quinta-feira, 15 de outubro de 2020

CONTO: TALISMÃ - IVAN ÂNGELO - COM GABARITO

 Conto: Talismã

               Ivan Ângelo

     Eu não teria seguido o homem pelas ruas nem presenciado as coisas que fez acontecer à sua passagem se ele não levasse sua flor – uma só, de longo caule, três folhas viçosas, vermelha: cravo –, se não a levasse com extremo cuidado, como coisa mais preciosa do que flor. Logo percebi que a estranheza do próprio homem contaminava a cena toda. Na cabeça, chapéu, cavanhaque, suíças, bigodes. Vestia um paletó justo de casimira cinza escura, colete de seda creme, jabô em vez de gravata, calças listradas de cós muito alto. Calçava borzeguins e polainas. Parecia ter saído de uma fotografia antiga e não tinha como voltar.

        As duas coisas juntas, a figura e o jeito como levava sua flor, não pareciam perturbar as outras pessoas, que passavam por elas como se aquilo acontecesse todos os dias às cinco horas da tarde de suas vidas. Indiferente por sua vez às pessoas, ele atravessava a avenida central com aquele seu jeito de não saber como se leva uma flor. O que o fazia diferente das outras pessoas que levavam flores era a concentração: ele mais tomava conta do que levava. Segurava-a na metade do caule com três dedos da mão esquerda; a mão direita, um pouco em concha, protegia-a. Como se fosse uma vela acesa! – era isso. O homem levava a flor como habitualmente se leva uma vela acesa: defendendo, prestando atenção, olhando a chama.

        Se fosse um buquê de rosas, uma corbelha, talvez não parecesse estranho, pode ser que eu não o tivesse percebido, ou que o considerasse apenas um desses atores sem emprego que hoje em dia levam mensagens vivas a um aniversariante. Se levasse uma rosa frágil, despetalável, talvez parecesse natural protege-la com tanto cuidado. Mas um cravo vermelho, taludo, viçoso... um só...

        Sem perceber, fui sendo envolvido, fui-me entrosando num curso de vida que não era o meu, não era o das coisas que me diziam respeito. Coisa feita: estava espreitando um homem que surpreendera num momento de exceção, invadia um outro mundo. Se ele fizesse um gesto banal, se cheirasse a flor, por exemplo, eu me libertaria: ah, é um homem qualquer com uma flor qualquer. Mas não: ele se movimentava com um encanto calculado, como um ator, e era eu a plateia. Ninguém mais parecia interessado. Diabos e anjos sabem para quem aparecem.

        Na tentativa de incluí-lo no mundo corriqueiro, costurei hipóteses. Enterro. Impossível: flor vermelha, uma só, um sorriso invisível. Namorada. Ia leva-la para uma namorada. Improvável: um homem com seu estilo mandaria um buquê, por mensageiro. Presente para a namorada. Possível, mas... um homem de uns sessenta anos, com aquelas roupas, parecia ridículo ou fora do papel se estivesse protegendo como preciosidade uma simples flor de namorada. Nada, nele, parecia ridículo. Bizarro, mas não ridículo. Levava-a para a esposa. Hipótese inadequada: maridos sabem que esposas não se contentam com um cravo único, querem buquê, e de rosas.

        Pode ser que à sua passagem já estivessem acontecendo pequenas mudanças de ordem, antes que eu percebesse, alterações imperceptíveis a olhos descuidados, como os meus até então, atentos mais à figura do que às suas circunstâncias. Quando me dei conta de que o sinal de trânsito abrira para ele e para os outros pedestres em tempo rapidíssimo, e que um segundo antes o homem como que erguera rapidamente o cravo e deixara de protege-lo por um momento, senti um arrepio e suspeitei que ele tinha feito aquilo acontecer, tinha apressado o sinal de pedestres. Suspeitei mais: que coisas como aquelas já vinham acontecendo e eu tinha me recusado a ver.

