Sírio Possenti
Um dia desses os entrevistados eram
Martinho da Vila e o Presidente de uma Associação de Magistrados. Mesmo
cansado, pensei em assistir. O Martinho é um grande papo, e a questão do
Judiciário está pegando fogo.
A conversa com Martinho ia bem, até que
Jô perguntou sobre seu conhecimento de línguas africanas, já que de alguns
discos participam músicos angolanos cantando músicas nativas. Martinho disse o
óbvio: que, tendo estado na África várias vezes, mesmo em temporadas curtas,
aprendeu um pouco. Não conhece as línguas, mas se vira (e acrescentou que o
mesmo ocorre em relação ao francês, o que mostra que ele é normal). Mas Jô o
interrompeu para comentar que se pode aprender as línguas africanas mesmo em
pequenas temporadas, porque elas têm poucas palavras. E botou para funcionar
suas leituras de almanaque. Informou que em suaíli as palavras querem dizer
muitas coisas. E deu um exemplo, uma certa palavra que pode ser empregada em
várias situações. Decidi dormir, perdi a entrevista com o magistrado. Achei que
não suportaria uma lição de direito constitucional do mesmo nível.
Disse
que Jô acionou suas leituras de almanaque, mas a coisa é mais grave do que
isso: trata-se do grosseiro preconceito linguístico e cultural. Se a gente abre
um dicionário – Jô aparentemente abre, tem até vários em formato eletrônico –,
a coisa mais interessante que se pode descobrir é que todas as palavras têm
muitos sentidos, que todas as línguas são como o suaíli ou o suaíli é como
todas as línguas.
Pode-se fazer isso aleatoriamente. Cito
um exemplo do português e um do inglês. Tome o verbo “ligar” e está lá:
apertar, prender, unir, fazer aderir, estabelecer relações, unir por vínculos
morais e afetivos, prestar atenção, acionar o motor, fazer girar o disco do
telefone, unir em combinação química (ver o famoso Aurélio, que registra ainda outros
sentidos). Vejam agora a palavra inglesa “pack”: para começar, pode ser verbo
ou nome. Alguns sentidos: coleção de coisas; pacote contendo um certo número de
coisas semelhantes; maneira pela qual alguma coisa é empacotada; grande
quantidade; grupo de animais que vivem juntos; soma total de algo, como frutas
ou vegetais, processadas ao mesmo tempo; comprimir na forma de massa compacta;
ir embora rapidamente, etc. (MacMillan Contemporary Dictionary).
A experiência nossa de cada dia mostra
que qualquer palavra tem muitos sentidos. Que esse não é um “problema” de
línguas faladas por povos considerados inferiores.
Com suas intervenções no campo, Jô
confirma uma tese corrente e, por azar, verdadeira: as línguas ainda são o
espaço em que vigoram os mais grosseiros preconceitos.
POSSENTI,
Sírio. Mal comportadas línguas. Curitiba: Criar, 2000, p.21-23.
Fonte: Livro: Português: língua e cultura. FARACO, Carlos Alberto. Vol.1. Editorial BASE
Fonte: Livro: Português: língua e cultura. FARACO, Carlos Alberto. Vol.1. Editorial BASE
ESTUDO DO TEXTO
1)
Qual é o assunto principal do texto?
O assunto principal é a desinformação do apresentador de tevê sobre
como as línguas funcionam (as bobagens que ele disse sobre as línguas africanas
– o que, antes de tudo, revela um preconceito: o de que os africanos são
‘primitivos’).
2)
Como o autor rebate a afirmação de Jô Soares
sobre as línguas africanas?
Ele rebate a afirmação de Jô Soares sobre as línguas africanas
mostrando que em qualquer língua todas as palavras têm muitos sentidos, ou
seja, “Todas as línguas são como o suaíli ou o suaíli é como todas as línguas” (4º
parágrafo) e cita exemplos do português e do inglês para sustentar seu
argumento (5º parágrafo).
3)
Por que tal afirmação do apresentador é um grosseiro
preconceito linguístico e cultural?
É grosseiro preconceito porque parte do pressuposto de que as línguas
africanas são inferiores, são faladas por sociedades primitivas, rudimentares.
4)
Por que o autor desistiu de ver a segunda
entrevista naquela noite?
Considerou que, se o segundo tema fosse tratado do mesmo modo que o
tema das línguas, seria insuportável (“Achei que não suportaria uma lição de
direito constitucional do mesmo nível” – 3º parágrafo).
5)
Que conclusão tira o autor do episódio?
Ele conclui que, infelizmente, as línguas são ainda o espaço em que
vigoram os mais grosseiros preconceitos.
6)
Não perca a boa organização do texto de
Possenti, resumida abaixo:
·
1º parágrafo: introdução do texto (o autor
apresenta um juízo geral sobre o programa de entrevista de Jô Soares);
·
2º parágrafo: o autor se refere a um programa
específico (que teria duas entrevistas);
·
3º parágrafo: comenta a entrevista com
Martinho da Vila, em que Jô Soares faz sua absurda afirmação (note que este
parágrafo termina com o autor nos informando que desistiu de assistir à segunda
entrevista mencionada no parágrafo anterior);
·
4º parágrafo: o autor faz um comentário geral
sobre a afirmação de Jô Soares;
· 5º parágrafo: usa exemplos do português e do
inglês para sustentar seu comentário;
·
6º parágrafo resume a exemplificação;
· 7º parágrafo: conclui com uma observação
geral (“as línguas ainda são o espaço em que vigoram os mais grosseiros
preconceitos”).
Descrição da
estrutura do texto: dê destaque a este resumo para que os alunos desenvolvam
progressivamente a percepção de que os textos são organizados, são, portanto,
planejados.
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