quarta-feira, 15 de julho de 2020

CRÔNICA: O RELÓGIO - RUBEM ALVES - COM GABARITO

Crônica: O relógio

            Rubem Alves

        Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas… De dia, tudo era luminoso. Mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio… De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar, e suas músicas eram seus sonhos, iguais aos de todos os outros relógios. De noite, ao contrário, quando todos dormiam, ele acordava, e começava a contar estórias. Só muito mais tarde vim a entender o que ele dizia: “Tempus fugit”. E eu ficava na cama, incapaz de dormir, ouvindo sua marcação sem pressa, esperando a música do próximo quarto de hora. Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a Morte. Seu ritmo sem pressa não era coisa daquele tempo da minha insônia de menino. Vinha de muito longe. Tempo de musgos crescidos em paredes húmidas, de tábuas largas de assoalho que envelheciam, de ferrugem que aparecia nas chaves enormes e negras, da senzala abandonada, dos escravos que ensinaram para as crianças estórias de além-mar “dinguele-dingue que eu vou para Angola, dingue-ledingue que eu vou para Angola” de grandes festas e grandes tristezas, nascimentos, casamentos, sepultamentos, de riqueza e decadência… O relógio batera aquelas horas – e se sofrera, não se podia dizer, porque ninguém jamais notara mudança alguma em sua indiferença pendular. Exceto quando a corda chegava ao fim e o seu carrilhão excessivamente lento se tomava num pedido de socorro: “Não quero morrer… “Aí, aquele que tinha a missão de lhe dar corda – (pois este não era privilégio de qualquer um. Só podia tocar no coração do relógio aquele que já, por muito tempo, conhecesse os seus segredos) – subia numa cadeira e, de forma segura e contada, dava voltas na chave mágica. O tempo continuaria a fugir… Todas aquelas horas vividas e morridas estavam guardadas. De noite, quando todos dormiam, elas saíam. O passado só sai quando o silêncio é grande, memória do sobrado. E o meu medo era por isto: por sentir que o relógio, com seu pêndulo e carrilhão, me chamava para si e me incorporava naquela estória que eu não conhecia, mas só imaginava. Já havia visto alguns dos seus sinais imobilizados, fosse na própria magia do espaço da casa, fosse nos velhos álbuns de fotografia, homens solenes de colarinho engomado e bigode, famílias paradigmáticas, maridos assentados de pernas cruzadas, e fiéis esposas de pé, ao seu lado, mão docemente pousada no ombro do companheiro. Mas nada mais eram que fantasmas, desaparecidos no passado, deles, não se sabendo nem mesmo o nome. “Tempus fugit”. O relógio toca de novo. Mais um quarto de hora. Mais uma hora no quarto, sem dormir… Sentia que o relógio me chamava para o seu tempo, que era o tempo de todos aqueles fantasmas, o tempo da vida que passou. Depois o sobradão pegou fogo. Ficaram os gigantescos barrotes de pau-bálsamo fumegando por mais de uma semana, enchendo o ar com seu perfume de tristeza. Salvaram-se algumas coisas. Entre elas, o relógio. Dali saiu para uma casa pequena. Pelas noites adentro ele continuou a fazer a mesma coisa. E uma vizinha que não suportou a melodia do “Tempus fugit” pediu que ele fosse reduzido ao silêncio. E a alma do relógio teve de ser desligada.

        Tenho saudades dele. Por sua tranquila honestidade, repetindo sempre, incansável, “Tempus fugit”. Ainda comprarei um outro que diga a mesma coisa. Relógio que não se pareça com este meu, no meu pulso, que marca a hora sem dizer nada, que não tem estórias para contar. Meu relógio só me diz uma coisa: o quanto eu devo correr, para não me atrasar. Com ele, sinto-me tolo como o Coelho da estória da Alice, que olhava para seu relógio, corria esbaforido, e dizia: “Estou atrasado, estou atrasado…”.

        Não é curioso que o grande evento que marca a passagem do ano seja uma corrida, corrida de São Silvestre?

        Correr para chegar, aonde?

        Passagem de ano é o velho relógio que toca o seu carrilhão.

        O sol e as estrelas entoam a melodia eterna: “Tempus fugit”.

        E porque temos medo da verdade que só aparece no silêncio solitário da noite, reunimo-nos para espantar o tenor, e abafamos o ruído tranquilo do pêndulo com enormes gritarias. Contra a música suave da nossa verdade, o barulho dos rojões…

        Pela manhã, seremos, de novo, o tolo Coelho da Alice: “Estou atrasado, estou atrasado…”.

        Mas o relógio não desiste. Continuará a nos chamar à sabedoria:

        Quem sabe que o tempo está fugindo descobre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será…

Rubem Alves. Tempus fugit. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 8-11.

              Fonte: Português – Uma proposta para o letramento – Ensino fundamental – 8ª série – Magda Soares – Ed. Moderna, 2002 – p. 91-4.

