quarta-feira, 10 de julho de 2019

CRÔNICA: O VERBO FOR - JOÃO UBALDO RIBEIRO - COM GABARITO

Crônica: O Verbo For
               João Ubaldo Ribeiro

        Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).
        O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.
        Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.
        — Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.
        — "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.
        Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a plateia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.
        — Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!
        Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.
        O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:
        — Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
        — As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
        — Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?
        — Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
        — Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!
        Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.
        — Esse "for" aí, que verbo é esse?
        Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.
        — Verbo for.
        — Verbo o quê?
        — Verbo for.
        — Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
        — Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.
        Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.
                                              João Ubaldo Ribeiro. "O Conselheiro Come", Ed Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 2000, pág. 20-23.

Entendendo a crônica:

01 – Na primeira frase do texto, o narrador faz uma afirmação que sugere sua idade. Copie no caderno o trecho que faz essa sugestão e explique por que você o selecionou.
      “No meu tempo”. A afirmação indica que ele é de outra época, anterior à da narração.

02 – Em seguida, ele afirma: “[...] Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo [...]”
a)   Por que o autor valoriza o passado e nega o presente?
Ele parece se sentir velho demais para aprender as novidades do presente.

b)   A expressão “à altura da vida” parece autorizar o narrador a dizer tudo o que pensa. Comente o significado dessa expressão.
Quer dizer que ele chegou a um tempo em que pode ser dito, pois já está velho.

03 – O vestibular evoca, na memória do narrador, seu tempo de juventude, o tempo em que o vestibular era de “verdade”. Quais são as palavras ou expressões que marcam, no texto, saudade daquela época?
      “O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora”.

04 – Destaque do texto dois trechos que sinalizam que o vestibular do passado era mais difícil que o de hoje.
      “Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira”; “Havia provas escritas e orais”.

05 – Copie o trecho em que o narrador conta o que fazia os alunos sentirem medo do mestre Evandro Baltazar de Silveira.
      “A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino, o mestre não perdoava”.

06 – Observe o seguinte fragmento:
        “— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
        — As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
        — Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?
        — Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
        — Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!”.

a)   Copie no caderno a passagem do trecho em que se pode perceber que o professor acreditava ter feito uma pergunta difícil.
“Dou-lhe dez, se [...]”.

b)   Por que o professor interrompe a resposta do aluno?
Porque o aluno já havia acertado a resposta e demonstrou ter muito conhecimento sobre o assunto.

c)   O que ele quis dizer com “Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!”.
Ele sugere que os baianos são inteligentes.

07 – Quando era professor, o narrador considerava a prova oral “bestíssima”. Por que ele tinha essa opinião?
      Porque a prova se limitava à leitura de um trecho em voz alta para saber se o candidato sabia ler. Depois, faziam-se perguntas simples sobre vocabulário.

08 – Releia a frase: “Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir".” Por que o narrador se qualifica como “carrasco fictício”?
      Anteriormente, o narrador já havia dito que tinha injustamente fama de ser um professor carrasco. No trecho transcrito, ele mostra que não era carrasco, já que fez uma pergunta muito simples.

09 – A pergunta correspondente ao verbo “for” foi respondida prontamente? Copie no caderno a passagem que justifica sua resposta.
      Não. “Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente”.

10 – Observe o trecho: “—Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo”.
a)   Qual é a palavra indicativa de informalidade na frase?
É a palavra .

b)   Por que o professor foi mais informal ao fazer a pergunta?
Porque a resposta anterior do rapaz estava errada, não existe o verbo for, portanto ele não poderia ser conjugado.

11 – No último parágrafo, o narrador se apropria do erro do candidato para promover uma brincadeira com a linguagem.
a)   A que expressão corresponde “fondo para quebrar”?
Ele compara essa expressão a “pondo para quebrar”.

b)   Que sentido está implícito na expressão acima citada?
Apesar de o candidato não estar preparado, deve ocupar um alto cargo no governo.

12 – Releia o diálogo:
        “— Verbo for.
         — Verbo o quê?
         — Verbo for.
         — Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
         — Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.”

a)   O que provoca riso no trecho destacado?
Quando o narrador pede ao rapaz que ele conjugue o verbo for, espera-se que ele perceba o erro que havia cometido; mas não, ele conjuga com segurança o verbo.

b)   Explique o tom irônico usado pelo narrador para descrever o candidato.
Ao utilizar o adjetivo impávido, o narrador sugere que o moço estava tão seguro de sua resposta que não percebeu o seu erro.

13 – No último parágrafo da crônica, o narrador apresenta outra característica do vestibular de seu tempo. Que característica é essa?
      O narrador diz que o vestibular no tempo dele era muito mais divertido do que hoje.

14 – Agora releia o final da crônica: “Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas.”
a)   Explique a crítica que está implícita no trecho.
A crítica é a de que os funcionários públicos não estão bem preparados para a função que exercem e, além disso, ganham salários altos.

b)   Em sua opinião, o final da crônica manteve o humor dado à narrativa?
Sim, pois a situação inesperada apresentando no final manteve humor.




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