Crônica: O MÉDICO E O MONSTRO
Avental branco, pincenê vermelho,
bigodes azuis, ei-lo, grave, aplicando sobre o peito descoberto duma criancinha
um estetoscópio, e depois a injeção que a enfermeira lhe passa.
O avental na verdade é uma camisa de
homem adulto a bater-lhe pelos joelhos; os bigodes foram pintados por sua irmã,
a enfermeira; a criancinha é uma boneca de olhos cerúleos, mas já meio careca,
que atende pelo nome de Rosinha; os instrumentos para exame e cirurgia saem
duma caixinha de brinquedos.
Ela, seis anos e meio; o doutor tem
cinco. Enquanto trabalham, a enfermeira presta informações:
-- Esta menina é boba mesmo, não gosta
de injeção, nem de vitamina, mas a irmãzinha dela adora.
O médico segura o microscópio,
focaliza-o dentro da boca de Rosinha, pede uma colher, manda a paciente dizer
aaá. Rosinha diz aaá pelos lábios da enfermeira. O médico apanha o pincenê, que
escorreu de seu nariz, rabisca uma receita, enquanto a enfermeira continua:
-- O senhor pode dar injeção que eu
faço ela tomar de qualquer jeito, porque é claro que se ela não quiser, né, vai
ficar muito magrinha que até o vento carrega.
O médico, no entanto, prefere enrolar uma
gaze em torno do pescoço da boneca, diagnosticando:
-- Mordida de leão.
-- Mordida de leão? – pergunta,
desapontada, a enfermeira, para logo aceitar este faz-de-conta dentro do outro
faz-de-conta. – Eu já disse tanto, meu Deus, para essa garota não ir na
floresta brincar com Chapeuzinho Vermelho...
Novos clientes desfilam pela clínica:
uma baiana de acarajé, um urso muito resfriado, porque só gostava de neve, um
cachorro atropelado por lotação, outras bonecas de vários tamanhos, um Papai
Noel, uma bola de borracha e até mesmo o pai e a mãe do médico e da
enfermeira.
De repente, o médico diz que está com
sede e corre para a cozinha, apertando o pincenê contra o rosto. A mãe se
aproveita disso para dar um beijo violento no seu amor de filho e também para
preparar-lhe um copázio de vitaminas: tomate, cenoura, maçã, banana, limão,
laranja e aveia. O famoso pediatra, com um esgar colérico, recusa a formidável
droga.
-- Tem de tomar, senão quem acaba no
médico é você mesmo, doutor.
Ele implora em vão por uma bebida mais
inócua. O copo é levado com energia aos seus lábios, a beberagem é provada com
uma careta. Em seguida, propõe um trato:
-- Só se você depois me der um sorvete.
A terrível mistura é sorvida com
dificuldade e repugnância, seus olhos se alteram nas órbitas, um engasgo
devolve o restinho. A operação durou um quarto de hora. A mãe recolhe o copo
vazio com a alegria da vitória e aplica no menino uma palmadinha carinhosa,
revidada com a ameaça dum chute. Já estamos a essa altura, como não podia
deixar de ser, presenciando a metamorfose do médico em monstro.
Ao passar zunindo pela sala, o pincenê
e o avental são atirados sobre o tapete com um gesto desabrido. Do antigo
médico resta um lindo bigode azul. De máscara preta e espada, Mr. Hyde penetra
no quarto, onde a doce enfermeira continua a brincar, e desfaz com uma
espadeirada todo o consultório: microscópio, estetoscópio, remédios, seringa,
termômetro, tesoura, gaze, esparadrapo, bonecas, tudo se derrama pelo chão. A
enfermeira dá um grito de horror e começa a chorar nervosamente. O monstro,
exultante, espeta-lhe a espada na barriga e brada:
-- Eu sou o Demônio do Deserto!
Ainda sob o efeito das vitaminas, preso
na solidão escura do mal, desatento a qualquer autoridade materna ou paterna,
com o diabo no corpo, o monstro vai espalhando terror a seu redor: é a
televisão ligada ao máximo, é o divã massacrado sob os seus pés, é uma corneta
indo tinir no ouvido da cozinheira, um vaso quebrado, uma cortina que se
despenca, um grito, um uivo, um rugido animal, é o doce derramado, a torneira
inundando o banheiro, a revista nova dilacerada, é, enfim, o flagelo à solta no
sexto andar dum apartamento carioca.
Subitamente, o monstro se acalma. Suado
e ofegante, senta-se sobre os joelhos do pai, pedindo com doçura que conte uma
história ou lhe compre um carneirinho de verdade.
E a paz e a ternura de novo abrem suas
asas num lar ameaçado pelas forças do mal.
Paulo Mendes Campos. O
médico e o monstro. Em: Fernando Sabino e outros.
Crônicas 2. 19. ed.
São Paulo: Ática, 2003. p. 20-22.
Entendendo a crônica:
01 – No início do texto, o
nome e a idade das personagens são desconhecidos. No entanto, é possível
perceber que o médico é uma criança. Que expressões do primeiro parágrafo
indicam a pouca idade dele?
“Pincenê
vermelho” e “bigodes azuis”. A inusitada associação de cores e a escolha de um
objeto em total desuso denunciam a pouca idade da personagem.
02 – No segundo parágrafo,
que revelações confirmam que as personagens são crianças?
