CRÔNICA: SFOT POC
Luís Fernando Veríssimo
Chamava-se Odacir e
desde pequeno, desde que começara a falar, demonstrara uma estranha
peculiaridade. Odacir falava como se escreve. Sua primeira palavra não foi
apenas “Gugu”. Foi:
— Gu, hífen, gu.
Os pais se
entreolharam, atônitos. O menino era um fenômeno. O pediatra não pôde explicar
o que era aquilo. Apenas levantou uma dúvida.
— Não tenho certeza que “gugu” se escreve com hífen. Acho que é uma palavra só, como todas as expressões desse tipo. “Dadá” etc.
— Da, hífen, dá – disse o bebê, como que para liquidar com todas as dúvidas.
— Não tenho certeza que “gugu” se escreve com hífen. Acho que é uma palavra só, como todas as expressões desse tipo. “Dadá” etc.
— Da, hífen, dá – disse o bebê, como que para liquidar com todas as dúvidas.
Um dia, a mão veio correndo. Ouvira,
do berço, o Odacir chamando:
— Mama sfot poc.
— Mama sfot poc.
E, quando ela
chegou perto:
— Mama sfotoim poc.
Só depois de muito
tempo os pais se deram conta. “Sfot Poc” era ponto de exclamação e “sfotoim
poc”, ponto de interrogação.
Na escola, tentaram
corrigir o menino.
— Odacir!
— Presente sfot
poc.
— Vá para a sala da
diretora!
— Mas o que foi que
eu fiz sfotoim poc.
Com o tempo e as
leituras, Odacir foi enriquecendo seu repertório de sons. Quando citava um
trecho literário, começava e terminava a citaçao com “spt, spt”. Eram as aspas.
Aliás, não dizia nada sem antes prefaciar um “zit”. Era o travessão. Foi para a
sua primeira namorada que ele disse certa vez, maravilhado com a própria
descoberta:
— Zit Marilda plic
(vírgula) você já se deu conta que a gente sempre fala diálogo sfotoim poc.
— O quê?
— Zit nós sfot poc.
Tudo que a gente diz é diálogo sfot poc.
— Olhe, Odacir.
Você tem que parar de falar desse jeito. Eu gosto de você, mas o pessoal fala
que você é meio biruta.
— Zit spt spt biruta spt spt sfotoim poc.
— Viu só? Você não
pára de fazer esses ruídos. E ainda por cima, quando diz “sfotoim”, cospe no meu
olho.
O namoro acabou. Odacir aceitou o fato filosoficamente, aproveitando para citar o poeta.
O namoro acabou. Odacir aceitou o fato filosoficamente, aproveitando para citar o poeta.
— Zit spt spt. Que
seja eterno enquanto dure poc poc poc spt spt. Poc poc poc eram as reticências.
Odacir era fascinado por palavras. Tornou-se o orador da turma e até hoje o seu
discurso de formatura (em Letras) é lembrado na faculdade. Como os colegas
conheciam os hábitos de Odacir, mas os pais e os convidados não, cada novo som
do Odacir era interpretado, aos cochichos, na platéia:
— Zit meus senhores
e minhas senhoras poc poc.
— Poc, poc?
— Dois-pontos.
— Que rapaz
estranho…
— A senhora ainda não viu nada…
Quando lia um texto
mais extenso, Odacir acompanhava a leitura com o corpo. As pessoas viam,
literalmente, o Odacir mudar de parágrafo.
— Mas ele parece que
está diminuindo de tamanho!
— Não, não. É que a
cada novo parágrafo ele se abaixa um pouco.
Quando chegava ao fim de uma folha, Odacir estava quase no chão. Levantava-se para começar a ler a folha seguinte.
Quando chegava ao fim de uma folha, Odacir estava quase no chão. Levantava-se para começar a ler a folha seguinte.
— Colegas sfot poc
Mestres sfot poc Pais sfot poc. No limiar de uma era de grandes transformações
sociais plic o que nós plic formandos em Letras plic podemos oferecer ao mundo
sfotoim poc.
A grande realização
de Odacir foi o trema. Para interpretar o trema, Odacir não queria usar poc,
poc, que podia ser confundido com dois pontos. Poc plic era ponto e vírgula. Um
spt só era apóstrofe. Como seria trema? Odacir inventou um estalo de língua,
algo como tlc, tlc. Difícil de fazer e até perigoso. Ainda bem que tinha poucas
oportunidades de usar o trema.
Odacir, apesar de
formado em Letras, acabou indo trabalhar no escritório de contabilidade do pai.
Levava uma vida normal. Lia muito e sua conversa era entrecortada de spt, spts,
citações dos seus autores favoritos. Mesmo assim casou-se – na cerimônia,
quando Odacir disse “Aceito sfot poc”, o padre foi visto discretamente
enxugando um olho – e teve um filho. E qual não foi o seu horror ao ouvir o
primeiro som produzido pelo recém-nascido:
—
Zzzwwwwuauwwwuauzzz!
— Zit o que é isso
sfotoim e sfot poc?
— Parece – disse a
mulher, atônita – o som de uma guitarra elétrica.
O filho de Odacir,
desde o berço, fazia a própria trilha sonora. Para a tristeza do pai, produzia
até efeitos especiais, como câmara de eco. Cresceu sem dizer uma palavra. Até
hoje anda por dentro de casa reverberando como um sintetizador eletrônico. É
normal e feliz, mas o único som mais ou menos inteligível – pelo menos para
seus pais – que faz é “tump tump”, imitando o contrabaixo elétrico.
— Zit meu filho poc
poc poc. Meu próprio filho poc poc poc. – diz Odacir.
Poc, poc, poc.
Poc, poc, poc.
VERÍSSIMO, Luís Fernando. O analista
de Bagé.100. ed. Porto Alegre: L&PM, 1995.p. 48-50.
ENTENDENDO A CRÔNICA
1)
O que existe de interessante no comportamento
da personagem principal?
Desde pequeno Odacir tinha um procedimento incomum: transpunha para
a fala os sinais de pontuação da escrita.
2)
Retire do texto o que Odacir falava quando
queria representar os sinais de pontuação abaixo.
a)
Hífen – hífen
b)
Ponto de exclamação – sfot poc
c)
Ponto de interrogação – sfotoim poc
d)
Aspas – spt spt
e)
Travessão – zit
f)
Vírgula – plic
g)
Reticências – poc poc
poc
h)
Dois –pontos – poc
poc
i)
Ponto-e-vírgula – poc
plic
j)
Apóstrofe – spt
3)
Desde que idade apresentava esse
comportamento de falar dessa maneira? Em que lugares e com que pessoas falava
dessa forma?
Desde que nasceu. Falava dessa forma com seus familiares, na escola,
em seus relacionamentos pessoais; enfim, com todos.
4)
Segundo o texto, qual era a possível
explicação para esse comportamento? No que Odacir se formou?
Ele adorava palavras. Formou-se em Letras.
5)
Odacir casou-se e teve um filho. O que o
filho fazia de diferente do habitual? Que sentimento isso provocava na
personagem principal?
Seu filho só se expressava com sons que lembravam uma guitarra
elétrica. Isso causou grande desgosto, pois o filho não usava das quais Odacir
gostava tanto.
6)
Em que aspecto reside o tom humorístico dessa
crônica?
Na maneira incomum que a personagem principal encontrou para se
comunicar.
7)
Na sua opinião é possível, nos dias de hoje,
uma pessoa se comunicar como Odacir? Justifique sua resposta.
Resposta pessoal.
Excelente Sfot Poc (!)
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