Poema: Uma carniça
Charles Baudelaire
Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos
Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos.
Uma carniça repugnante.
As pernas para cima, qual mulher lasciva.
A transpirara miasmas e humores.
Eis que as abria desleixada e repulsiva.
O ventre prenhe de livores.
Ardia o sol naquela pútrida torpeza.
Como a cozê-la em rubra pira
E para o cêntuplo volver à Natureza
Tudo o que ali ela reunira.
E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça
Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa
Chegaste quase a sucumbir.
Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço.
Dali saíam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso
Por entre esses trapos nefandos.
E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga.
Que esguichava a borbulhar.
Como se o corpo, a estremecer de forma vaga.
Vivesse a se multiplicar.
E esse mundo emitia uma bulha esquisita.
Como vento ou água corrente.
Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita
E à joeira deixa novamente.
As formas fluíam como um sonho além da vista.
Um frouxo esboço em agonia.
Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista
Apenas de memória um dia.
Por trás das rochas, irrequieta, uma cadela
Em nós fixava o olho zangado
Aguardando o momento de reaver àquela
Carniça abjeta o seu bocado.
– Pois há de ser como essa coisa apodrecida
Essa medonha corrupção
Estrela de meus olhos, sol da minha vida.
Tu, meu anjo e minha paixão!
Sim! Tal serás um dia, ó deusa da beleza.
Após a bênção derradeira.
Quando, sob a erva e as florações da natureza
Tornares afinal à poeira.
Então, querida, dize à carne que se arruína.
Ao verme que te beija o rosto
Que eu preservarei a forma e a substância divina
De meu amor já decomposto!
As flores do
mal, Charles Baudelaire.
Fonte: Livro Se liga
na língua. 9° ano. Ed. Moderna. 1° Ed. São Paulo, 2018, p. 28 e 29.
Entendendo o poema:
01 – Quais palavras e
expressões usadas pelo poeta não fazem parte do vocabulário geralmente ligado à
beleza?
Carniça repugnante;
carcaça; fedor; moscas; larvas; trapos nefandos; coisa apodrecida; medonha
corrupção; verme.
02 – Qual imagem apresentada
no poema poderia ser considerada feia ou desagradável?
A figura de uma carcaça entreaberta, em
decomposição e cheia de larvas, com moscas zumbindo ao redor dela.
03 – No poema, o eu lírico
se dirige à pessoa amada. Quais palavras ou expressões a descrevem?
Meu amor; estrela
de meus olhos; sol da minha vida; meu anjo e minha paixão; deusa da beleza;
querida.
04 – Compare a resposta da
pergunta 1 de relação de sentido se estabelece entre as expressões?
Contraste, oposição.
05 – Segundo o eu lírico, em
que momento a pessoa amada se tornará semelhante à carniça que ele e ela
observam? Copie os versos que se referem a tal momento.
No momento em que a pessoa amada morrer,
representado pela imagem sugerida nos versos “Após a bênção derradeira. /
Quando, sob a erva e as florações da natureza / Tornares afinal à poeira.”
06 – Releia a estrofe final.
Por que o poema pode ser considerado uma declaração de amor?
Porque o eu lírico afirma que, apesar da
ruína que inevitavelmente tomará a pessoa amada, ele preservará sua imagem e o
amor que sente por ela.
Obrigada
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