O avental é uma
camisa de homem, os bigodes foram pitados pela irmã do protagonista, a
criancinha é uma boneca e os instrumentos médicos são brinquedos.
03 – A crônica apresenta um
fato que faz parte do cotidiano de uma família. Que fato é esse?
As crianças
brincaram de médico.
04 – Releia este trecho.
“[...]
enquanto a enfermeira continua:
-- O senhor pode dar injeção que eu
faço ela tomar de qualquer jeito, porque é claro que se ela não quiser, né, vai
ficar muito magrinha que até o vento carrega.”
a)
Essa fala, da menina de 6 anos que brinca de
enfermeira, revela opiniões típicas de uma criança? Justifique sua resposta.
Não. Normalmente, às crianças não são defensoras de injeções.
b)
Em sua opinião, quem a menina está imitando
ao revelar a preocupação de que a paciente fique magrinha?
Provavelmente, ela está imitando a mãe. Assim como a mãe força o
menino a tomar o copo de vitamina de frutas, ainda que a contragosto, para não
ficar doente, a menina também, pelo mesmo motivo, força a boneca a tomar
injeção.
05 – O pequeno médico
dispensa a injeção e, em lugar dela, aplica um curativo em torno do pescoço da
paciente fictícia, diagnosticando “mordida de leão”. Sua irmã aceita a
reviravolta na brincadeira e diz: “Eu já disse tanto, meu Deus, para essa
garota não ir na floresta brincar com Chapeuzinho Vermelho...”. Que
característica(s) da infância esse trecho destaca?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: A capacidade da criança de aceitar um faz de conta dentro
de outro faz de conta, emendando indefinidamente uma brincadeira na outra.
06 – O narrador faz
referência a seis ações realizadas pela mãe do protagonista. No caderno,
enumere-as.
1 – Aproveita-se
da entrada do filho na cozinha para lhe dar um violento beijo no rosto.
2 – Prepara-lhe um
cardápio de vitaminas.
3 – Obriga-o a
tomar, mesmo ele não gostando, alegando que é importante para a saúde.
4 – Leva o copo
com energia aos lábios.
5 – Recolhe o copo
vazio com a alegria da vitória.
6 – Aplica no
menino uma palmadinha carinhosa.
07 – Em sua opinião, essas
ações são exclusivas da mãe retratada na crônica lida ou são comuns às mães em
geral?
Resposta pessoal do aluno.
08 – O menino transforma-se
subitamente em um “monstro” e põe a casa inteira de pernas para o ar.
a)
Que fato provoca essa metamorfose?
O fato de tomar, obrigado, a vitamina preparada pela mãe.
b)
O menino faz alguma coisa para tentar
evita-lo?
Sim. Primeiro, ele implora que a bebida seja trocada por outra.
Depois, não sendo atendido, negocia uma recompensa posterior: ganhar um
sorvete.
c)
Transcreva uma passagem do texto que comprove
que, ao terminar a vitamina, o menino já estava disposto a vingar-se por seu
desgosto.
“A mãe recolhe o copo vazio com a alegria da vitória e aplica no
menino uma palmadinha carinhosa, revidada com a ameaça dum chute”.
d)
Você conhece crianças que reagem dessa
maneira quando contrariadas?
Resposta pessoal do aluno.
09 – Observe que o narrador
descreve uma brincadeira entre os irmãos, sem nomeá-la. Copie, no caderno, as
palavras que revelam ao leitor qual era a brincadeira.
Estetoscópio, injeção, enfermeira, instrumentos para exame,
cirurgia, entre outras.
10 – Como era o espaço onde
as crianças brincavam?
Eles brincavam em
um quarto, onde havia uma caixa de brinquedos da qual elas tiravam objetos para
a brincadeira de médico. Havia também bonecos de vários tamanhos e uma bola de
borracha.
11 – O que esse espaço
revela sobre as características das personagens?
A transformação do quarto em consultório
médico todo aparelhado revela o quanto as crianças são imaginativas e se deixam
envolver pelo mundo do faz de conta.
12 – Releia a cena em que o
menino bebe a vitamina.
a)
Quais palavras e expressões caracterizam a
vitamina?
“Formidável droga”, “beberagem” e “terrível mistura”.
b)
Como o menino ingeriu?
Com dificuldade e repugnância, seus olhos se alteraram nas órbitas,
ele engasgou.
c)
O que a resposta anterior revela sobre os
sentimentos e as sensações do menino?
Que ele se sentiu agredido e raivoso.
Me ajudou muito
ResponderExcluirEssa cronica é reflexiva?
ResponderExcluircomo assim ?????
Excluirme ajudou bastante so faltou uma pergunta que nao consegui a numero 13)apos a cena em que a mae obriga o menino a tomar vitmina , ele transforma se em mnstro . quais sao os objetos usadosn pelo menino que indicam a passagem de medico para monstro ?
ResponderExcluirobrigado(a) belo resumo
ResponderExcluirAo enumerar os estragos causados pelo menino depois que ele se transforma em um pequeno monstro, o autor apresenta referências visuais e sonoras. Qual é o estado dos objetos enumerados?
ResponderExcluirpode me responder esta eu não entendi
Ao enumerar os estragos causados pelo menino depois que ele se transforma em um pequeno monstro, o autor apresenta referências visuais e sonoras. Qual é o estado dos objetos enumerados?
ResponderExcluiralguem sabe esta porfavor