terça-feira, 20 de outubro de 2020

CONTO: O HOMEM DE CABEÇA DE PAPELÃO - PARTE II - JOÃO DO RIO - COM GABARITO

 Conto: O homem de cabeça de papelão – parte II

                 João do Rio  

        Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

        -- Traz algum relógio?

        -- Trago a minha cabeça.

        -- Ah! Desarranjada?

        -- Dizem-no, pelo menos.

        -- Em todo o caso, há tempo?

        -- Desde que nasci.

        -- Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regularem bem...

        Antenor atalhou:

        -- E o senhor fica com a minha cabeça?

        -- Se a deixar.

        -- Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...

        -- Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.

        -- Regula?

        -- É de papelão! – explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão e saiu para a rua.

        Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porém, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.

        Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos e, especialmente, pelo presidente da República – a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

        Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.

        -- Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!

        Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

        -- Há tempos deixei aqui uma cabeça.

        -- Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.

        -- Ah! – fez Antenor.

        -- Tem-se dado bem com a de papelão?

        -- Assim...

        -- As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.

        -- Mas a minha cabeça?

        -- Vou buscá-la.

        Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

        -- Consertou-a?

        -- Não.

        -- Então, desarranjo grande?

        O homem recuou.

        -- Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das ideias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.

        Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.

        -- Faça o obséquio de embrulhá-la.

        -- Não a coloca?

        -- Não.

        -- V. Exa. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.

        Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

        -- Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.

        -- Qual! V. Exa. terá a primeira cabeça.

        Antenor ficou seco.

        -- Pode ser que V. Exa., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. Exa. com ela. Eu continuo com a de papelão.

        E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável – um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.

R. Magalhães Júnior (org.), op. Cit.

Fonte: Língua Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P.129-132.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Hors-concours: que, em um concurso, não concorre a prêmios, por ser muito superior aos demais competidores.

·        Imprevisão: falta de previsão; desleixo, negligência.

02 – O contista pode usar elementos fantásticos para melhor ilustrar a história. Obviamente esses elementos devem ter verossimilhança em relação ao contexto. Releia os quinze primeiros parágrafos do texto. Que elemento fantástico foi introduzido no conto? Responda no caderno.

      Antenor deixa sua cabeça no relojoeiro para consertar, como se cabeça fosse relógio, e sai com uma de papelão emprestada pelo negociante.

03 – Depois de dois meses com a cabeça de papelão, Antenor era o oposto do que fora com sua própria cabeça. Copie o quadro no caderno e complete a segunda coluna com elementos que explicitem essa oposição.

Primeira coluna: Antenor com a cabeça de papelão.

a)   Tinha uma porção de amigos.

b)   Jogava pôquer com o ministro da Agricultura.

c)   Ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados.

d)   Ostentava o que não era.

e)   Era estimado pelos parentes.

f)    Era admirado por Maria Antônia, mas a desprezou por causa de seu nível social.

g)   Fora apoiado para deputado pelo presidente da República, mas o atacou logo que soube que o novo presidente seria outro.

h)   Sentia-se feliz porque sua cabeça regulava de acordo com as exigências da sociedade.

Segunda coluna: Antenor com sua própria cabeça.

a)   Antenor só tinha amigos durante o tempo em que estes pudessem explorá-lo.

b)   Jamais se aproximaria de uma pessoa por interesse.

c)   Era incapaz de um ato de desonestidade, de fazer mal a alguém para levar vantagem.

d)   Só dizia a verdade.

e)   Era desprezado pelos parentes, que o consideravam doido.

f)    Maria Antônia impôs que Antenor mudasse caso quisesse se casar com ela.

g)   Antenor nunca trairia alguém que o tivesse ajudado.

h)   Antenor desconfiava de sua cabeça porque tudo o que fazia era considerado falta de bom senso.

04 – Antenor, certo dia, lembra-se de que se esquecera de sua cabeça na relojoaria. Releia estas falas do relojoeiro e responda no caderno:

        “— [...]. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.”

        “— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.”

a)   Qual a razão da ansiedade do relojoeiro?

O relojoeiro queria dizer a Antenor o quanto sua cabeça era perfeita, rara e admirável.

b)   Explique o que são fabricações por série.

Organização de peças idênticas para a montagem de produtos idênticos.

c)   Ao afirmar que as cabeças de papelão são fabricações por série e vendem muito, há a sugestão de uma ideia importante para o contexto geral do conto. Que ideia é essa?

A de que cabeças de papelão são muito comuns; de que quem tem uma tem-na igual à de outros tantos, pensando e agindo, portanto, da mesma forma.

05 – Por que Antenor não aceitou levar sua cabeça para casa? Justifique sua resposta com um trecho retirado do texto.

      Antenor preferiu ficar com a verdade da sociedade na qual estava inserido, pois sabia que só seria aceito com a cabeça de papelão, jamais com sua cabeça. “-- Pode ser que V. Exa., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem.”

06 – Releia e, depois, responda no caderno:

        “Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra.”

        “E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável – um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.”

a)   O conto “O homem de cabeça de papelão” faz uma crítica à moral social vigente em determinado lugar, em certa época. Que moral social é essa?

A de que as pessoas precisam ser desonestas, trapaceiras, interesseiras, traidoras, oportunistas se quiserem se dar bem na sociedade.

b)   É possível verificar esse tipo de moral hoje na sociedade em que vivemos? Dê exemplos.

Resposta pessoal do aluno.

c)   Se todas as pessoas resolvessem agir conforme a moral vigente no País do Sol, como se tornaria a vida em sociedade?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Se todos agiram pensando em levar vantagens, todos serão prejudicados.

07 – A cabeça de papelão, no contexto do conto, é uma metáfora dos valores morais de muitas pessoas. Vamos tentar entender o sentido metafórico da expressão cabeça de papelão.

a)   A cabeça é considerada uma parte nobre do corpo. Tente explicar por quê?

É na cabeça que se localizam o cérebro e os órgãos da visão, da audição, do paladar e do olfato. Ela rege boa parte das ações humanas; é o centro do controle emocional e fonte dos pensamentos e ideias.

b)   E quanto ao papelão? Trata-se de um material nobre?

Não, o papelão é um material extremamente frágil, sem valor algum; qualquer objeto feito de papelão será de fácil deterioração.

c)   O que significa, portanto, ter cabeça de papelão?

Significa não ter valores, não ter firmeza de caráter e não conseguir, também, pensar por si mesmo.

d)   Traduza a ideia principal do conto completando a frase:

Antenor transformou-se em alguém ilustre e respeitado com uma cabeça de papelão. Logo, aqueles que seguem a opinião geral e conseguem as coisas por meios desonestos e imorais têm cabeça de papelão.

08 – A substituição de uma cabeça normal por uma de papelão é o elemento fantástico usado para fazer uma crítica ao comportamento humano em sociedade. Nesse contexto, de que outro material poderia ser feita a cabeça das pessoas da sociedade retratada no texto? Justifique sua resposta no caderno.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: de gelo, por causa da frieza do comportamento; de pedra, por ser dura, de ideias limitadas, etc.

     

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