terça-feira, 20 de outubro de 2020

CONTO: O CORAÇÃO COMIDO - PARTE II - GILLES MASSARDIER - COM GABARITO

 Conto: O coração comido – parte II

          Gilles Massardier

        Levei vários minutos para entender e forçar o engenhoso mecanismo da passagem secreta. Finalmente ela se abriu, com muitos rangidos e estalos, revelando uma escada de pedra em caracol, que mergulhava nas trevas; Escutei atentamente: reinava um silêncio mortal. Acendi uma tocha no braseiro e enveredei, todos os meus sentidos alertas, pela passagem, fechando a porta atrás de mim. Tinha a impressão de entrar num túmulo.

        Após uma descida que me pareceu interminável, desemboquei numa estreita tripa de pedra cujas paredes suavam de umidade e fediam a mofo. Eu devia estar nas entranhas do castelo. Uma corrente de ar glacial atravessou o tecido rústico do meu hábito. Arrepiei-me todo. Avancei lentamente rente as paredes, tendo como única luz a da minha tocha, tomando cuidado para não cair em algum alçapão.

        Meus nervos estavam no auge da tensão; o sangue palpitava em minhas têmporas.

        O arrastar das minhas sandálias nas lajotas repercutia de parede em parede, enchendo a passagem de ecos. Eu fazia mais barulho do que vinte homens juntos.

        Aquilo me tranquilizava e, ao mesmo tempo, me inquietava.

        O corredor bifurcou à direita, depois à esquerda, depois novamente à direita, antes de dar numa sala fechada por três portinhas. Abri a que estava à minha frente e passei por ela: dava num corredor, pelo qual segui. Ao fim de uma centena de metros, cheguei a uma segunda sala, também ela com várias portas. As passagens e os entroncamentos se multiplicavam infinitamente: eu estava num labirinto! Não tinha a menor intenção de abandonar minhas investigações, mas o risco de me perder naqueles subterrâneos não me entusiasmava nem um pouco. Eu tinha de tomar certas precauções, antes de aventurar-me mais profundamente por ali.

        Minhas mãos remexeram nervosamente as dobras do meu hábito e tiraram dele um tinteiro de chifre, que por sorte esquecera de guardar na biblioteca. Ele ia ser utilíssimo.

        Animado com a descoberta, continuei meu caminho naquele dédalo de túneis e corredores, desenhando com os dedos uma cruz nas paredes, a fim de marcar minha passagem. Mas a reserva de tinta não demorou a acabar. Furioso, pensei em voltar, quando o corredor que eu tomara terminou num beco. No fundo, percebi uma forma encostada na parede, sentada, imóvel, silenciosa. Após um momento de hesitação, aproximei-me. Um corpo banhava numa poça de sangue coagulado. A julgar pela rigidez cadavérica e pelo estado de decomposição, a morte devia remontar a mais de um dia, talvez dois. Tinha sido espancado brutalmente: estava coberto de ferimentos. O mais horrível, porém, era o enorme buraco no lado esquerdo do peito. Tinham arrancado seu coração!  Diante de tamanha abominação, meus cabelos ficaram em pé.

        Uma viela despedaçada, bem como as páginas ensanguentadas e rasgadas de um pequeno manuscrito, estavam espalhadas ao lado do cadáver. Peguei uma das folhas de pergaminho e decifrei seu conteúdo: o fragmento de um conto cortês que não pude identificar. A verdade revelou-se, terrível: eu havia encontrado o namorado de Béatrice!

        Subi o mais depressa que minhas pernas e o meandros do labirinto permitiam. Emergi enfim nos aposentos do barão. Nesse instante, uma voz sonora me fez estremecer:

        “Ora, vejam só, frei Adalbert! Visitando o castelo, irmão?”

        Giraud de Valgaillard me encarava. Medi então toda a minha imprudência. Fiquei petrificado, incapaz de um só movimento, a língua colada ao céu da boca, as pernas trêmulas. Larguei as folhas sangrentas que trouxera da masmorra.

        Passado o primeiro instante de estupor, recobrando o controle, sustentei seu olhar e acusei-o:

        “Eu sei de TUDO, senhor Giraud! O senhor é um ASSASSINO!”

        “Bravo! Bela réplica, frei Adalbert! Está ensaiando para um mistério?”, ele me interrompeu ironicamente.

        Sua boca contraiu-se num riso cruel.

        “Chegou na hora certa, frei Adalbert. Eu queria mesmo me confessar...”

        Fingi não entender.

        “Frei Adalbert, confesse-me!”, disse ele com uma voz sibilante, apontando para um banco.

        A cólera contida arroxeava os arranhões que marcavam sua bochecha esquerda. Sus olhos giravam loucamente nas órbitas.

        De repente sua fisionomia se aplacou; sua voz tornou-se suplicante:

        “Frei Adalbert, o senhor não pode recusar...”

        Impotente, sentei-me diante dele, pronto para ouvir a longa lista dos seus pecados.

