sexta-feira, 24 de julho de 2020

CRÔNICA: SONDAGEM - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

Crônica: SONDAGEM

            Carlos Drummond de Andrade

       O carteiro, conversador amável, não gosta de livros. Tornam pesada a carga matinal, que na sua opinião, e dado o seu nome burocrático, devia constituir-se apenas de cartas. No máximo algum jornalzinho leve, mas esses pacotes e mais pacotes que o senhor recebe, ler tudo isso deve ser de morte!

      Explico-lhe que não é preciso ler tudo isso, e ele muito se admira:

      -- Então o senhor guarda sem ler? E como é que sabe o que tem no miolo?

        -- Em primeiro lugar, Teodorico, nem sempre eu guardo. Às vezes dou aos amigos, quando há alguma coisa que possa interessar a eles.

        -- Mas como sabe que pode interessar, se não leu?

        Esclareço a Teodorico que não leio de ponta a ponta, mas sempre abro ao acaso, leio uma página ou umas linhas, passo os olhos no índice, e concluo.

        Meu crédito diminui sensivelmente a seus olhos. Não lhe passaria pela cabeça receber qualquer coisa do correio sem ler inteirinha.

        -- Mas, Teodorico, quando você compra um jornal se sente obrigado a ler tudo que está nele?

        -- Aí é diferente. Eu compro o jornal para ver os crimes, o resultado do seu-talão-vale-um-milhão etc. Leio aquilo que me interessa.

        -- Eu também leio aquilo que me interessa.

        -- Com o devido respeito, mas quem lhe mandou o livro desejava que o senhor lesse tudinho.

        -- Bem, faz-se o possível, mas...

        -- Eu sei, eu sei. O senhor não tem tempo.

        -- É.

        -- Mas quem escreveu, coitado! Esse perdeu o seu latim, como se diz.

        -- Será que perdeu? Teve satisfação em escrever, esvaziou a alma, está acabado.

        A ideia de que escrever é esvaziar a alma perturbou meu carteiro, tanto quanto percebo em seu rosto magro e sulcado.

        -- Não leva a mal?

        -- Não levo a mal o quê?

        -- Eu lhe dizer que nesse caso carece prestar mais atenção ainda nos livros, muito mais! Se um cidadão vem à sua casa e pede licença para contar um desgosto de família, uma dor forte, dor-de-cotovelo, vamos dizer assim, será que o senhor não escutava o lacrimal dele com todo o acatamento?

        -- Teodorico, você está esticando demais o meu pensamento. Nem todo livro representa uma confissão do autor, ainda ontem você me trouxe uma publicação do Itamaraty sobre o desenvolvimento da OPA, que drama de sentimento há nisso?

        -- Bem, nessas condições...

        -- E depois, no caso de ter uma dor moral, escrevendo o livro o camarada desabafa, entende? Pouco importa que seja lido ou não, isso é outra coisa.

        Ficou pensativo; à procura de argumento? Enquanto isso, eu meditava a curiosidade de um carteiro que se queixa de carregar muitos livros e ao mesmo tempo reprova que outros não os leiam integralmente.

        -- Tem razão. Não adianta mesmo escrever.

        -- Como não adianta? Lava o espírito.

        -- No meu fraco raciocínio, tudo é encadeado neste mundo. Ou devia ser. Uma coisa nunca acontece sozinha nem acaba sozinha. Se a pessoa, vamos dizer, eu, só para armar um exemplo, se eu escrevo um livro, deve existir um outro - o senhor, numa hipótese - para receber e ler esse livro. Mas se o senhor não liga a mínima, foi besteira eu fazer esse esforço, e isso é o que acontece com a maioria, estou vendo.

        -- Teodorico! você... escreveu um livro?

        Virou o rosto.

        -- De poesia, mas agora não adianta eu lhe oferecer um exemplar. Até segunda, bom domingo para o senhor.

        -- Escute aqui, Teodorico...

        -- Bem, já que o senhor insiste, aqui está o seu volume, não repare os defeitos, ouviu? Esvaziei bastante a alma, tudo não era possível!

(Fonte: ANDRADE, Carlos Drummond de. Sondagem. In: WERNECK, Humberto (Org.). Boa companhia: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p.31-33.)

Entendendo a crônica:

01 – O carteiro questionou o narrador sobre o fato de esse não ler todos os livros que recebe, por quê?

a)   Se admirava da capacidade de leitura do narrador.

b)   Se queixava de ter que carregar o peso dos livros.

c)   Queria convencer o narrador a ler o seu livro.

d)   Queria saber se alguém lia tantos livros.

02 – Em qual frase está expressa uma opinião do narrador?

a)   “O carteiro, conversador amável, não gosta de livros”.

b)   “Esclareço a Teodorico que não leio de ponta a ponta...”.

c)   “Explico-lhe que não é preciso ler tudo isso...”.

d)   “... leio uma página ou umas linhas...”.

03 – A crônica inicia-se com a seguinte consideração do narrador. “O carteiro, conversador amável, não gosta de livro”. Explique como isso entra em contradição no final da crônica.

      No final da crônica contradiz essa afirmação, porque é revelado que o carteiro havia escrito um livro de poesias.

04 – O autor faz parte da situação narrada ou está como observador, de fora?

      Ele é narrador-personagem, pois ele participa da história e a conta na 1ª pessoa.

05 – Explique o período a seguir, tendo em vista o assunto tratado no texto: “Meu crédito diminui sensivelmente a seus olhos”.

      Significa que a boa reputação de leitor do narrador diminuiu bastante diante do carteiro Teodorico.

06 – No trecho: “Teodorico, você está esticando demais seu pensamento”, a expressão em destaque pode ser interpretado como:

      Ele está querendo muitas explicações sobre o porquê do autor não ler os livros.

07 – Ao longo do texto, percebemos que o narrador e o carteiro possuem posturas diferentes quanto à leitura de livros.

a)   Retire do texto um argumento utilizado pelo narrador na tentativa de convencer Teodorico de que mesmo que não se leia completamente um livro a experiência da escrita e válida.

O narrador argumenta que quem escreveu o texto teve satisfação em escrever, esvaziou a alma, lavou o espírito. Isso demonstra que, mesmo que ninguém o leia, vale a pena escrever o livro.

b)   Agora retire do texto um contra argumento utilizado por Teodorico que se opõe a ideia do narrador.

Teodorico pensa que tudo no mundo é encadeado, uma coisa não acontece ou acaba sozinha. Portanto, se uma pessoa escreve um livro deve haver outra que o leia.

c)   Após analisar os argumentos de ambas partes, dê sua opinião. Qual argumento você considerou o mais coerente e convincente? Explique sua resposta.

Resposta pessoal do aluno.

08 – Segundo o autor, uma pessoa só escreve para se lida? Explique.

      Não. Escreve para esvaziar a alma.

09 – Identifique algumas características do gênero crônica presentes no texto.

      - Narrativa curta;

      - Poucos personagens;

      - Fatos da vida cotidiana;

      - Linguagem simples, coloquial.

10 – O autor, para reforçar sua tese em relação à leitura dos livros que recebe, compara a leitura dos livros com a do jornal. Identifique o argumento utilizado na comparação.

      “-- Mas, Teodorico, quando você compra um jornal se sente obrigado a ler tudo que está nele?

        -- Aí é diferente. Eu compro o jornal para ver os crimes, o resultado do seu-talão-vale-um-milhão etc. Leio aquilo que me interessa.

        -- Eu também leio aquilo que me interessa.”

 

 

 

 


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