CONTO: Uma semana na vida de Fernando Alonso Filho
Lá fora a chuva contínua, intensa e imutável. Como se o céu inteiro se dissolvesse em água. Água que cai em cortinas intermináveis, escorre pelas rochas até desintegrá-las em areia preta e pastosa. Areia que se acumula em montículos e charcos até que a chuva os transborda, desmancha e carrega para aqui e ali.
Está chovendo há cinquenta e oito anos e nunca parou. Dizem que ainda vai chover duzentos anos e é isso que angustia. A gente fica ali olhando a chuva lá fora, tentando enxergar alguma coisa neste universo aquoso. Vendo apenas os vultos dos homens e das máquinas, como seres pré-históricos. Leviatãs afogados no dilúvio.
Começa-se a sonhar com sol e céu azul. A desejar alguma coisa que não seja a chuva, alguma coisa que não tenha relação com água, frio e umidade. E quando afinal se sonha parece exatamente isso: uma ilusão, uma fantasia, como se jamais houvéssemos conhecido outra vida que não esta. Como se a chuva fosse a única realidade concreta e nada mais existisse.
Dentro dos habitáculos as luzes devem ficar sempre acesas. O dia e a noite lá fora não passam de um jogo de substituição entre a escuridão e o crepúsculo acinzentado. Existimos em completa dependência de nossos refúgios, as conchas pressurizadas de nossas moradias, que brotam da paisagem afogada como fungos de plástico branco, sempre se multiplicando como se proliferassem da água e da lama.
E nós vivemos lá dentro como caramujos presos à concha. Dando graças ao isolamento acústico que nos permite dormir e manter um pouco a sanidade contra o tamborilar interminável do aguaceiro.
Os holocubos dizem que Vênus já foi quente como um forno, mas isso foi em outra realidade que nada significa para nós. Antes que os homens semeassem as nuvens com bactérias que comeram o dióxido de carbono e expeliram oxigênio. Antes que os jóqueis do espaço empurrassem cabeças de cometas para bombardearem o planeta indefeso, liberando a energia e o hidrogênio que se combinou ao oxigênio para ajudar na produção desta chuvarada interminável.
Os homens do Projeto Sagan dizem que isto vai tornar Vênus um mundo gêmeo da Terra, com uma paisagem de oceanos, sol e céu azul.
Talvez seja, só que isso fica para os homens que virão depois de nós, quando o nosso pó fizer parte da lama negra lá fora e nossos sonhos e esperanças já tiverem há muito se afogado na escuridão.
[...]
Um deles é minha
esposa, que volta para mim no final de cada dia.
Patrícia é a mulher mais adorável que um homem poderia desejar, mas a maior parte do dia ela se mete num daqueles trajes para trabalho externo e vira outro monstro biomecânico. Indistinguível dos outros a tropeçar na lama lá fora.
Há uma profusão de formas de acrílico e metal cromado, eficientes e elegantes, feitas por designers pagos a peso de ouro. Utensílios que cuidam de nossa higiene, alimentação e repouso, que se integram à arquitetura interna com suas formas arredondadas e fluidas, quase orgânicas. Foi tudo estudado e planejado para que os colonizadores não pirassem antes de terminar o contrato de oito anos, e não há dúvida de que funciona. A taxa de suicídios é baixa e os casos de colapso nervoso podem ser removidos e tratados com discrição. Sem causar comentários ou perguntas embaraçosas.
Talvez eu parasse de pensar na chuva... Se tentasse me concentrar nos videojogos, mas é tudo tão deprimente.
Um dos
jogos mostra um camarada preso num labirinto. Ele fica tentando sair o tempo
todo, mas é inútil. Há uma infinidade de obstáculos e quando no final ele
encontra a saída, ela se revela apenas uma passagem para um novo labirinto e um
novo jogo.
Seria bom
se o meu trabalho me distraísse, e realmente ele distrai.
Só que os sismógrafos são completamente automáticos, exigindo minha atenção só duas horas por dia. Restam vinte e duas para dormir e pensar. Dormir e viver uma vida da qual oito horas podem ser compartilhadas com minha mulher.
Fonte: Livro - Se liga na língua.9º ano. Editora Moderna. 1ª ed. São Paulo. p.210 a 213.
