domingo, 22 de maio de 2022

NOTÍCIA: A PÉ COM LAO-TSÉ - SÉRGIO BRANCO - COM GABARITO

 Notícia: A pé com Lao-tsé

             Sérgio Branco

        A frase é usada para demonstrar que grandes conquistas partem de uma primeira ação, às vezes banal. O criador é um filósofo chinês, o genial Lao-tsé: “Uma longa caminhada começa com o primeiro passo”. O ensinamento do sábio, que muitos historiadores definem como o criador do taoismo, deve servir de pauta para todos os viajantes. A caminhada pode ser entendida também como descoberta. E ainda não inventaram jeito melhor de descobrir um lugar do que passeando a pé por ele.

        Qualquer cidade em qualquer país será desvendada por aqueles que derem o primeiro passo. Perder-se por avenidas, ruas, vielas, bulevares, escadarias e becos e flertar com a novidade. Um detalhe, uma lasca do imprevisível. Algo surge e pode marcar a viagem para sempre.

        Lembro Barcelona, 1993. Saído do mercado La Boquería, perdia-me sem destino por uma rua do Bairro Gótico quando, na direção contrária, uma turba gritava palavras de ordem. Era uma manifestação do Partido Comunista Catalão. Havia duas alternativas: ser levado pela multidão que empunhava bandeiras vermelhas ou quebrar à esquerda em uma viela, tão estreita que nem carro cabia. Entrei na viela.

        Como era hora do almoço, a fome dava sinais. Caminhei por cerca de 50 metros e notei uma pequena placa: Can Culleretes. Um restaurante discreto, apenas uma porta de madeira, antiquíssima. Na parede lateral, uma pequena caixa de madeira com vidro protegia um recorte amarelado do El País. Li e me surpreendi. Entre outras coisas, o artigo informava que o Can Culleretes era um bastião da comida catalã. E mais antigo que ele, somente o Sobrino de Botín, aquele famoso de Madri, tido como o mais velho da Europa (talvez do mundo) em atividade.

        Claro que entrei. Ao cruzar a porta, mais surpresa: um salão enorme, cheio de gente. Ninguém com cara de turista. Uma senhorinha simpática, de avental típico, indicou uma mesa. Sentado, à espera do cardápio, notei pinturas clássicas e modernas, antigos azulejos decorativos, desenhos enquadrados em molduras de madeira, esboços artísticos, rabiscados na própria parede, fotos e mais fotos também emolduradas. Parecia coisa de gente importante ou famosa.

        Escolhi um prato catalão com frutos do mar e, enquanto esperava, tirei da mochila meus dois ótimos guias de Barcelona e vasculhei em busca do Can Culleretes. Nada. Nenhuma menção. Era uma descoberta, pensei.

        Comida maravilhosa, preço excelente (ainda em pesetas) e atendimento carinhoso, mesmo para um turista enxerido num ambiente reservado a catalães.

        Jamais teria acontecido se não fizesse aquele passeio a pé, sem destino, pressionado pela massa comunista da cidade — detalhe que fez a diferença, mas que só ocorre quando você é guiado pelo imponderável.

        Espalhei minha descoberta a todos que pude. Escrevi até artigo em jornal, ainda em 1993. Vivi o prazer de contar o que ninguém sabia.

        Voltei a Barcelona outras vezes. A mais recente foi no último réveillon. Em todas, fui comer no Can Culleretes, com 226 anos de história completados em 2012. Continua na mesma viela, pertinho do La Boquería. Ainda não é fácil encontrá-lo em guias, mas hoje está na internet (culleretes.com).

        Lição aprendida, mantenho minha busca por lugares inusitados em rondas a pé pelas cidades que visito. Nem sempre encontro algo valioso, mas a sensação da procura sem compromisso já me contenta. Viagens são lembradas por fatos assim. Nunca esquecemos nossas descobertas. E poder dividi-las é uma satisfação imensa.

 BRANCO, Sérgio. Viaje Mais. 133. ed. São Paulo: Europa, jun. 2012.

Fonte: Livro – Viva Português 1° – Ensino médio – Língua portuguesa – 2ª edição 1ª impressão – São Paulo – 2014. p. 188-190.

Entendendo a notícia:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Turba: multidão.

·        Bastião: sustentáculo, apoio, alicerce que contribui para a subsistência de algo.

·        Enxerido: intrometido.

·        Imponderável: aquilo que não pode ser previsto.

·        Inusitado: incomum.

02 – Atente à estrutura do texto:

1° e 2° parágrafos — Introdução. Citação de uma frase de Lao-tsé, filósofo chinês, que serve de ponto de partida para a produção do relato.

3° ao 7° parágrafo — Relato de uma descoberta feita pelo redator quando passeava por Barcelona.

8° ao 11° parágrafo — Retomada da reflexão que introduz o texto. Conclusão do relato com a explicitação de uma lição aprendida.

        Todas as partes que preenchem essa estrutura foram organizadas em torno de uma informação principal. O autor escolhe um ponto de partida e o transforma no fio condutor do texto, o que garante a coerência do relato: a citação de Lao-tsé, “Uma longa caminhada começa com o primeiro passo”.

a)   A citação de Lao-tsé pode ser compreendida no sentido figurado. Considerando isso, explique um dos sentidos possíveis para as expressões “longa caminhada” e “primeiro passo”.

“Longa caminhada” pode ter interpretada como qualquer desafio cujo objetivo deve demorar a ser alcançado. “Primeiro passo” pode ser a realização da primeira etapa para se alcançar esse objetivo.

b)   O sentido que o autor utiliza em seu texto, contudo, é diferente dessa interpretação mais figurada. Explicite que sentido é esse.

O autor explorou o sentido literal da frase, em que “longa caminhada” e “primeiro passo” são usados, de fato, em relação a um percurso a pé.

c)   Por que o autor emprega esse outro sentido da frase de Lao-tsé em seu texto? Que tipo de exploração ele fez da frase para desenvolver seu relato?

O autor do relato desenvolve o texto a partir do sentido literal da frase como forma de destacar a importância dos passeios a pé para se descobrir lugares inusitados, nunca antes explorados ou valorizados por outros viajantes.

03 – Por que o restaurante encontrado por Sérgio Branco em uma das vielas de Barcelona teve um caráter de descoberta para ele?

      Porque se tratava de um restaurante bastante antigo, cuja comida era maravilhosa e não muito cara; além disso, o ambiente não parecia ser frequentado por turistas e o atendimento era carinhoso.

04 – A que o autor do texto atribuiu essa descoberta?

      À sua decisão de circular a pé pela cidade, andando ao acaso.

05 – O texto deixa claro quais são os objetivos que o autor tem como viajante. Esses objetivos correspondem aos de Maria Fernanda Vomero em seu texto “O que a guerra me ensinou”? Explique de que forma cada um dos relatos revela algumas das motivações desses viajantes.

      Os objetivos não são os mesmos. Sérgio Branco é motivado pela descoberta ao acaso, pelo desejo de divulgar um lugar desconhecido e confortável que possa ser apreciado por pessoas. Maria Fernanda Vomero revela em seu texto a preocupação humanitária e o interesse por locais em que se vive em situações de conflito; ela é movida pelo desejo de conhecimento dos dramas humanos mais do que de conhecimento das paisagens.

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