        “O senhor certamente sabe que um fazedor de versos seduziu sua aluna, minha querida filha. Calarei as circunstâncias do encontro dos dois para entrar logo no assunto. O amor é cego, cego e imprudente... Ah, que tolos! Será que acreditavam mesmo que sua paixão nunca seria descoberta? Que eu permitiria uma aliança descabido como aquela? Anteontem, peguei em flagrante os dois pombinhos, que Agnès mimava. Com meus homens, agarrei o amante da minha filha e prometi a ela que o baniria de minhas terras sem fazer-lhe nenhum mal. Na verdade, mandei leva-lo para os subterrâneos do castelo, matei-o e, com minhas próprias mãos, arranquei-lhe o coração.”

        Ontem, fui ver minha filha em seu quarto.

        “Minha criança, eu lhe perdoo esse namorico. Como prova da minha sinceridade, você e esse... rapaz serão meus convidados de honra, esta noite mesmo.”

        “Deixei-a entregue a sua alegria recobrada, inconsciente da minha perfídia, e desci quatro a quatro os degraus que levam às dependências de serviço do castelo.”

        “Preparem a sala principal! Ponham a mesa com uma toalha branca bordada e a baixela de prata! Andem! Criados, cozinheiros, ao trabalho!”.

        “Enquanto os preparativos do banquete iam de vento em popa, chamei à parte meu cozinheiro e entreguei-lhe o coração do moço:

        “Tome! Prepare-o a seu modo. Conto com você para fazer com ele um prato saboroso, digno de uma rainha. Vai servi-lo esta noite à minha meiga filha”.

        “Chegada a hora, um serviçal anunciou o jantar com um toque de trompa. Lavamos as mãos antes de nos sentarmos à mesa. Béatrice, é claro, espantou-se ao não ver o amado.”

        “Pai, onde está ele? Por que ainda não está aqui?”

        “Calma, querida! Ele já vem. Em carne... Mandou dizer que chegará atrasado.”

        “Eu não estava com o menor apetite naquela noite, em compensação não parei de esvaziar minha taça e logo me embriaguei.”

        “De ótimo humor, minha filha provou um pouco de cada prato. Adora o coração ensopado, que repete até acabar o prato. Esquecendo-se das boas maneiras, lambe os dedos úmidos de molho.”

        “Pai, que delícia estava essa carne!!”

        “Não me espanta que tenha apreciado esse prato. Você não podia deixar de saborear, guisado e temperado, o que você adorava vivo e palpitante.”

        “Desculpe, não estou entendendo. O que o senhor me deu para comer?”

        “Minha filha, esta carne que tanto lhe agradou, outra coisa não era que o coração do seu namorado. O lindo coração lhe serviu de alimento. Aqui está a prova do que digo: o anel que tirei do cadáver do seu trovador. Ó delícias do amor!”

        “A náusea se apodera da minha filha, que se curvou para o chão e vomita. Depois, enfurecida, precipita-se sobre mim, unhas à mostra. Uma saraivada de socos e arranhões se abate sobre meu rosto e meu peito, mas continuei a zombar:”

        “Ele não queria lhe dar o coração? O desejo dele foi satisfeito! Melhor ele não podia esperar. Agora vocês estão reunidos. Você consumiu o seu amor. Devorou-o com apetite!”

        “De repente, ela se acalma; seus punhos pararam de me bater. Seu rosto perde a expressão. Suas mãos põem-se a rodopiar como se tocassem um instrumento imaginário, enquanto ela entoa uma cantilena obsessiva. Sua razão fraqueja. Ela promete ir ao encontro do amado... Presa do delírio, foge da sala. Corre para as galerias superiores e atira-se no vazio. Morreu louca e amaldiçoada.”

        “Pronto! O senhor agora sabe de toda a história, frei Adalbert. Mas para que servirá saber, se não pode contar nada a ninguém? O segredo da confissão condena o senhor ao silêncio. Quem irá cobrar por meus atos?”

        Nenhuma palavra de arrependimento, nenhum remorso saiu dos lábios do senhor Giraud. Ele até se orgulhava do seu feito! Apavorado, fugi do castelo, deixando o castelão impune.

        Dez anos se passaram desde esses terríveis acontecimentos. Soube recentemente que o Senhor Giraud de Valgaillard multiplicara suas peregrinações, antes de morrer combatendo na oitava cruzada. Sua morte foi heroica, dizem. Ele teria entrado no sangrento corpo a corpo berrando como um possesso: “Béatrice! Deus! Perdão!” Não era um grito de guerra.

        Eu, Adalbert, frade, sei da falta da qual ele tentava redimir-se, em vão. Que Deus, Nosso Senhor Onipotente, tenha piedade da sua alma!

Adaptado de Gilles MASSARDIER. Contos e lendas da Europa Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Fonte: Língua Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P. 22-7.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Dédalo: labirinto.

·        Impune: sem punição.

·        Mistério: peça de teatro com tema religioso.

·        Pasto: comida, alimento.

·        Perfídia: ação traiçoeira, desleal.

