uma discussão a propósito
de um par de sapatos exposto numa vitrina.
3 – O cenário onde se passa a ação é urbano.
a) Que trecho do conto opõe ao cenário
urbano um ambiente bucólico?
“... como devia ser bom
estar àquela hora lá em cima daquela serra,
aquela serra calma, longe,
azulada, que aparecia lá no fim da avenida, por trás dos edifícios.”
b) Qual é a função dessa oposição?
O aluno deverá deduzir que
o autor enfatiza, por antítese, a dificuldade de viver numa cidade grande.
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