VOCABULÁRIO
Charcos:
poças de água parada, suja e lamacenta.
Leviatã:
monstro marinho.
Habitáculos:
habitações pequenas.
Pressurizadas:
dotadas de pressão mantida artificialmente
Holocubos:
dispositivos para mostrar efeitos gráficos em três ou mais
dimensões.
Híbridos:
formados por elementos diferentes entre si.
Paquidermes:
antiga classificação de mamíferos de pele espessa.
Acrílico:
substância sintética utilizada na fabricação de vários produtos.
Orgânicas:
formas que remetem a organismos vivos.
Sismógrafos:
instrumentos que detectam movimentos e tremores do planeta.
DESVENDANDO O TEXTO
1)
A partir de qual frase o leitor passa a ter a certeza de que a
narrativa não se refere ao mundo que ele conhece?
A partir da
frase “Está chovendo há cinquenta e oito anos e nunca parou”.
2) O
conto relata o processo de transformação do planeta Vênus.
a)
Trata-se de um processo natural? Justifique a resposta.
Não. O processo
resulta de procedimentos realizados pelos seres humanos.
b) Qual é
o objetivo dessa transformação?
Criar as mesmas
condições de vida da Terra.
c) O
conto refere-se a três momentos: o presente, o passado e o futuro em relação ao
momento em que é feita a narrativa. Caracterize Vênus em cada um deles.
No passado,
Vênus era excessivamente quente; no presente, enfrenta uma chuva incessante; no
futuro, terá, possivelmente, uma paisagem semelhante à da Terra.
3) O
narrador é um pioneiro em Vênus, isto é, um desbravador.
a) Em sua
opinião, que palavra descreve melhor o sentimento do narrador em relação à
experiência dele em Vênus? Explique a escolha da palavra.
Resposta
pessoal. Espera--se que os alunos apresentem sentimentos como solidão, enfado,
aborrecimento, incômodo provocado pelo confinamento, já que, nesta parte do
conto, o narrador reclama da existência controlada e artificial.
b) O
narrador faz referência a um videojogo. O que torna esse jogo
deprimente?
O fato de
espelhar a existência do narrador, que, como o personagem de videojogo, não
pode escapar de sua situação presente.
c) Algum
dado do texto permite ao leitor inferir que outros pioneiros
também se
sentem como o narrador? Justifique sua resposta.
Sim. Essa
conclusão é possível, pois o narrador afirma haver preocupação dos responsáveis
pelo projeto em impedir que os colonizadores enlouqueçam, se suicidem ou tenham
colapsos nervosos.
4) O conto
cria uma ambientação futura.
a)
Observe os materiais que estão a seu redor. Qual deles predomina no ambiente
doméstico do narrador?
O plástico.
b) Como é
a paisagem da área em que ele vive?
Há
habitáculos de plástico branco, fixados na lama negra e encharcada, sob um céu
sempre escuro.
c) Em sua
opinião, a descrição dos ambientes interno e externo reforça as sensações
íntimas do narrador? Por quê?
Resposta
pessoal. Espera--se dos alunos uma resposta afirmativa, já que o ambiente
inóspito e artificial e a chuva constante são as causas do tédio do narrador.
5) Embora no início do conto tenha destaque o
ambiente em que os personagens vivem, também é revelada a vida social.
a) Que
aspecto da vida familiar se mantém inalterado no futuro
imaginado
pelo autor?
O
casamento.
b) Quais
são as atividades do narrador e da esposa dele?
O narrador
acompanha os sismógrafos, e a esposa faz trabalhos externos, usando uma roupa
especial.
6) Você leu
parte do início do conto. Como imagina que o enredo se
desenvolverá?
Explique sua resposta.
Resposta
Pessoal.
Obgd, me ajudou muito ❤️
ResponderExcluirGrata!❤️ Me ajudou muito.
ResponderExcluirObrigada ❤️ me ajudou muito amei
ResponderExcluirMim der uma resposta da 6 pôr favor
ResponderExcluirTop
ResponderExcluirEu te agradeço muito me ajudou de verdade
ResponderExcluirObrigada meu ajudou muito 🥰🙏🏾
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