02 – O tom do mistério caracteriza grande parte do conto, graças a alguns recursos usados. Entre os elementos do gênero conto dados abaixo, quais contribuem para a criação do clima de mistério em “O coração comido”?

a)   A narração em primeira pessoa.

b)   A caracterização do espaço.

c)   A narração em tempo cronológico.

d)   A narração em tempo psicológico.

e)   A época em que se deram os acontecimentos.

f)    As características das personagens.

g)   O enredo.

03 – Uma fórmula narrativa é uma espécie de modelo que muitos autores usam para contar uma história. Pode-se afirmar que “O coração comido” segue uma fórmula? Dê exemplos que justifiquem sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A caracterização dos espaços sempre escuros ou sombrios, o início com um acontecimento trágico e inexplicável são elementos comuns a qualquer conto de mistério.

04 – A descrição é fundamental na construção de um conto de mistério; é por meio dela que o leitor tem a possibilidade de imaginar as personagens e os lugres descritos. Se a descrição for eficiente, poderá garantir a tensão necessária ao desenvolvimento do enredo, até o momento do desfecho. Releia os parágrafos de 2 a 5 e indique no caderno os elementos do ambiente responsáveis por manter o leitor em expectativa.

      O fato de a escada estar totalmente escura, sendo iluminada apenas pela tocha que o frei carrega; as várias bifurcações do corredor; as salas com mais de uma porta; os corredores imensos; as passagens e os entroncamentos.

05 – A partir do momento em que frei Adalbert adentra as entranhas do castelo, uma sequência de situações aumenta a tensão criada no conto. Observe que para criar essa tensão o narrador destaca a ausência de controle da personagem sobre os acontecimentos e, além disso, provoca no leitor uma expectativa em relação às soluções adotadas. Entretanto, para garantir a tensão, todas as expectativas deverão ser frustradas. Observe:

        “Minhas mãos remexeram nervosamente as dobras do meu hábito e tiraram dele um tinteiro de chifre, que por sorte esquecera de guardar na biblioteca. Ele ia ser utilíssimo.

        Animado com a descoberta, continuei meu caminho naquele dédalo de túneis e corredores, desenhando com os dedos uma cruz nas paredes, a fim de marcar minha passagem.”

·        Expectativa criada no leitor: O leitor imagina que o narrador-personagem, com esse recurso, vai poder percorrer o labirinto em segurança, sem o perigo de perder-se.

·        O que acontece: A tinta acaba, e o narrador-personagem, furioso, pensa em voltar antes de concluir a investigação.

Agora complete no caderno:

a)   Furioso, pensei em voltar, quando o corredor que eu tomara terminou num beco.

·        Expectativa criada no leitor: O leitor imagina que talvez frei Adalbert volte para o quarto do barão e deixe para depois as investigações.

·        O que acontece: Frei Adalbert depara com uma forma encostada na parede, sentada, imóvel, silenciosa.

b)  Subi o mais depressa que minhas pernas e os meandros do labirinto permitiam. Emergi enfim nos aposentos do barão.

·         Expectativa criada no leitor: O leitor é levado a acreditar que o frei, agora com as provas do crime, denunciará o barão pela atrocidade que cometeu ou que o barão matará o frei.

·        O que acontece: O barão estava em seus aposentos e aguardava o frei.

06 – A reação do frei Adalbert ao encontrar o barão a sua espera reforça a tensão narrativa:

        “Medi então toda a minha imprudência. Fiquei petrificado, incapaz de um só movimento, a língua colada ao céu da boca, as pernas trêmulas. Larguei as folhas sangrentas que trouxera da masmorra.”

a)   Frei Adalbert tinha motivos para sentir medo do barão?

Sim, pois vira do que o barão era capaz. Além disso, sabendo que o frei tomara conhecimento do assassinato do trovador, o senhor de Valgaillard poderia tentar mata-lo para não ser denunciado.

b)   O barão, no entanto, quebra a expectativa do narrador-personagem e a do leitor. Explique a estratégia adotada pelo barão para se livrar da acusação de frei Adalbert.

O barão resolve confessar tudo o que fizera, assim teria a garantia do silêncio do frei. “Pronto! O senhor agora sabe de toda a história, frei Adalbert. Mas para que servirá saber, se não pode contar nada a ninguém? O segredo da confissão condena o senhor ao silêncio.”

07 – O relato do barão revela mais do que sua personalidade assassina. Explique essa afirmação apresentando informações do texto.

     O barão, além de assassino, era frio e sádico, pois fora capaz não só de assassinar o namorado da filha, mas de agredi-la e humilhá-la fazendo-a comer o coração do amado.

08 – Ao final da confissão do castelão, o que mais surpreende o frei?

      O fato de o barão não parecer sentir remorso, não se mostrar arrependido do que fez. Ao contrário, até se orgulhava do que fizera.

09 – O desfecho do texto (penúltimo parágrafo) faz referência a um comportamento surpreendente do barão. Ao relatá-lo, o narrador sugere ter havido uma grande mudança no comportamento do pai de Béatrice.

a)   Que mudança foi essa?

O barão arrependeu-se do que fez.

b)   O que o barão resolveu fazer para aplacar esse novo sentimento?

Lutar nas cruzadas.

 

 

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