Crônica: O Verbo For
João Ubaldo Ribeiro
Vestibular de verdade era no meu tempo.
Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no
meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido
antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande
valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com
a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está.
O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até
desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo
às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).
O vestibular de Direito a que me
submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias:
português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava
dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada
de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à
carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações
decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a
Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.
Havia provas escritas e orais. A
escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente,
pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o
martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A
oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão,
para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro
Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário,
dicionário), o mestre não perdoava.
— Traduza aí quousque tandem, Catilina,
patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.
— "Catilina, quanta paciência
tens?" — retrucava o infeliz.
Era o bastante para o mestre se
levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a plateia como quem pede
solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.
— Ai, minha barriga! — exclamava ele. —
Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que
ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!
Pode-se imaginar o resto do exame. Um
amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas
palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua
prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele
me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.
O maior público das provas orais era o
que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um
show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi
moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho,
me dirigiu as seguintes palavras aladas:
— Dou-lhe dez, se o senhor me disser
qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
— As margens plácidas — respondi
instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
— Por que não é indeterminado,
"ouviram, etc."?
— Porque o "as" de "as
margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É
uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te
adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na
ordem direta...
— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a
glória! A Bahia será sempre a Bahia!
Quis
o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de
Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de
português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até
hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e
moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor
sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A
prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz
alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria
dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por
diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder
nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra
"for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo
"ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o
um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.
— Esse "for" aí, que verbo é
esse?
Ele considerou a frase longamente, como
se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou
as abotoaduras e me encarou sorridente.
— Verbo for.
— Verbo o quê?
— Verbo for.
— Conjugue aí o presente do indicativo
desse verbo.
— Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou
ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.
Não, dessa vez ele não passou. Mas, se
perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do
Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como
marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido
do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo
para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas
ele fõe.
João
Ubaldo Ribeiro. "O Conselheiro Come", Ed Nova Fronteira - Rio de
Janeiro, 2000, pág. 20-23.
Entendendo a crônica:
01 – Na primeira frase do
texto, o narrador faz uma afirmação que sugere sua idade. Copie no caderno o
trecho que faz essa sugestão e explique por que você o selecionou.
“No meu tempo”. A afirmação indica que
ele é de outra época, anterior à da narração.
02 – Em seguida, ele afirma:
“[...] Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom
era no meu tempo [...]”
a)
Por que o autor valoriza o passado e nega o
presente?
Ele parece se sentir velho demais para aprender as novidades do
presente.
b)
A expressão “à altura da vida” parece
autorizar o narrador a dizer tudo o que pensa. Comente o significado dessa
expressão.
Quer dizer que ele chegou a um tempo em que pode ser dito, pois já
está velho.
03 – O vestibular evoca, na
memória do narrador, seu tempo de juventude, o tempo em que o vestibular era de
“verdade”. Quais são as palavras ou expressões que marcam, no texto, saudade
daquela época?
“O vestibular, é claro, jamais voltará ao
que era outrora”.
04 – Destaque do texto dois
trechos que sinalizam que o vestibular do passado era mais difícil que o de
hoje.
“Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou
matérias que não interessassem diretamente à carreira”; “Havia provas escritas
e orais”.
05 – Copie o trecho em que o
narrador conta o que fazia os alunos sentirem medo do mestre Evandro Baltazar
de Silveira.
“A oral de latim
era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir
à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira.
Franzino, sempre de colete e olhar vulpino, o mestre não perdoava”.
06 – Observe o seguinte
fragmento:
“—
Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino
Nacional!
— As margens plácidas — respondi
instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
— Por que não é indeterminado,
"ouviram, etc."?
— Porque o "as" de "as
margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É
uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te
adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na
ordem direta...
— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a
glória! A Bahia será sempre a Bahia!”.
a)
Copie no caderno a passagem do trecho em que
se pode perceber que o professor acreditava ter feito uma pergunta difícil.
“Dou-lhe dez, se [...]”.
b)
Por que o professor interrompe a resposta do
aluno?
Porque o aluno já havia acertado a resposta e demonstrou ter muito
conhecimento sobre o assunto.
c)
O que ele quis dizer com “Dez! Vá para a
glória! A Bahia será sempre a Bahia!”.
Ele sugere que os baianos são inteligentes.
07 – Quando era professor, o
narrador considerava a prova oral “bestíssima”. Por que ele tinha essa opinião?
Porque a prova se
limitava à leitura de um trecho em voz alta para saber se o candidato sabia
ler. Depois, faziam-se perguntas simples sobre vocabulário.
08 – Releia a frase: “Então,
eu, carrasco fictício, peguei
no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo
"ser" quanto do verbo "ir".” Por que o narrador se
qualifica como “carrasco fictício”?
Anteriormente, o narrador já havia dito
que tinha injustamente fama de ser um professor carrasco. No trecho transcrito,
ele mostra que não era carrasco, já que fez uma pergunta muito simples.
09 – A pergunta
correspondente ao verbo “for” foi respondida prontamente? Copie no caderno a
passagem que justifica sua resposta.
Não. “Ele
considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a
quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente”.
10 – Observe o trecho:
“—Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo”.
a)
Qual é a palavra indicativa de informalidade
na frase?
É a palavra Aí.
b)
Por que o professor foi mais informal ao
fazer a pergunta?
Porque a resposta anterior do rapaz estava errada, não existe o
verbo for, portanto ele não poderia ser conjugado.
11 – No último parágrafo, o
narrador se apropria do erro do candidato para promover uma brincadeira com a
linguagem.
a)
A que expressão corresponde “fondo para
quebrar”?
Ele compara essa expressão a “pondo para quebrar”.
b)
Que sentido está implícito na expressão acima
citada?
Apesar de o candidato não estar preparado, deve ocupar um alto cargo
no governo.
12 – Releia o diálogo:
“—
Verbo for.
— Verbo o quê?
— Verbo for.
— Conjugue aí o presente do indicativo
desse verbo.
— Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou
ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.”
a)
O que provoca riso no trecho destacado?
Quando o narrador pede ao rapaz que ele conjugue o verbo for,
espera-se que ele perceba o erro que havia cometido; mas não, ele conjuga com
segurança o verbo.
b)
Explique o tom irônico usado pelo narrador
para descrever o candidato.
Ao utilizar o adjetivo impávido, o narrador sugere que o moço estava
tão seguro de sua resposta que não percebeu o seu erro.
13 – No último parágrafo da
crônica, o narrador apresenta outra característica do vestibular de seu tempo.
Que característica é essa?
O narrador diz
que o vestibular no tempo dele era muito mais divertido do que hoje.
14 – Agora releia o final da
crônica: “Não, dessa vez ele não passou.
Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto
qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda
aposentado como marajá, ou as três coisas.”
a)
Explique a crítica que está implícita no
trecho.
A crítica é a de que os funcionários públicos não estão bem
preparados para a função que exercem e, além disso, ganham salários altos.
Sim, pois a situação inesperada apresentando no final manteve humor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário