terça-feira, 21 de julho de 2020

CRÔNICA: DEBAIXO DA PONTE - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

Crônica: DEBAIXO DA PONTE

                  Carlos Drummond de Andrade

  Moravam debaixo da ponte. Oficialmente, não é lugar onde se more, porém eles moravam. Ninguém lhes cobrava aluguel, imposto predial, taxa de condomínio; a ponte é de todos, na parte de cima; de ninguém, na parte de baixo. Não pagavam conta de luz e gás, porque luz e gás não consumiam. Não reclamavam contra falta d’água, raramente observada por baixo de pontes. Problema de lixo não tinham; podia ser atirado em qualquer parte, embora não conviesse atirá-lo em parte alguma, se dele vinham muitas vezes o vestuário, o alimento, objetos de casa. Viviam debaixo da ponte, podiam dar esse endereço a amigos, recebê-los, fazê-los desfrutar comodidades internas da ponte.

        À tarde surgiu precisamente um amigo que morava nem ele mesmo sabia onde, mas certamente morava: nem só a ponte é lugar de moradia para quem não dispõe de outro rancho.

        Há bancos confortáveis nos jardins, muito disputados; a calçada, um pouco menos propícia; a cavidade na pedra, o mato. Até o ar é uma casa, se soubermos habitá-lo, principalmente o ar da rua. O que morava não se sabe onde vinha visitar os de debaixo da ponte e trazer-lhes uma grande posta de carne. 

        Nem todos os dias se pega uma posta de carne. Não basta procurá-la; é preciso que ela exista, o que costuma acontecer dentro de certas limitações de espaço e de lei. Aquela vinha até eles, debaixo da ponte, e não estavam sonhando, sentiam a presença física da ponte, o amigo rindo diante deles, a posta bem pegável, comível. Fora encontrada no vazadouro, supermercado para quem sabe frequentá-lo, e aqueles três o sabiam, de longa e olfativa ciência.

        Comê-la crua ou sem tempero não teria o mesmo gosto. Um de debaixo da ponte saiu à caça de sal. E havia sal jogado a um canto de rua, dentro da lata. Também o sal existe sob determinadas regras, mas pode tornar-se acessível conforme as circunstâncias. E a lata foi trazida para debaixo da ponte. Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo da ponte a comeram. Não sendo operação diária, cada um saboreava duas vezes: a carne e a sensação de raridade da carne. E iriam aproveitar o resto do dia dormindo (pois não há coisa melhor, depois de um prazer, do que o prazer complementar do esquecimento), quando começaram a sentir dores.

        Dores que foram aumentando, mas podiam ser atribuídas ao espanto de alguma parte do organismo de cada um, vendo-se alimentado sem que lhe houvesse chegado notícia prévia de alimento. Dois morreram logo, o terceiro agoniza no hospital.

        Dizem uns que morreram da carne, dizem outros que do sal, pois era soda cáustica. Há duas vagas debaixo da ponte.

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Debaixo da ponte. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1967, p. 896-897.

Entendendo a crônica:

01 – “A ponte é de todos, na parte de cima, de ninguém, na parte de baixo”. Apesar de o autor afirmar que a parte de baixo não pertence a ninguém, você sabe que muitos a habitam por não ter onde morar. Em sua opinião, o que deveria ser feito, principalmente por parte dos governantes, para que o acesso à moradia fosse algo conquistado por todas as pessoas?

      Resposta pessoal do aluno.

02 – No primeiro parágrafo, ao introduzir o cenário, o narrador já anuncia o envenenamento das personagens quando diz:

a)   Ninguém lhes cobrava aluguel.

b)   Não pagavam conta de luz e gás.

c)   Não reclamavam contra falta d’água.

d)   Problema de lixo não tinham.

03 – O narrador, ao não atribuir nomes próprios as personagens, busca apresenta-los como:

a)   Desiludidos da sociedade urbana.

b)   Excluídos dos direitos de cidadania.

c)   Representantes de grupos sociais diferentes.

d)   Tipos sociais de prestígio.

04 – Ao terminar o texto com a afirmação “Há duas vagas debaixo da ponte”, o narrador sugere que a tragédia será:

a)   Repetida.

b)   Transformada.

c)   Revertida.

d)   Averiguada.

05 – O trecho em que aparece o primeiro fato que gera o conflito da narrativa é:

a)   À tarde, surgiu precisamente um amigo (...)

b)   E iriam aproveitar o resto do dia dormindo (...)

c)   Um de debaixo da ponte saiu à caça de sal.

d)   E a lata foi trazida para debaixo da ponte.

06 – A perspectiva de quem narra é marcada por:

a)   Satisfação.

b)   Espanto.

c)   Naturalidade.

d)   Horror.

07 – São títulos plausíveis para esse texto, EXCETO:

a)   A fome.

b)   Tragédia urbana.

c)   Debaixo da ponte.

d)   Nem só de pão vive o homem.

08 – Outro trecho, que também nos faz refletir bastante, diz o seguinte: “Viviam debaixo da ponte, podiam dar esse endereço a amigos, recebê-los, fazê-los desfrutar comodidades internas da ponte.” Você já parou para pensar que a sua situação é diferente dos personagens da crônica, pois realmente pode dar endereço a alguém, sabe por quê? Porque você possui um lar, uma moradia. Dessa forma, como se sente?

      Resposta pessoal do aluno.

09 – Quando o autor afirma que “até o ar é uma casa, se soubermos habitá-lo, principalmente o ar da rua”, ele está reafirmando que o ar é essencial à nossa sobrevivência, por isso devemos adotar atitudes no sentido de preservá-lo, conservá-lo em toda a sua totalidade. Contudo, não é exatamente isso que presenciamos, pois a poluição se tornou mais um entre os graves problemas ambientais. O que você pensa sobre isso?

      Resposta pessoal do aluno.

10 – Há ironia em todos os trechos abaixo transcritos, EXCETO:

a)   Viviam debaixo da ponte, podiam dar esse endereço a amigos, recebe-los, fazê-los desfrutar comodidades internas da ponte.

b)   Há bancos confortáveis nos jardins, muito disputados; a calçada, um pouco menos propícia; a cavidade na pedra, o mato.

c)   Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo da ponte a comeram.

d)   Ninguém lhes cobrava aluguel, imposto predial, taxa de condomínio: a ponte é de todos, na parte de cima; de ninguém, na parte de baixo.

11 – A noção de indigência está presente em todos os trechos transcritos, EXCETO:

a)   Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo da ponte a comeram.

b)   Iriam aproveitar o resto do dia dormindo (pois não há coisa melhor, depois de um prazer, do que o prazer complementar do esquecimento).

c)   Não sendo operação diária, cada um saboreava duas vezes: a carne e a sensação de raridade da carne.

d)   Dores que foram aumentando, mas podiam ser atribuídas ao espanto de alguma parte do organismo de cada um, vendo-se alimentando sem que lhe houvesse chegado notícia prévia de alimento.

12 – “Fora encontrada no vazadouro, supermercado para quem sabe frequentá-lo, e aqueles três o sabiam, da longa e olfativa ciência”. O pronome sublinhado no trecho acima refere-se a:

a)   Vazadouro.

b)   Supermercado.

c)   Frequentar o vazadouro.

d)   Frequentar supermercados.

 


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