domingo, 24 de março de 2019

TEXTO LITERÁRIO: SEDUÇÃO(PRIMO BASÍLIO) - EÇA DE QUEIRÓS - COM GABARITO

Texto Literário: Sedução
                           Eça de Queirós

        “Luísa voltava entre os dedos o seu medalhão de ouro, preso ao pescoço por uma fita de veludo preto.
        -- E estiveste então um ano em Paris?
        -- Um ano divino. Tinha um apartamento lindíssimo, que pertencera a Lord Falmouth, Rue Saint Florentin; tinha três cavalos....
        E recostando-se muito, com as mãos nos bolsos:
        -- Enfim, a fazer este vale de lágrimas o mais confortável possível! ... Dizes cá, tens algum retrato nesse medalhão?
        -- O retrato do meu marido.
        -- Ah! Deixa ver!
        Luísa abriu o medalhão. Ele debruçou-se; tinha o rosto quase sobre o peito dela.  Luísa sentia o aroma fino que vinha de seus cabelos.
        -- Muito bem, muito bem! – fez Basílio. Ficaram calados.
        -- Que calor que está! – disse Luísa. – Abafa-se, hem!
        Levantou-se, foi abrir um pouco uma vidraça. O sol deixara a varanda. Uma aragem suave encheu as pregas grossas das bambinelas.
        -- É o calor do Brasil – disse ele. – Sabes que estás mais crescida?
        Luísa estava de pé. O olhar de Basílio Corria-lhes as linhas do corpo, e com a voz muito íntima, os cotovelos sobre os joelhos o rosto erguido para ela:
        -- Mas, francamente, dize cá, pensaste que eu te viria ver?
        -- Ora essa! Realmente, se não viesses zangava-me. És o meu único parente.... O que tenho pena é que meu marido não esteja...
        -- Eu – acudiu Basílio – foi justamente por ele não estar...
        Luísa fez-se escarlate. Basílio emendou logo, um ouço corado também:
        -- Quero dizer... Talvez ele saiba que houve entre nós...
        Ela interrompeu;
        -- Tolices! Éramos duas crianças. Onde isso vai!
        -- Eu tinha vinte e sete anos – observou ele, curvando-se.
        Ficaram calados, um pouco embaraçados. Basílio cofiava o bigode, olhando vagamente em redor.
        -- Estás muito bem instalada aqui – disse.
        Não estava mal ... A casa era pequena, mas muito cômoda. Pertencia-lhes.
        -- Ah! Estás perfeitamente! Quem é esta senhora, com uma luneta de ouro?
        E indicava o retrato por cima do sofá.
        -- A mãe de meu marido.
        -- Ah! Vive ainda?
        -- Morreu.
        -- É o que uma sobra pode fazer de mais amável...
        Bocejou ligeiramente, fitou um momento os seus sapatos muito aguçados, e com um movimento brusco, ergueu-se, tomou o chapéu.
        -- Já? Onde estás?
        -- No Hotel Central.
        -- E até quando?
        -- Até quando quiseres.
        -- Não disseste que vinhas amanhã com o rosário?
        Ele tomou-lhe a mão, curvou-se:
        -- Já se não pode dar um beijo na mão de uma velha prima?
        -- Por que não?
        Pousou-lhe um beijo na mão, muito longo, com uma pressão doce.
        -- Adeus! – disse.
        E à porta, com o reposteiro meio erguido, voltando-se:
        -- Sabes que eu, ao subir as escadas, vinha a perguntar a mim mesmo como se vai isto passar?
        -- Isto o quê? Vermo-nos outra vez? Mas, perfeitamente. Que imaginaste tu?
        Ele hesitou, sorriu:
        -- Imaginei que não eras tão boa rapariga. Adeus. Amanhã, hem?
        No fundo da escada acedeu o charuto, devagar.
        -- Que bonita que ela está! – pensou.
        E arremessando o fósforo, com força:
        -- E eu, pedaço de asno, que estava quase decidido a não a vir ver! Está de apetite! Está muito melhor! E sozinha em casa: aborrecidinha talvez! ...
        Luíza, quando o sentiu embaixo fechar a porta da rua, entrou no quarto, atirou o chapéu para a causeuse, e foi-se logo ver ao espelho. Que felicidade estar vestida! Se ele a tivesse apanhado em roupão, ou mal penteada! ... [...]
        -- Havia sete anos que não via o primo Basílio! Estava muito trigueiro, mais queimado; mas ia-lhe bem!
        E depois de jantar ficou junto à janela, estendida na voltaire, com um livro esquecido no regaço. (...)
        Que vida interessante a do primo Basílio! – pensava. – O que ele tinha visto! Se ela pudesse também fazer a s suas malas, partir, admirar aspectos novos e desconhecidos... [...] Era o que ela tinha. Era bem feliz! Então veio-lhe uma saudade de Jorge, desejaria abraçá-lo, tê-lo ali, ou quando descesse ir encontrá-lo fumando o seu cachimbo no escritório, com o seu jaquetão de veludo. Tinha tudo, ele, para fazer uma mulher feliz e orgulhosa: era belo, com uns olhos magníficos, terno, fiel. [...]  
        Do céu estrelado caía uma luz difusa: janelas alumiadas sobressaíam ao longe, abertas à noite abafada: voos de morcegos passavam diante da vidraça.
        -- A senhora não quer luz? – perguntou à porta a voz fatigada de Juliana.
        -- Ponha-a no quarto.
        Desceu. Bocejava muito, sentia-se quebrada.
        -- É trovoada – pensou.
        Foi a sala, sentou-se ao piano, tocou ao acaso bocados da Lúcia, da Sonâmbula, o Fado, e parando, os dedos pousados de leve sobre o teclado, pôs-se a pensar que Basílio devia vir no dia seguinte: vestiria o roupão novo de foulard cor de castanho! Recomeçou o Fado, mas os olhos cerravam-se-lhe.
        E, foi para o quarto.
        Juliana trouxe o rol e a lamparina. Vinha arrastando as chinelas, com um casabeque pelos ombros, encolhida e lúgubre. Aquela figura com um ar de enfermaria irritou Luísa.
        -- Credo, mulher! Você parece a imagem da Morte!
        Juliana não respondeu. Pousou a lamparina; apanhou, placa a placa, sobre a cômoda, o dinheiro das compras; e com os olhos baixos:
        -- A senhora não precisa mais nada, não?
        -- Vá-se mulher, vá!
        Juliana foi buscar o candeeiro de petróleo, subiu ao quarto. Dormia em cima, no sótão ao pé da cozinheira.
        -- Pareço-te a imagem da Morte! – resmungou, furiosa.
        O quarto era baixo, muito estreito, com o teto de madeira inclinado, o sol, aquecendo todo o dia as telhas por cima, fazia-o abafado com um forno; havia sempre à noite um cheiro requentado de tijolo escandecido. [...]
        -- A senhora já se deitou, Srª. Juliana? – perguntou a cozinheira do quarto pegado, de onde saía uma barra de luz viva cortado a escuridão do corredor.
        -- Já se deitou, Srª. Joana, já. Está hoje com os azeites. Falta-lhe o homem!”
                         
QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio. São Paulo: Moderna.

Entendendo o texto:
01 – Muitas vezes observando os gestos de uma personagem podemos perceber o que se passa com ela. Releia o início do texto e explique o significado que pode ter o gesto de abrir a vidraça, feito por Luísa.  Será que ela realmente estava apenas sentindo calor? Que outro significado pode ter esse gesto no contexto?
      Podemos dizer que o “calor” sentido por Luísa é um índice de sua inquietação, da perturbação que lhe causava a presença do primo, com quem tinha tido um relacionamento amoroso antes do casamento.

02 – Sobre que assunto os primos evitam falar de modo claro, embora ele seja insinuado o tempo todo?
      Sobre o caso amoroso que houve entre eles antes do casamento de Luísa.

03 – A visita de Basílio faz Luísa compará-lo a Jorge. Cada um deles representa um tipo de vida. Quem sai ganhando nessa comparação? Por quê?
      Luísa acha o Basílio muito interessante. Ela imagina que ele passe a vida em aventuras e viagens e sonha em compartilhar com ele uma existência que imagina poética e romântica. Bem diferente da vida burguesa que leva ao lado de Jorge.

04 – Com base nas informações dadas pelo texto, faça uma descrição psicológica de Luísa.
      Podemos dizer que ela é uma mulher emocionalmente frágil. Exteriormente, parece ajustada ao ambiente em que vive, mas interiormente vive frustrada, sonhando com uma vida mais romântica e emocionante. Alimenta sua imaginação com as histórias dos romances que lê, que falam de lugares fascinantes.

05 – Que mudança ocorre no texto com a entrada, em cena, da empregada Juliana?
      Há uma quebra desse clima de sonho e Luísa cai bruscamente na realidade.

06 – Que impressão dá ao leitor a descrição do quarto de Juliana?
      O quarto de Juliana lembra uma cela de prisão, é um lugar abafado e apertado, onde se vive mal. Contrasta com o ambiente luxuoso e agradável em que se movimenta Luísa.

07 – Como sabemos o epílogo do romance, que significado simbólico podemos atribuir à fala de Luísa, dirigindo-se a Juliana: “Você parece a imagem da Morte!”?
      Juliana será indiretamente a causadora da morte de Luísa; por isso, essa fala tem um sentido premonitório, antecipando o epílogo do romance.


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