terça-feira, 7 de julho de 2020

CRÔNICA: PRETO E BRANCO - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

Crônica: Preto e branco

               Fernando Sabino

        Perdera emprego, chegara a passar fome, sem que ninguém soubesse; por constrangimento, afastara-se da roda boêmia que antes costumava frequentar: escritores, jornalistas, um sambista de cor que vinha a ser seu mais velho companheiro de noitadas. 

        De repente, a salvação lhe apareceu na forma de um americano, que lhe oferecia emprego numa agência. Agarrou-se com unhas e dentes à oportunidade, vale dizer, ao americano, para garantir na sua nova função uma relativa estabilidade. 

        E um belo dia vai seguindo com o chefe pela Rua México, já distraídos de seus passados tropeços, mas, tropeçando obstinadamente no inglês com que se entendiam -- quando vê do outro lado da rua um preto agitar a mão para ele. 

        Era o sambista seu amigo.

        Ocorreu-lhe desde logo que ao americano poderia parecer estranha tal amizade, e mais tarde incompatível com a ética ianque a ser mantida nas funções que passara a exercer. Lembrou-se num átimo que o americano em geral tem uma coisa muito séria chamada preconceito racial e seu critério de julgamento da capacidade funcional dos subordinados talvez se deixasse influir por essa odiosa deformação. Por via das dúvidas, correspondeu ao cumprimento de seu amigo de maneira mais discreta que lhe foi possível, mas viu em pânico que ele atravessava a rua e vinha em sua direção, sorriso aberto e braços prontos para um abraço. 

        Pensou rapidamente em se esquivar -- não dava tempo: o americano também se detivera, vendo o preto aproximar-se. Era seu amigo, velho companheiro, um bom sujeito, dos melhores mesmo que já conhecera -- acaso jamais chegara sequer a se lembrar de que se tratava de um preto! Agora, com o gringo ali ao seu lado, todo branco e sardento, é que percebia pela primeira vez: não podia ser mais preto. Sendo assim, tivesse paciência: mais tarde lhe explicava tudo, haveria de compreender. Passar fome era muito bonito nos romances de Knut Hamsun, lidos depois do jantar, e sem credores à porta. Não teve mais dúvidas: virou a cara quando o outro se aproximou e fingiu que não o via, que não era com ele. 

        E não era mesmo com ele. 

        Porque antes de cumprimentá-lo, talvez ainda sem tê-lo visto, o sambista abriu os braços para acolher o americano, também seu amigo. 

(Fernando Sabino)

Entendendo a crônica:

01 – Identifique as personagens protagonistas dessa narrativa e aponte suas características, de acordo com suas ações no texto.

      O homem que procurava emprego: no momento estava inseguro, fragilizado por sua difícil situação, mostrou-se preconceituoso e equivocado; – o sambista negro, seu amigo: bom sujeito, espontâneo, afetuoso.

02 – A vida da personagem principal passa por várias modificações, durante o texto. Indique-as.

      Primeiramente, ele perde um emprego, chega a passar fome, e afasta-se dos amigos. Depois, quando ele consegue um emprego, agarra-se tanto a ele, que, por medo, finge não conhecer seu amigo negro.

03 – Por que ele acredita que cumprimentando o amigo negro, seu emprego correria risco?

      Porque ele pensou que todo americano era preconceituoso e como ele estava com seu chefe americano, ficou com medo que aquela relação de amizade o prejudicasse. “Lembrou-se num átimo que o americano em geral tem uma coisa muito séria chamada preconceito racial e seu critério de julgamento da capacidade funcional dos subordinados talvez se deixasse influir por essa odiosa deformação”.

04 – Sendo inevitável, como o personagem cumprimentou o amigo sambista? O que aconteceu em seguida?

      Ele cumprimentou da maneira mais discreta possível, mas não adiantou, pois o sambista atravessou a rua em sua direção, deixando-o em estado de pânico.

05 – Relate o que passou pela cabeça do personagem que justifique seu pânico.

      Primeiramente, ele pensou em se esquivar, não deu certo, pois o chefe já se detivera também, ao ver o preto se aproximar. Depois ele, pela primeira vez, reparou o quanto o amigo era preto, e por último, ele se justifica afirmando que passar fome, só era bonito nos romances, e que o amigo iria compreender suas razões.

06 – Explique por que a frase “E não era mesmo com ele”, é importante para a narrativa.

      Porque é essa frase que demarca a mudança total dos acontecimentos. Pois, a partir dela, ficamos sabendo que o negro se aproximara para cumprimentar o americano e não o personagem central.

07 – Justifique, com uma passagem do texto, o fato de que o sambista pode nem ter visto o personagem central, pois dirigira seu olhar para o americano.

      “Porque antes de cumprimenta-lo, talvez ainda sem tê-lo visto, o sambista abriu os braços...”

08 – O que indica o verbo “acolher” no último parágrafo?

      Que o americano se adiantou para abraçar o sambista e que este “recebeu de maneira afetuosa” o abraço.

09 – Então, não há registro de comportamento preconceituoso no texto?

      Há sim, mas não como se supunha: do americano para com o negro, mas sim do personagem central para com o americano.

10 – Explique o jogo de palavras que aparece na frase: “... já distraído de seus passados tropeços, mas tropeçando obstinadamente o inglês...”

      Nos dois casos a palavra “tropeço” está no sentido conotativo, indicado dificuldades. Dificuldades passadas, quando estava desempregado e dificuldades em falar inglês.

11 – Qual seria essa “ética ianque”, citada pela personagem central?

      A ética americana, que ao seu ver, consideraria desaconselhável a amizade entre pessoas de etnias diferentes, principalmente, devido ao cargo que o personagem exercia.

 

     


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