domingo, 22 de maio de 2022

ROMANCE: OS SERTÕES - CAPÍTULO III - EUCLIDES DA CUNHA - COM GABARITO

 Romance: OS SERTÕES – Capítulo III

                  Euclides da Cunha

        O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

        A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.

        É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço `geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo – cai é o termo – de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.

        É o homem permanentemente fatigado.

        Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.

        Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

        Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Nova Cultural, 2002.

Fonte: Livro – Viva Português 2° – Ensino médio – Língua portuguesa – 1ª edição 1ª impressão – São Paulo – 2011. Ed. Ática. p. 277-9.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Acobreado: amorenado.

·        Atonia: perda de tônus; inércia.

·        Canhestro: desajeitado, torto.

·        Combalido: abalado, enfraquecido.

·        Desempeno: elegância.

·        Empertigar-se: aprumar-se, endireitar-se.

·        Espenda: parte da sela em que se apoia a coxa do cavaleiro.

·        Estadear: demonstrar, ostentar.

·        Hércules-Quasímodo: substantivo formado a partir de: Hércules (indivíduo de força incomum, assim como o herói grego) e Quasímodo (indivíduo monstruoso, feio, assim como a personagem literária).

·        Remorado: adiado.

·        Sofrear: suspender ou modificar a marcha de uma cavalgadura puxando as rédeas.

·        Tabaréu: caipira.

·        Titã: pessoa de características físicas ou morais extraordinárias.

·        Translação: movimento de um corpo em que todos os componentes se deslocam paralelamente e mantêm as mesmas distâncias entre si.

·        Umbral: local de entrada, cada uma das peças verticais que compõem as aberturas em que se encaixam portas ou janelas.

02 – Euclides da Cunha afirma: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”.

a)   Se, de acordo com o pensamento desse autor, o sertanejo é antes de tudo um forte, por que sua força não se revela numa observação inicial?

Porque, de acordo com o texto, suas características físicas mostrariam-no, à primeira vista, como alguém desgracioso, desengonçado. Seus gestos e sua postura indicariam uma pessoa preguiçosa, ou seja, sua presença acabaria contrariando a ideia de que ele é um forte.

b)   Considerando o texto, em que situação essa força se revelaria?

Quando aparecesse um incidente que exigisse dele algum tipo de reação. Daí sua postura e seus gestos se modificariam, ele se tornaria um gigante ágil e determinado na realização de seus intentos.

03 – A forma é fundamental na construção desse trecho. O termo “Hércules-Quasímodo” resume as ideias apresentadas pelo autor sobre aquilo que, para ele, seria a essência contraditória do sertanejo. Mas o autor não se restringe a esse termo; ele enumera diversas características para construir sua visão.

a)   Aponte no caderno algumas expressões do texto que aproximam o sertanejo de um Hércules.

Ombros possantes, olhar desassombrado e forte, aspecto dominador de um titã acobreado e potente, desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.

b)   Aponte agora algumas expressões que o relacionam a um Quasímodo.

Desgracioso, desengonçado, torto; fealdade típica dos fracos; andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, membros desarticulados; humildade deprimente; uma simplicidade ridícula e adorável.

04 – A descrição do sertanejo feita por Euclides da Cunha confirma ou contraria a visão que Lentz, do livro Canaã, tem do brasileiro em geral? Justifique sua resposta.

      Contraria. Lentz considera os brasileiros preguiçosos, diz que a mestiçagem é negativa. O narrador de Os sertões escreve que o sertanejo tem certo aspecto aparentemente fatigado, o que parecia confirmar a visão de Lentz, mas logo destaca a força, o aspecto dominador e ágil revelado diante de uma necessidade.

05 – A visão da personagem Lentz sobre o outro – ou seja, o diferente – é francamente negativa e preconceituosa, já que considera a mestiçagem dos brasileiros algo que os tornaria inferiores aos europeus. De outro lado, o escritor brasileiro Euclides da Cunha, ao descrever o brasileiro do sertão, enumera diversos aspectos que também demonstram a sua visão sobre o outro. Pensando nisso, responda:

a)   De acordo com o ponto de vista atual, que tipos de preconceito podem ser percebidos no discurso apresentado em Os sertões? Explique.

O autor de Os sertões, embora procure compreender o outro, baseia-se em preconceitos relacionados ao aspecto físico do sertanejo, que ele considera inferior, “desgracioso”, “desengonçado”, para construir o seu discurso.

b)   Qual a sua relação com pessoas que possuem características diferentes das suas? É difícil par você compreender essas diferenças?

Resposta pessoal do aluno.

 

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