Romance: O CORTIÇO – Fragmento
Aluísio Azevedo
[...]
A primeira que se pôs a lavar foi a
Leandra, por alcunha a “Machona”, portuguesa feroz, berradora, pulsos cabeludos
e grossos, anca de animal do campo. Tinha duas filhas, uma casada e separada do
marido, Ana das Dores, a quem só chamavam a “das Dores”, e a outra donzela
ainda, a Neném, e mais um filho, o Agostinho, menino levado dos diabos, que
gritava tanto ou melhor que a mãe. A das Dores morava em sua casinha à parte,
mas toda a família habitava no cortiço.
Ninguém ali sabia ao certo se a Machona
era viúva ou desquitada; os filhos não se pareciam uns com os outros. A das
Dores, sim, afirmavam que fora casada e que largara o marido para meter-se com
um homem do comércio; e que este, retirando-se para a terra e não querendo
soltá-la ao desamparo, deixara o sócio em seu lugar. Teria vinte e cinco anos.
Neném dezessete. Espigada, franzina e
forte, com uma proazinha de orgulho da sua virgindade, escapando como enguia
por entre os dedos dos rapazes que a queriam sem ser para casar. Engomava bem e
sabia fazer roupa branca de homem com muita perfeição.
Ao lado da Leandra foi colocar-se à sua
tina a Augusta Carne-Mole, brasileira, branca, mulher de Alexandre, um mulato
de quarenta anos, soldado da polícia, pernóstico, de grande bigode preto,
queixo sempre escanhoado e um luxo de calças brancas engomadas e botões limpos
na farda, quando estava de serviço. Também tinham filhos, mas ainda pequenos,
um dos quais, a Juju, vivia na cidade com a madrinha que se encarregava dela.
Esta madrinha era uma cocote de trinta mil-réis para cima, a Léonie, com
sobrado na cidade. Procedência francesa.
Alexandre, em casa, à hora do descanso,
nos seus chinelos, e na sua camisa desabotoada, era muito chão com os
companheiros de estalagem, conversava, ria e brincava, mas envergando o
uniforme, encerando o bigode e empunhando a sua chibata, com que tinha o
costume de fustigar as calças de brim, ninguém mais lhe via os dentes e então a
todos falava teso e por cima do ombro. A mulher, a quem ele só dava tu quando
não estava fardado, era de uma honestidade proverbial no cortiço, honestidade
sem mérito, porque vinha da indolência do seu temperamento e não do arbítrio do
seu caráter.
[...].
AZEVEDO, Aluísio. O
cortiço. São Paulo: Escala Educacional, 2006.
Fonte: Livro – Viva
Português 2° – Ensino médio – Língua portuguesa – 1ª edição 1ª impressão – São
Paulo – 2011. Ed. Ática. p. 146-7.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Arbítrio:
opinião, vontade.
·
Chão: despretensioso, sincero.
·
Dar
tu:
chamar por tu, referir-se a alguém por meio do pronome
tu. Pelo costume português, chamam-se por tu apenas as pessoas íntimas.
·
Envergar: trajar, vestir.
·
Fustigar: açoitar.
·
Indolência: preguiça, inércia.
·
Pernóstico: afetado, pretencioso.
·
Proverbial: famoso, sempre citado como modelo de alguma coisa.
·
Teso: áspero, ríspido.
02 – Esse trecho destaca
alguns aspectos da vida das personagens Leandra, das Dores, Augusta e
Alexandre.
a) Reproduza o quadro abaixo no caderno e escreva o nome de cada personagem junto ao aspecto que lhe retrata.
·
Organização familiar: Leandra, das Dores.
·
Comportamento: Augusta.
·
Importância que atribui ao papel social: Alexandre.
b) b) Resuma as informações dadas sobre cada personagem.
Não se sabe se Leandra é viúva ou desquitada, apenas que seus filhos
não se parecem entre si. Das Dores já foi casada e, vive, provavelmente, seu
terceiro relacionamento. Alexandre é um homem convicto do seu papel social: sua
farda policial é o que o distingue dos demais, até de si mesmo, que se permite
um comportamento mais relaxado quando não a está vestindo. Augusta, esposa de
Alexandre, apresenta comportamento exemplar, mas não por convicção moral, e sim
por indiferença às coisas, por apatia.
c) O narrador, nessas descrições, faz explicitamente algum tipo de julgamento moral? Ou seja, em algum momento ele avalia o comportamento das personagens, sugerindo que suas atitudes estejam certas ou erradas?
O narrador não afirma explicitamente serem certas ou erradas as
atitudes das personagens, mas faz pelo menos um comentário, no final do texto.
03 – A descrição do
amanhecer no cortiço revela que:
a)
Os animais não tinham acesso ao local.
b)
O lugar era bastante tranquilo nas primeiras
horas do dia.
c)
Vendedores de hortaliças eram os primeiros a
chegar ao local.
d)
O barulho dos mercadores e o
movimento eram grandes desde cedo.
04 – Qual dos personagens
citados no trecho era morador do cortiço?
a) Das Dores. b)
Leandra. c)
Augusta.
05 – “A primeira que se pôs
a lavar foi a Leandra, por alcunha a ‘Machona’”, o termo em destaque tem o
sentido de
a)
referência b)
vontade c)
implicância d) apelido.
06 – O narrador emite um
juízo acerca do tipo de honestidade da Augusta Carne-Mole, mulher do soldado de
polícia, Alexandre. Releia: “[...] honestidade sem mérito, porque vinha da
indolência do seu temperamento e não do arbítrio do seu caráter.”
a) O que você entende por “arbítrio do caráter”?
Trata-se de atitudes que devem ser medidas, ponderadas, levando em
consideração a própria consciência, as leis e a moral vigente. Isso exige
atitudes e escolhas baseadas na compreensão de cada um sobre o que é
considerado certo ou errado.
b) Por que, segundo o narrador, não havia mérito da honestidade praticada por Augusta?
Segundo o narrador, Augusta era honesta por preguiça, ou seja,
porque era mais fácil para ela ser assim, não porque sua honestidade estivesse
baseada numa moral sólida envolvendo ponderações e escolhas.
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