        Entrou em uma confeitaria. Lotada. Pude ver seus olhos a percorrer a vitrina, a lambiscar tortinhas, sequilhos, docinhos, à procura. Olhos cinzentos, como os de um cão siberiano. Mal encontrou – com um ah! – o que queria, materializou-se uma balconista solícita e saiu levando uma sacolinha pendurada no dedo, antes dos que já estavam lá há mais tempo. Na calçada, por onde eu tinha de avançar aos encontrões, davam-lhe caminho, gentis. Rostos preocupados desanuviavam-se à sua passagem. Parou aparentemente para prender as presilhas da polaina próxima a uma mendiga que amamentava um bebê mulato raquítico. O ritmo dos passantes, a pressa, o rumo, aparentemente não se alteravam, mas algo inusitado começou a acontecer naquele momento: atarefadas como abelhas, e com naturalidade como se fizessem aquilo todos os dias, as pessoas encheram em alguns instantes a cuia da mulher de moedas, anéis, notas altas. O homem da flor seguiu seu caminho depois de arrumar os sapatos, aparentemente alheio àquilo tudo. Andava com agilidade e graça diferentes da pressa cansada dos citadinos vesperais em fim de jornada. Novos eventos inesperados aconteciam no seu caminho. Um ônibus que atropelou um rapazinho e ia passando por cima dele parou de repente, travou, quebrou. A buzina do carro de um gorducho irritado com o trânsito que parou atrás do ônibus emudeceu contra a vontade dele. Desprovido da sua arma, o gorducho passou a dar socos no miolo do volante. Não aconteceu só com ele: nenhuma buzina soava. O rapazinho se levantou, reanimado, e tudo voltou a andar, junto. Ninguém parecia perceber que não havia acaso nesses acontecimentos. Sem dar na vista, o homem da flor com certeza se divertia pelo lado de dentro.

        Parou numa esquina, olhou para os três lados, não sei se escolhendo milagres ou rumo. Seus olhos siberianos cruzaram com os meus tropicais e os prenderam por um breve momento. Vamos?, ele disse. Obrigado, eu disse. No tempo entre essas duas falas algo que me escapa se passou. Tive a impressão de estar de volta quando disse obrigado. Só uma impressão. Não havia nada nada nada de que eu lembrasse ou que o indicasse. Como se voltasse de uma distração. Depois desse momento, algo mudou em mim. Não tenho mais medo do destino ou do futuro, não sinto mais a angústia que irmana os homens. Nada de ruim acontece realmente com bilhões e bilhões de pessoas, nada que piore verdadeiramente suas vidas ou as faça sofrer mais do que estão habituadas a suportar, mas elas não sabem que é assim que vai ser. A diferença entre mim e elas, que me torna um pouco humano, é que eu sei que nada de ruim vai me acontecer. Desde aquele dia.

        Naquela esquina, às cinco horas da tarde do centro da cidade de São Paulo, o homem sorriu para mim discretamente e levantou a mão com a flor. Um táxi parou, como se produzido por aquele gesto. Antes de entrar no táxi, despediu-se com um aceno de cabeça e, num exagero de mágico, ultima graça antes de deixar o picadeiro, jogou para o ar sua flor, que se transformou em pássaro e desapareceu no céu, em gracioso voo.

             Ivan Ângelo. O ladrão de sonhos e outras histórias. São Paulo: Ática, 1994.

Fonte: Língua Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P. 94-8.

Entendendo o conto:

01 – Escreva no caderno que perguntas você se fez durante a leitura do texto.

      Resposta pessoal do aluno.

02 – Sente-se com dois ou três colegas e discutam as resposta possíveis às questões que cada um levantou durante a leitura.

      Resposta pessoal do aluno.

03 – O conto “Talismã” foi escrito em primeira pessoa. A forma como o narrador está inserido na cena pode ser representada por apenas uma das ideias a seguir:

a)   Uma pessoa contando para a outra o que conversou com um amigo.

b)   Uma pessoa comentando com outra o próprio comportamento.

c)   Uma pessoa contando detalhes do comportamento de outra.

d)   Uma pessoa descrevendo todos os movimentos e sensações de outra.

