domingo, 22 de maio de 2022

ROMANCE: IRACEMA CAPÍTULO XV - JOSÉ DE ALENCAR - COM GABARITO

 Romance: Iracema Capítulo XV          

                 José de Alencar

        [...]

        Nasceu o dia e expirou.

        Já brilha na cabana de Araquém o fogo, companheiro da noite. Correm lentas e silenciosas no azul do céu, as estrelas, filhas da lua, que esperam a volta da mãe ausente.

        Martim se embala docemente; e como a alva rede que vai e vem, sua vontade oscila de um a outro pensamento. Lá o espera a virgem loura dos castos afetos; aqui lhe sorri a virgem morena dos ardentes amores.

        Iracema recosta-se langue ao punho da rede; seus olhos negros e fúlgidos, ternos olhos de sabiá, buscam o estrangeiro e lhe entram n'alma. O cristão sorri; a virgem palpita; como o saí, fascinado pela serpente, vai declinando o lascivo talhe, que se debruça enfim sobre o peito do guerreiro.

        Já o estrangeiro a preme ao seio; e o lábio ávido busca o lábio que o espera, para celebrar nesse ádito d'alma, o himeneu do amor.

        No recanto escuro o velho Pajé, imerso em funda contemplação e alheio às cousas deste mundo, soltou um gemido doloroso Pressentira o coração o que não viram os olhos? Ou foi algum funesto presságio para a raça de seus filhos, que assim ecoou n'alma de Araquém?

        Ninguém o soube.

        O cristão repetiu do seio a virgem indiana. Ele não deixará o rasto da desgraça na cabana hospedeira. Cerra os olhos para não ver; e enche sua alma com o nome e a veneração de seu Deus:

        — Cristo! . . . Cristo! . . .

        Volta a serenidade ao seio do guerreiro branco, mas todas as vezes que seu olhar pousa sobre a virgem tabajara, ele sente correr-lhe pelas veias uma onda de ardente chama. Assim quando a criança imprudente revolve o brasido de intenso fogo, saltam as faúlhas inflamadas que lhe queimam as faces.

        Fecha os olhos o cristão, mas na sombra de seu pensamento surge a imagem da virgem, talvez mais bela. Embalde chama o sono às pálpebras fatigadas; abrem-se, malgrado seu.

        Desce-lhe do céu ao atribulado pensamento uma inspiração.

        — Virgem formosa do sertão, esta é a última noite que teu hóspede dorme na cabana de Araquém, onde nunca viera, para teu bem e seu. Faze que seu sono seja alegre e feliz.

        — Manda; Iracema te obedece. Que pode ela para tua alegria?

        O cristão falou submisso, para que não o ouvisse o velho Pajé:

        — A virgem de Tupã guarda os sonhos da jurema que são doces e saborosos!

        Um triste sorriso pungiu os lábios de Iracema:

        — O estrangeiro vai viver para sempre à cintura da virgem branca; nunca mais seus olhos verão a filha de Araquém, e ele já quer que o sono feche suas pálpebras, e que o sonho o leve à terra de seus irmãos!

        — O sono é o descanso do guerreiro, disse Martim; e o sonho a alegria d'alma. O estrangeiro não quer levar consigo a tristeza da terra hospedeira, nem deixá-la no coração de Iracema!

        A virgem ficou imóvel.

        — Vai, e torna com o vinho de Tupã.

        Quando Iracema foi de volta, já o Pajé não estava na cabana; tirou a virgem do seio o vaso que ali trazia oculto sob a carioba de algodão entretecida de penas. Martim lho arrebatou das mãos, e libou as gotas do verde e amargo licor.

        Agora podia viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo, que ali viçava entre sorrisos, como o fruto na corola da flor. Podia amá-la, e sugar desse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem.

        O gozo era vida, pois o sentia mais forte e intenso; o mal era sonho e ilusão, que da virgem não possuía senão a imagem.

        Iracema afastara-se opressa e suspirosa.

        Abriram-se os braços do guerreiro adormecido e seus lábios; o nome da virgem ressoou docemente.

        A juruti, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro; bate as asas, e voa a conchegar-se ao tépido ninho. Assim a virgem do sertão, aninhou-se nos braços do guerreiro.

        Quando veio a manhã, ainda achou Iracema ali debruçada, qual borboleta que dormiu no seio do formoso cacto. Em seu lindo semblante acendia o pejo vivos rubores; e como entre os arrebóis da manhã cintila o primeiro raio do sol, em suas faces incendidas rutilava o primeiro sorriso da esposa, aurora de fruído amor.

        A jandaia fugira ao romper d'alva e para não tornar mais à cabana.

        Vendo Martim a virgem unida ao seu coração, cuidou que o sonho continuava; cerrou os olhos para torná-los a abrir.

        A pocema dos guerreiros, troando pelo vale, o arrancou ao doce engano; sentiu que já não sonhava, mas vivia. Sua mão cruel abafou nos lábios da virgem o beijo que ali se espanejava.

        — Os beijos de Iracema são doces no sonho; o guerreiro branco encheu deles sua alma. Na vida, os lábios da virgem de Tupã amargam e doem como o espinho da jurema.

        A filha de Araquém escondeu no coração a sua ventura. Ficou tímida e inquieta, como a ave que pressente a borrasca no horizonte. Afastou-se rápida, e partiu.

        As águas do rio banharam o corpo casto da recente esposa.

        Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras.

        [...].

ALENCAR, José de. Iracema. Porto Alegre: L&PM, 2002.

