sexta-feira, 19 de julho de 2019

CRÔNICA: A CASA DA MINHA AVÓ - DANUZA LEÃO - COM GABARITO

Crônica: A casa da minha avó
                 Danuza Leão


       Era um sobrado; na parte de baixo, o armazém do meu avô, onde se vendia um pouco de tudo. Tecidos, renda, sianinha, botões, fumo de rolo, açúcar, feijão e grãos de um modo geral -não em pacotes mas em sacos grandes, que ficavam no chão. No andar de cima, onde morava a família, era a casa de minha avó -nunca do meu avô.
      No armazém havia um balcão onde os mais chegados iam toda tarde conversar, com direito a um copinho de cachaça -um só. Meu avô, italiano, se vestia de terno, gravata e colete, e em casa se concedia o direito de tirar o paletó mas sempre de gravata e colete.
      Em cima, dando para a praça, havia uma sala de visitas que só era aberta em ocasiões muito especiais -que nunca aconteciam-, com sofá, cadeiras estofadas e um piano. Mais para dentro uma grande sala de jantar onde todos almoçavam e jantavam à mesma hora -11h30 e 19h; em cada quarto, três ou quatro camas, e banheiro era um só, para os avós, 12 filhos e os netos que lá passavam grandes temporadas.
       Minhas oito tias só tinham um objetivo na vida: arranjar um marido, e bastava que ele fosse um rapaz bom e trabalhador. Das oito, só uma trabalhava: era professora, e ia a cavalo, todos os dias, dar aulas. Foi a única que ficou solteira. As outras se casaram e para suas filhas só havia um objetivo na vida: casar, ter filhos. E assim corria a vida.
       Nos fundos da casa, havia uma varanda virada para o rio; ao lado, a cozinha com uma janela de onde se tinha a vista mais bonita da casa; por essa janela a empregada jogava o lixo. A palavra ecologia ainda não existia e da varanda nós, crianças, ficávamos vendo as cascas de laranja e banana sendo levadas pela correnteza.
        A grande aventura era dormir no chão duro. Os menores imploravam para ter o privilégio de dormir com um lençol em cima dos tacos e um travesseiro. Era essa a grande farra.
        Uma vez por semana vinha um homem lavar o chão da casa; ele jogava baldes de água, passava sabão, depois enxaguava, tirava o excesso com um rodo e secava com um pano. Só a sala da frente era encerada e o brilho dado na mão, com uma flanela.      Quando o trabalho estava pronto ficava um cheiro de casa de gente honesta, de gente direita. Onde foram parar esses cheiros?
         As comidas eram de interior: galinha quase todo dia e, para dar uma corzinha ao refogado, colorau. Os legumes eram de roça: abobrinha, jiló, couve, repolho, chuchu. Às vezes uma tia perguntava: "Você quer um ovo frito?" Esse privilégio só acontecia às vezes e só para os netos que estavam de visita.
As sobremesas eram doce de banana em rodelas e de mamão verde. Esse meu lado da família (da minha mãe) não era muito de comer. Lá pelas 21h tinha um lanche modesto: café com leite, pão e manteiga; aos domingos havia biscoitos, e cada uma das crianças tinha o direito de fazer um do feitio que quisesse, que era sempre o mesmo: uma lagartixa e no lugar dos olhos, dois feijões.
        Uma ou duas vezes por ano o rio subia sem violência, tranquilamente, e inundava a cidade; as pessoas saiam de casa de bote para fazer compras ou uma visita. Uma enchente era melhor do que qualquer coisa, e as pessoas tiravam retratos nos botes.
         Havia muitas visitas a tias, avós e primas longínquas. Os laços familiares eram cultivados com cuidado, mas o melhor de tudo era quando as tias moravam do outro lado do rio, porque aí a gente atravessava a ponte o que era, sempre, uma emoção. E ainda havia a ponte de ferro por onde passava o trem, que era um perigo. O sonho de todos nós, crianças, era atravessar essa ponte pulando sobre os dormentes, e a minha falta de coragem para desobedecer e atravessar a ponte de ferro é uma frustração até hoje não superada. Outra: nunca ter tomado um banho no rio.
São belas as lembranças de quem passou parte da infância em uma cidade do interior com um rio e uma ponte-duas, aliás.
           E melhor ainda é lembrar.
LEÃO, Danuza. Folha de S.Paulo, 21 jul. 2002. Caderno C, p.2.
Livro: Português: língua e cultura – FARACO, Carlos Alberto. V.1.

Estudo do texto
1.   A autora descreve a casa da sua avó e relata algumas de suas rotinas. E dá destaque àquilo que era mais marcante para as crianças. Qual era “a maior aventura”? O que era “o melhor de tudo”? E qual era “o sonho de todas as crianças que frequentavam a casa?
A maior aventura era dormir no chão duro (6º parágrafo); o melhor de tudo era quando as tias moravam do outro lado do rio, porque aí as crianças atravessavam a ponte, o que era, sempre, uma emoção (11º parágrafo); o sonho de todas as crianças era atravessar a ponte da estrada de ferro (11º parágrafo).

2.   Perto do fim da crônica, encontramos a autora confessando uma velha frustação (qual é ela?). E, em seguida, arremata o texto com uma breve reflexão motivada pelo relato das lembranças da infância. O que nos diz ela sobre estas lembranças?
A frustação foi nunca ter tido a coragem de desobedecer e atravessar a ponte da ferrovia (11º parágrafo). E a reflexão sobre as lembranças da infância: são belas as lembranças de quem passou parte da infância em uma cidade do interior com um rio e uma ponte – duas, aliás (12º parágrafo).

3.   A autora fala das oito tias. Nada diz, porém, sobre os tios. Apesar disso, há um dado no texto que nos permite inferir que eles eram quatro. Que dado é esse?
No fim do terceiro parágrafo, a autora menciona o número de filhos de seus avós:12. Se eram 12 filhos e 8 eram mulheres, sobram 4 homens.

4.   O que quer dizer a autora quando afirma: “A palavra ecologia ainda não existia”?
Ela quer dizer que, no tempo de sua infância, não estava ainda disseminada socialmente a preocupação com a preservação do ambiente.



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