Conto: O homem de cabeça de papelão – parte II
João do Rio
Nessas disposições, Antenor caminhava
por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de
uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou
graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.
-- Traz algum relógio?
-- Trago a minha cabeça.
-- Ah! Desarranjada?
-- Dizem-no, pelo menos.
-- Em todo o caso, há tempo?
-- Desde que nasci.
-- Talvez imprevisão na montagem das
peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem
geral. As cabeças como os relógios para regularem bem...
Antenor atalhou:
-- E o senhor fica com a minha cabeça?
-- Se a deixar.
-- Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo
é que eu não posso andar sem cabeça...
-- Claro. Mas, enquanto a arranjo,
empresto-lhe uma de papelão.
-- Regula?
-- É de papelão! – explicou o honesto
negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão e saiu
para a rua.
Dois meses depois, Antenor tinha uma
porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma
pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A
respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o
que não era. Os parentes, porém, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo
em recordar o tempo em que Antenor era maluco.
Antenor não pensava. Antenor agia como
os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia
de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a
propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de
posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro
operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários
irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos e,
especialmente, pelo presidente da República – a quem atacou logo, pois para a
futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada
à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da
felicidade. Regulava admiravelmente.
Passaram-se assim anos. Todos os chefes
políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo
senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era
cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar
pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe
veio a memória.
-- Bolas! E eu que esqueci! A minha
cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido
para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!
Saltou. Entrou na casa do negociante.
Era o mesmo que o servira.
-- Há tempos deixei aqui uma cabeça.
-- Não precisa dizer mais. Espero-o
ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.
-- Ah! – fez Antenor.
-- Tem-se dado bem com a de papelão?
-- Assim...
-- As cabeças de papelão não são más de
todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.
-- Mas a minha cabeça?
-- Vou buscá-la.
Foi ao interior e trouxe um embrulho
com respeitoso cuidado.
-- Consertou-a?
-- Não.
-- Então, desarranjo grande?
O homem recuou.
-- Senhor, na minha longa vida
profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como
acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a
sua. É a placa sensível do tempo, das ideias, é o equilíbrio de todas as
vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição,
uma cabeça de gênio, hors-concours.
Antenor ia entregar a cabeça de
papelão. Mas conteve-se.
-- Faça o obséquio de embrulhá-la.
-- Não a coloca?
-- Não.
-- V. Exa. faz bem. Quem possui uma
cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.
Mas Antenor era prudente, respeitador
da harmonia social.
-- Diga-me cá. Mesmo parada em casa,
sem corda, numa redoma, talvez prejudique.
-- Qual! V. Exa. terá a primeira
cabeça.
Antenor ficou seco.
-- Pode ser que V. Exa.,
profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que
sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios
querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. Exa. com ela. Eu
continuo com a de papelão.
E, em vez de viver no País do Sol um
rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável
– um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo
com uma cabeça de papelão.
R. Magalhães Júnior
(org.), op. Cit.
Fonte: Língua
Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula
Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P.129-132.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Hors-concours: que, em um concurso, não concorre a prêmios, por ser muito
superior aos demais competidores.
·
Imprevisão: falta de previsão; desleixo, negligência.
02 – O contista pode usar
elementos fantásticos para melhor ilustrar a história. Obviamente esses
elementos devem ter verossimilhança em relação ao contexto. Releia os quinze
primeiros parágrafos do texto. Que elemento fantástico foi introduzido no
conto? Responda no caderno.
Antenor deixa sua
cabeça no relojoeiro para consertar, como se cabeça fosse relógio, e sai com
uma de papelão emprestada pelo negociante.
03 – Depois de dois meses
com a cabeça de papelão, Antenor era o oposto do que fora com sua própria
cabeça. Copie o quadro no caderno e complete a segunda coluna com elementos que
explicitem essa oposição.
Primeira coluna: Antenor com a cabeça de papelão.
a)
Tinha uma porção de amigos.
b)
Jogava pôquer com o ministro da Agricultura.
c)
Ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão
bichado para os exércitos aliados.
d)
Ostentava o que não era.
e)
Era estimado pelos parentes.
f)
Era admirado por Maria Antônia, mas a
desprezou por causa de seu nível social.
g)
Fora apoiado para deputado pelo presidente da
República, mas o atacou logo que soube que o novo presidente seria outro.
h)
Sentia-se feliz porque sua cabeça regulava de
acordo com as exigências da sociedade.