Fonte: Livro – Viva Português 2° – Ensino médio – Língua portuguesa – 1ª edição 1ª impressão – São Paulo – 2011. Ed. Ática. p. 41-4.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Arrebóis: os tons avermelhados do céu no amanhecer e no entardecer.

·        Borrasca: temporal com chuvas e ventos intensos.

·        Carioba: espécie de camisa de algodão.

·        Corola: conjunto de pétalas da flor.

·        Entretecida: entrelaçada, intercalada.

·        Espanejar: desabrochar.

·        Fluído: gozado, desfrutado.

·        Jandaia: designação comum a várias aves semelhantes, como papagaios e periquitos.

·        Juruti: designação comum a várias aves semelhantes, como pombas e rolinhas.

·        Libar: beber, sorver; beber mais por prazer do que por necessidade.

·        Pejo: pudor, vergonha.

·        Pocema: grito de guerra.

·        Pungir: começar a apontar, começar a aflorar.

·        Rubor: a cor vermelha nas faces provocada por vergonha.

·        Rutilar: fazer brilhar, resplandecer.

·        Troar: retumbar, trovejar.

·        Viçar: desenvolver-se com força.

02 – Releia:

        “— A virgem de Tupã guarda os sonhos da jurema que são doces e saborosos!

        Um triste sorriso pungiu os lábios de Iracema:

        — O estrangeiro vai viver para sempre à cintura da virgem branca; nunca mais seus olhos verão a filha de Araquém, e ele já quer que o sono feche suas pálpebras, e que o sonho o leve à terra de seus irmãos!”. O que Iracema imaginava que Martim desejava sonhar sob o efeito da bebida da jurema?

      Iracema imaginava que os sonhos de Martim seriam ligados a sua terra (Portugal) e a tudo que deixara por lá.

03 – Diante do desejo de Martim de provar a jurema, um sorriso triste aponta nos lábios da índia. Qual pode ter sido a razão da tristeza de Iracema?

      Ela possivelmente imaginou que, com a proximidade da partida, Martim preferisse ficar mais tempo com ela a sonhar com a mulher branca que deixara em Portugal.

04 – As diversas comparações e metáforas presentes ao longo do romance Iracema são responsáveis pela criação do tom poético da obra, como em:

        “— O sono é o descanso do guerreiro, disse Martim; e o sonho a alegria d'alma. O estrangeiro não quer levar consigo a tristeza da terra hospedeira, nem deixá-la no coração de Iracema!

        Observe a oposição representada pelos termos destacados e complete a frase a seguir no caderno. O elemento, nesse contexto, que poderia corresponder à tristeza da terra hospedeira, aquilo que um sonho bom deveria substituir, é .............

·        A saudade da própria terra, Portugal, que Martim deixou há bastante tempo.

·        A saudade da noiva, que o espera em sua terra de origem.

·        A impossibilidade de ter Iracema, de amá-la.

·        As tristezas e as decepções vividas no Brasil.

·        A melancolia observada em todos os índios da tribo em que estava.

05 – Releia:

        “Agora podia viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo, que ali viçava entre sorrisos, como o fruto na corola da flor. Podia amá-la, e sugar desse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem.”. Se o amor de Martim pela índia era impossível, por que, nesse momento, ele acredita poder “viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo”?

      Porque o efeito da jurema lhe dava a possibilidade de viver em sonho algo que não poderia ser vivido na realidade.

06 – Complete as frases no caderno. No contexto do trecho: “Podia amá-la, e sugar desse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem”, mel e perfume significam a sensação agradável sentida naquele estado de sonho. A frase “sem deixar veneno no seio da virgem”, portanto, pode significar .........

·        Não permitir que Iracema bebesse o licor de Tupã, bebida destinada apenas aos guerreiros.

·        Viver as delícias do contato com Iracema apenas em sonho, sem de fato consumar o amor, protegendo, assim, a virgindade da índia.

·        Não permitir que Iracema tomasse contato com seus sonhos, seus desejos.

·        Não deixar que, durante seus sonhos, a jurema vertesse sobre o corpo de Iracema.

·        Proteger Iracema de qualquer agressão que pudesse vir dos índios de sua tribo.

07 – A certeza de Martim de que havia estado com Iracema apenas em sonho pode ser comprovada pelo seguinte trecho:

a)   “[...] e colher em seus lábios o beijo, que ali viçava entre sorrisos, como o fruto na corola da flor.”

b)   “O gozo era vida, pois o sentia mais forte e intenso [...]”.

c)   “[...] o mal era sonho e ilusão, que da virgem não possuía senão a imagem”.

08 – É possível, no trecho lido, verificar uma integração entre as ações e descrições das personagens e os elementos da paisagem. Releia:

        “Quando veio a manhã, ainda achou Iracema ali debruçada, qual borboleta que dormiu no seio do formoso cacto. Em seu lindo semblante acendia o pejo vivos rubores; e como entre os arrebóis da manhã cintila o primeiro raio do sol, em suas faces incendidas rutilava o primeiro sorriso da esposa, aurora de fruído amor.”

a)   A manhã que surge ainda encontra a índia junto de Martim. Em seu rosto brilha um sorriso, “o primeiro sorriso da esposa”. A que elemento da paisagem é comparado o sorriso de Iracema?

Ao primeiro raio do sol que cintila entre os arrebóis da manhã.

b)   O que essa comparação revela sobre esse momento da vida de Iracema?

A comparação enfatiza a nova condição de Iracema, que nasce para uma nova vida. Ela não é mais a virgem de Tupã, ela traz agora o “primeiro sorriso da esposa”.

 

 

 

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