Poema: O
POETA COME AMENDOIM
Mário de Andrade
Noites pesadas de cheiros e calores amontoados...
Foi o sol que por todo o sítio imenso do Brasil
Andou marcando de moreno os brasileiros.
Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer...
A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos
mulatos...
Silêncio! O Imperador medita os seus versinhos.
Os Caramurús conspiram na sombra das mangueiras ovais.
Só o murmurejo dos cre'm-deus-padres irmanava os homens
de meu país...
Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais
escravos,
Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu...
Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta república
temporã.
A gente inda não sabia se governar...
Progredir, progredimos um tiquinho
Que o progresso também é uma fatalidade...
Será o que Nosso Senhor quiser!...
Estou com desejos de desastres...
Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas
Se encostando na cangerana dos batentes...
Tenho desejos de violas e solidões sem sentido
Tenho desejos de gemer e de morrer.
Brasil...
Mastigado na gostosura quente do amendoim...
Falado numa língua corumim
De palavras incertas num remeleixo melado melancólico...
Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons...
Molham meus beiços que dão beijos alastrados
E depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas...
Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus
der...
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço
aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito
engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de
dormir.
ANDRADE, Mário
de. Poesias Completas. São Paulo: Martins Editora, 1955. p. 157-158.
Entendendo o poema:
01 – Nesse poema o eu lírico
retoma os “[...] tempos de antes de eu nascer [...]”: a escravidão, o império,
as conspirações, a libertação dos escravos (“canhamboras”) e, finalmente, a República.
Por que, de acordo com o poema, “[...] o desate verdadeiro foi embonecar esta
República temporã”?
Sugestão de
resposta: “embonecar a República” seria tê-la valorizado excessivamente, como
se com ela se pudessem solucionar todos os problemas. De acordo com o poema, o
povo brasileiro ainda não sabia se governar, entregava tudo à vontade de Deus –
“[...] Será o que Nosso Senhor quiser! [...]” – ou, a quem detinha o poder.
Assim, a proclamação da República, “fora” da época, não trouxe nenhuma mudança
além de um “tiquinho” de progresso, o qual aconteceria de um jeito ou de outro,
segundo o eu poético.
02 – No poema comenta-se a
cor morena dos brasileiros, comentam-se o mulato e o índio (“Língua Curumim”).
Que palavra da penúltima estrofe expressa a mistura de culturas diferentes, a
miscigenação do povo brasileiro?
O termo é
mastigado.
03 – Como o eu poético
explica seu amor pelo Brasil?
Afirmando não
amar o Brasil com amor patriota. O Brasil é sua identidade. O que ele gosta é
das coisas simples, concretas, do seu dia-a-dia, características de uma pessoa
comum, do povo (cantigas, amores, danças, comida, trabalho).
04 – Que características da
linguagem oral mais informal aparecem na segunda estrofe?
Formas
sincopadas: “pra”, “cre’m-deus-padre”.
O uso do verbo ter no lugar do verbo
haver – “não tinha mais escravos.”
A informalidade dos diminutivos:
“versinhos”; “tiquinhos”.
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