Segunda coluna: Antenor com sua própria cabeça.
a)
Antenor só tinha amigos durante o
tempo em que estes pudessem explorá-lo.
b)
Jamais se aproximaria de uma pessoa
por interesse.
c)
Era incapaz de um ato de
desonestidade, de fazer mal a alguém para levar vantagem.
d)
Só dizia a verdade.
e)
Era desprezado pelos parentes, que
o consideravam doido.
f)
Maria Antônia impôs que Antenor
mudasse caso quisesse se casar com ela.
g)
Antenor nunca trairia alguém que o
tivesse ajudado.
h)
Antenor desconfiava de sua cabeça
porque tudo o que fazia era considerado falta de bom senso.
04 – Antenor, certo dia,
lembra-se de que se esquecera de sua cabeça na relojoaria. Releia estas falas
do relojoeiro e responda no caderno:
“—
[...]. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a
sua cabeça.”
“— As cabeças de papelão não são más de
todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.”
a)
Qual a razão da ansiedade do relojoeiro?
O relojoeiro queria dizer a Antenor o quanto sua cabeça era
perfeita, rara e admirável.
b)
Explique o que são fabricações por série.
Organização de peças idênticas para a montagem de produtos
idênticos.
c)
Ao afirmar que as cabeças de papelão são fabricações
por série e vendem muito, há a sugestão de uma ideia importante para o contexto
geral do conto. Que ideia é essa?
A de que cabeças de papelão são muito comuns; de que quem tem uma
tem-na igual à de outros tantos, pensando e agindo, portanto, da mesma forma.
05 – Por que Antenor não
aceitou levar sua cabeça para casa? Justifique sua resposta com um trecho
retirado do texto.
Antenor preferiu
ficar com a verdade da sociedade na qual estava inserido, pois sabia que só
seria aceito com a cabeça de papelão, jamais com sua cabeça. “-- Pode ser que
V. Exa., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos
outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem.”
06 – Releia e, depois,
responda no caderno:
“Cabeças e relógios querem-se conforme
o clima e a moral de cada terra.”
“E, em vez de viver no País do Sol um
rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável
– um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo
com uma cabeça de papelão.”
a)
O conto “O
homem de cabeça de papelão” faz uma crítica à moral social vigente em
determinado lugar, em certa época. Que moral social é essa?
A de que as pessoas precisam ser desonestas, trapaceiras,
interesseiras, traidoras, oportunistas se quiserem se dar bem na sociedade.
b)
É possível verificar esse tipo de moral hoje
na sociedade em que vivemos? Dê exemplos.
Resposta pessoal do aluno.
c)
Se todas as pessoas resolvessem agir conforme
a moral vigente no País do Sol, como se tornaria a vida em sociedade?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Se todos agiram pensando em
levar vantagens, todos serão prejudicados.
07 – A cabeça de papelão, no
contexto do conto, é uma metáfora dos valores morais de muitas pessoas. Vamos
tentar entender o sentido metafórico da expressão cabeça de papelão.
a)
A cabeça é considerada uma parte nobre do
corpo. Tente explicar por quê?
É na cabeça que se localizam o cérebro e os órgãos da visão, da
audição, do paladar e do olfato. Ela rege boa parte das ações humanas; é o
centro do controle emocional e fonte dos pensamentos e ideias.
b)
E quanto ao papelão? Trata-se de um material
nobre?
Não, o papelão é um material extremamente frágil, sem valor algum;
qualquer objeto feito de papelão será de fácil deterioração.
c)
O que significa, portanto, ter cabeça de papelão?
Significa não ter valores, não ter firmeza de caráter e não
conseguir, também, pensar por si mesmo.
d)
Traduza a ideia principal do conto
completando a frase:
Antenor
transformou-se em alguém ilustre e respeitado com uma cabeça de papelão. Logo,
aqueles que seguem a opinião geral e conseguem as coisas por meios desonestos e
imorais têm cabeça de papelão.
08 – A substituição de uma
cabeça normal por uma de papelão é o elemento fantástico usado para fazer uma
crítica ao comportamento humano em sociedade. Nesse contexto, de que outro
material poderia ser feita a cabeça das pessoas da sociedade retratada no
texto? Justifique sua resposta no caderno.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: de
gelo, por causa da frieza do comportamento; de pedra, por ser dura, de ideias
limitadas, etc.
Nenhum comentário:
Postar um comentário