MEMÓRIAS
DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS
Manuel Antônio de Almeida
“Logo que pode andar e falar tornou-se um flagelo; quebrava e rasgava
tudo que lhe vinha à mão. Tinha uma paixão decidida pelo chapéu armado do
Leonardo; se este o deixava por esquecimento em algum lugar ao seu alcance,
tomava-o imediatamente, esperava com ele todos os móveis, punha-lhe dentro tudo
o que encontrava, esfregava-o em uma parede, e acabava por varrer com ele a
casa; até que Maria, exasperada pelo que aquilo havia de custar aos ouvidos, e
talvez às costas, arrancava-lhe das mãos a vítima infeliz. Era, além de
traquinas, guloso; quando não traquinava, comia. A Maria não lhe perdoava;
trazia-lhe bem maltratada uma região do corpo; porém ele não se emendava, que
era também teimoso, e as travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas.
Assim chegou aos sete anos.
Afinal de contas a Maria sempre era saloia, e o Leonardo começava a
arrepender-se seriamente de tudo que tinha feito por ela, e tinha razão porque,
digamos depressa e sem mais cerimônia, havia ele desde certo tempo concebido
fundadas suspeitas de que era atraiçoado. Havia alguns meses atrás tinha notado
que um certo sargento passava-lhe muitas vezes pela porta, e enfiava olhares
curiosos, através das rótulas: uma ocasião, recolhendo-se, parecera-lhe que o
vira encostado à janela. Isto porém passou sem mais novidade.
Depois começou a estranhar eu um certo colega seu o procurasse em casa,
para tratar de negócios do ofício, sempre em horas desencontradas: porém isto
também passou breve. Finalmente aconteceu por três ou quatro vezes esbarrar-se
junto de casa com o capitão do navio em que tinha vindo de Lisboa, e isto
causou-lhe sérios cuidados. Um dia de manhã entrou sem ser esperado pela porta
adentro; alguém que estava na sala abriu precipitadamente a janela, saltou por
ela para a rua, e desapareceu.
À vista disso nada havia a duvidar; o pobre homem perdeu, como se
costuma dizer, as estribeiras; ficou cego de ciúmes. Largou apressado sobre um
banco uns autos que trazia embaixo do braço, endireitou para Maria com os
punhos cerrados.
--- Grandessíssimo! ...
E a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou... e pôs-se a
tremer com todo o corpo.
A Maria recuou dois passos e pôs-se em guarda, pois também não era das
que receava com qualquer cousa.
--- Tira-te, ó Leonardo!
--- Não chames mais pelo meu nome, não chames... que tranco-te esta boca
a socos...
--- Safe-se daí! Quem lhe mandou pôr-se aos namoricos comigo a bordo?
Isto exasperou o Leonardo; a lembrança do amor aumentou-lhe a dor da
traição e o ciúme e a raiva de que se achava possuído transbordaram em socos
sobre Maria, que depois de uma tentativa inútil de resistência desatou a
correr, a chorar e a gritar:
--- Ai... ai... acuda, Senhor Compadre... Senhor Compadre!
Porém o compadre ensaboava nesse momento a cara de um freguês e não
podia larga-lo.
Portanto a Maria pagou caro e por junto todas as contas. Escolheu-se a
choramingar em um canto.
O menino assistira a toda essa cena com imperturbável sangue-frio:
enquanto a Maria apanhava e o Leonardo esbravejava, ele ocupava-se tranquilamente
em rasgar as folhas dos autos que este tinha largado ao entrar, e em fazer
delas uma grande coleção de cartuchos.
Quando, esmorecida a raiva, o Leonardo pôde ser alguma cousa mais do que
ciúme, reparou então na obra meritória em que se ocupava o pequeno.
Enfureceu-se de novo: suspendeu o menino pelas orelhas, fê-lo dar no ar
uma meia-volta, ergue o pé direito, assenta-lhe em cheio sobre os glúteos,
atirando-o sentado a quatro braças de distância.
--- És filho de uma pisadela e de um beliscão; mereces que um pontapé te
acabe a casta.
Manuel Antônio de Almeida.
1 – Sobre o texto:
a)
O
tema de que trata o texto NÃO era característico do Romantismo. Cite-o.
Traição.
b)
Por
que os personagens NÃO são representativos do romance romântico?
São movidos pelo ciúme,
desamor, falta de consideração, defeitos que as personagens românticas não
apresentam.
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