terça-feira, 23 de julho de 2019

CONTO: LATRICÉRIO - STANISLAW PONTE PRETA - COM QUESTÕES GABARITADAS

CONTO: Latricério
                   (Stanislaw Ponte Preta)

Tinha um linguajar difícil, o Latricério. Já de nome era ruinzinho, que Latricério não é lá nomenclatura muito desejada. E era aí que começavam os seus erros.
Foi porteiro lá do prédio durante muito tempo. Era prestativo e bom sujeito, mas sempre com o grave defeito de pensar que sabia e entendia de tudo. Aliás, acabou despedido por isso mesmo. Um dia enguiçou a descarga do vaso sanitário de um apartamento e ele achou que sabia endireitar. O síndico do prédio já ia chamar um bombeiro, quando Latricério apareceu dizendo que deixassem por sua conta.
Dizem que o dono do banheiro protestou, na lembrança talvez de outros malfadados consertos feitos pelo serviçal porteiro. Mas o síndico acalmou-o com esta desculpa excelente:
— Deixe ele consertar, afinal são quase xarás e lá se entendem.
Dono da permissão, o nosso amigo — até hoje ninguém sabe explicar por quê — fez um rápido exame no aparelho em pane e desceu aos fundos do edifício, avisando antes que o defeito era “nos cano de orige”.
Lá embaixo, começou a mexer na caixa do gás e, às tantas, quase provoca uma tremenda explosão. Passado o susto e a certeza de mais esse desserviço, a paciência do síndico atingiu o seu limite máximo e o porteiro foi despedido.
Latricério arrumou sua trouxa e partiu para nunca mais, deixando tristezas para duas pessoas: para a empregada do 801, que era sua namorada, e para mim, que via nele uma grande personagem.
Lembro-me que, mesmo tendo sido, por diversas vezes, vítima de suas habilidades, lamentei o ocorrido, dando todo o meu apoio ao Latricério e afirmando-lhe que fora precipitação do síndico. Na hora da despedida, passei-lhe às mãos uma estampa do American Bank Note no valor de quinhentos cruzeiros, oferecendo ainda, como prêmio de consolação, uma horrenda gravata, cheia de coqueiros dourados, virgem de uso, pois nela não tocara desde o meu aniversário, dia em que o Bill — o americano do 602 — a trouxera como lembrança da data.
Mas, como ficou dito acima, Latricério tinha um linguajar difícil, e é preciso explicar por quê. Falava tudo errado, misturando palavras, trocando-lhes o sentido e empregando os mais estranhos termos para definir as coisas mais elementares. Afora as expressões atribuídas a todos os “malfalantes”, como “compromisso de cafiaspirina”, “vento encarnado”, “libras estrelinhas”, etc., tinha erros só seus.
No dia em que estiveram lá no prédio, por exemplo, uns avaliadores da firma a quem o proprietário ia hipotecar o imóvel, o porteiro, depois de acompanhá-los na vistoria, veio contar a novidade:
— Magine, doutor! Eles viero avalsá as impoteca!
É claro que, no princípio, não foi fácil compreender as coisas que ele dizia mas com o tempo, acabei me acostumando. Por isso não estranhei quando os ladrões entraram no apartamento de Dona Vera, então sob sua guarda, e ele veio me dizer, intrigado:
— Não compreendo como eles entraro. Pois as portas tava tudo “aritmeticamente” fechadas.
Tentar emendar-lhe os erros era em pura perda. O melhor era deixar como estava. Com sua maneira de falar, afinal, conseguira tornar-se uma das figuras mais populares do quarteirão e eu, longe de corrigir-lhe as besteiras, às vezes falava como ele até, para melhor me fazer entender.
Foi assim no dia em que, com a devida licença do proprietário, mandei derrubar uma parede e inaugurei uma nova janela, com jardineira por fora, onde pretendia plantar uns gerânios. Estava eu a admirar a obra, quando surgiu o Latricério para louvá-la.
— Ainda não está completa — disse eu — falta colocar umas persianas pelo lado de fora.
Ele deu logo o seu palpite:
— Não adianta, doutor. Aí bate muito sol e vai morrê tudo.
Percebi que jamais soubera o que vinha a ser persiana e tratei de explicar à sua moda:
— Não diga tolice, persiana é um negócio parecido com venezuela.
— Ah, bem, venezuela — repetiu.
E acrescentou:
— Pensei que fosse “arguma pranta”.

PRETA, Stanislaw Ponte. Dois amigos e um chato. São Paulo: Moderna, 1986. p. 44-6. (Veredas).
Fonte: Livro – Linguagens em Sintonia – Língua Portuguesa – Ed. Scipione- 6º ano do Ensino Fundamental.

ESTUDO DO CONTO

1)   Que tipo de narrador há nesse texto?
Narrador-personagem.

2)   De acordo com o início do texto, por onde começavam os erros do porteiro?
Pelo nome que tinha: Latricério.

3)   Apesar de bonzinho e prestativo, qual era o grande defeito de Latricério?
O de pensar que entendia de tudo.

4)   Por que razão foi despedido? O que fez que acabou fazendo o síndico perder a paciência e despedi-lo?
Justamente por achar que entendia de tudo. Ao tentar consertar um problema hidráulico de um dos apartamentos, foi mexer no gás e quase explodiu o prédio.

5)   Segundo o texto, Latricério, ao partir, deixou saudade para duas pessoas. Quem eram elas?
Uma pessoa era a namorada dele e a outra era o personagem-narrador.

6)   Em dado momento, o personagem-narrador volta a afirmar que o Latricério tinha um linguajar difícil. Por quê?
Porque ele falava tudo errado, misturava as palavras, trocava os sentidos e empregava termos incomuns para falar sobre coisas simples.

7)   Qual era a atitude do personagem-narrador em relação aos erros de linguagem de Latricério?
Não acreditava que Latricério pudesse expressar-se de outra forma. Acostumou-se ao seu jeito de falar e, às vezes, até falava de modo parecido para poder se comunicar melhor com o porteiro.

8)   O que fez o personagem-narrador para tentar explicar a Latricério o que era uma persiana?
Ao tentar explicar, comentou que persiana era algo semelhante com uma venezuela, (fazendo brincadeira com veneziana) para expressar-se de maneira parecida com a do porteiro, que declarou achar que o termo se referia a uma planta.

9)   Ao longo do texto, quais os níveis de linguagem utilizados pelo porteiro e pelo narrador-personagem?
O porteiro usava uma linguagem coloquial, ou informal, e o narrador, uma linguagem formal.



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