Entendendo a crônica:

01 – O narrador conta que, na infância, tinha medo de dormir na casa do avô. Que relação tinha relógio com esse medo?

      No escuro e no silêncio da noite, só o relógio não dormia, continuava batendo as horas.

02 – Só mais tarde o narrador entende por que o relógio lhe causava medo, na infância. Explique as causas que ele dá para esse medo.

a)   “Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a Morte”. Leia o trecho que se segue a essa frase e explique: por que o bater do relógio lembrava a Morte?

Porque ele já batia em tempos passados, na época de fatos e pessoas que já tinham desaparecido, já tinham morrido.

b)   Identifique na crônica esta frase que introduz outra causa para o medo: “E o meu medo era por isto:” Isto o quê?

O bater do relógio levava a criança a perceber que fazia parte de uma história passada que ela não conhecia.

03 – O narrador declara que só mais tarde entendeu o que relógio dizia: “Só muito mais tarde vim a entender o que ele dizia: “Tempus fugit”.

a)   Relógio não fala... como o relógio dizia: “Tempus fugit”?

Batendo regularmente seu pêndulo, tocando o carrilhão a cada quarto de hora.

b)   Por que o que o relógio dizia era “Tempus fugit”?

Porque suas batidas indicam que o tempo estava passando, estava fugindo.

04 – Localize este trecho na crônica: “Todas aquelas horas vividas e morridas estavam guardadas. De noite, quando todos dormiam, elas saíam.”

a)   A expressão “horas vividas” se refere a que acontecimento? E a expressão “horas morridas”?

Horas vividas – as horas em que as pessoas tinham vivido fatos, acontecimentos (festas e tristeza, nascimentos, casamentos, sepultamentos...).

Horas morridas – as horas de acontecimentos que já tinham passado.

b)   O que fazia que as “horas vividas e morridas” saíssem, quando todos dormiam?

No silêncio da noite, o bater do relógio trazia a lembrança das horas que ele tinha marcado, no passado – lembrança das horas durante as quais as pessoas tinham vivido, fatos tinham acontecido, e lembrança das horas que tinham desaparecido no passado, tinham morrido.

05 – Localize esta frase na crônica: “Já havia visto alguns dos seus sinais imobilizados...”.

a)   “... seus sinais” – sinais de quem?

Sinais da estória passada, que a criança não conhecia.

b)   Que sinais o narrador, quando criança, já havia visto?

Marcas do passado que tinham ficado na casa, fatos de pessoas que já tinham desaparecido.

c)   Por que esses sinais estavam imobilizados?

Porque eram sinais estáticos, parados, já não tinham vida, movimento.

06 – Recorde este trecho em que o narrador explica sua saudade do relógio da casa de seu avô: “Tenho saudades dele. Por sua tranquila honestidade, repetindo sempre, incansável, ‘Tempus fugit’.” Por que o narrador considera que o relógio era honesto?

      Porque ele informava escrupulosamente, francamente, que o tempo estava fugindo.

07 – Segundo o narrador, o relógio de pulso, ao contrário do relógio da casa de seu avô, “marca a hora sem dizer nada”. Por que o relógio de pulso não diz nada?

      Porque ele é silencioso, não bate as horas, não marca com sons a passagem do tempo.

08 – Por que “é curioso” que o grande evento que marca a passagem do ano seja a corrida de São Silvestre?

      Porque, tal como a corrida de São Silvestre é um correr em direção a algum lugar, também a passagem do ano é vista como o tempo correndo em direção ao ano seguinte.

09 – Quando criança, o narrador tinha medo – recorde as duas primeiras questões. No final da crônica, o narrador fala de novo de medo, um medo que todos temos: localize este trecho: “E porque temos meda da verdade que só aparece no silêncio solitário da noite...”.

a)   Que verdade é essa de que temos medo?

O tempo está sempre fugindo.

b)   Por que esse medo aparece na noite de passagem de ano?

Porque é uma ocasião em que prestamos atenção no relógio, na passagem do tempo, esperando a meia-noite que vai marcar a chegada de outro ano.

c)   Segundo o narrador, o que fazemos para espantar esse medo?

Fazemos barulho, gritamos, soltamos rojões.

10 – Recorde este trecho no final da crônica: “Mas o relógio não desiste. Continuará a nos chamar à sabedoria.”

a)   O relógio não desiste de quê?

Não desiste de dizer que o tempo está fugindo.

b)   Que mensagem sábia nos dá o relógio?

Sabendo que o tempo está fugindo, devemos descobrir a beleza do momento presente, que é único, pois logo fugirá, logo deixará de existir.

 


3 comentários:

  1. Olha seu blog é excelente, parabéns por disponibilizar essas atividades que a muitos ajudam, divulgo muito seu blog acho maravilhoso!
    Parabéns!!!

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  2. Parabéns pelo seu blog,nós ajuda muito. Obrigada.

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  3. Vc salvou minha vida, muito obrigada

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