04 – É pelo olhar do narrador que testemunhamos as cenas. No caderno, façam uma síntese de cada parágrafo do conto. Destaquem com suas palavras os principais elementos dessas cenas, reconstruindo o percurso narrativo. Se necessário, deem suas impressões sobre esses elementos:

      Resposta pessoal do aluno. Sugestões:

·        Parágrafo 1 = O narrador resolveu seguir um homem porque ele carregava um cravo com cuidado e vestia-se com roupas antigas.

·        Parágrafo 2 = O homem, indiferente às pessoas que passavam por ele, levava a flor protegendo-a, como se ela fosse uma vela.

·        Parágrafo 3 = O narrador comenta que o modo delicado de levar uma flor tão viçosa como um cravo lhe causou admiração.

·        Parágrafo 4 = O narrador sente-se envolver pelos movimentos aparentemente calculados do homem e isso o surpreende.

·        Parágrafo 5 = O narrador conta as hipóteses que levantou para tentar tornar o homem mais comum e justificar seu gesto solene com a flor.

·        Parágrafo 6 = O narrador suspeita que o homem é capaz de fazer com que as coisas aconteçam de acordo com o seu desejo.

·        Parágrafo 7 = O narrador nota de modo mais claro a sequência de eventos inesperados e favoráveis ocorridos com a passagem do homem.

·        Parágrafo 8 = O narrador trava um rápido, mas profundo contato com o homem. Isso o transforma e lhe dá a certeza de que nada de ruim vai lhe acontecer.

·        Parágrafo 9 = O homem sorri para o narrador, lança para o ar a flor, que se transforma em um pássaro.

05 – Em que parágrafo o narrador passa a observar a influência do homem sobre os acontecimentos à sua volta?

      No sexto parágrafo.

06 – No caderno, relacionem todas as alterações ocorridas por influência da passagem do homem que carregava a flor.

      Ele apressou o sinal dos pedestres; em uma confeitaria, uma balconista apareceu assim que ele escolheu o doce; as pessoas davam-lhe passagem de maneira gentil; rostos preocupados desanuviavam-se a sua passagem; pessoas encheram a cuia de uma mendiga com notas altas e objetos de valor; um ônibus travou no momento em que passaria por cima de um rapazinho que atropelara; a buzina de um motorista irritado com o ônibus emudeceu; o rapazinho atropelado levantou-se, refeito; após cruzar os olhos com os olhos do homem, o narrador percebeu uma profunda transformação em seu ser.

07 – Para o narrador, os eventos que testemunhou são extraordinários porque rompem a ordem previsível dos fatos.

a)   Diante das mesmas situações narradas, o que se poderia esperar que acontecesse?

As dificuldades naturais enfrentadas pela maioria das pessoa, como muito tempo de espera, falta de gentileza, comportamentos egoístas, mesquinhos ou mesmo a morte do rapaz atropelado, caso o ônibus passasse por cima dele.

b)   Que comportamentos extraordinários, surpreendentes, portanto, são observados pelo narrador?

O narrador observa a bondade, a gentileza, a simpatia e a solução positiva de um evento que poderia ser transformado em tragédia.

c)   Baseando-se nas respostas dadas aos itens anteriores, concluam: Os eventos observados pelo narrador são mágicos, ou seja, só poderiam ocorrer por meio de uma interferência sobrenatural?

Não são mágicos esses eventos; ao contrário, eles são realmente possíveis, no entanto, não são comuns, daí a admiração do narrador por eles.

d)   Na opinião de vocês, o que faz o narrador acreditar ser aquele homem com um flor o responsável por todos os eventos a sua volta?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O narrador impressionado com o jeito de ser do homem, passa a enxergar a bondade das pessoas, gestos que talvez ele nunca tivesse notado.

08 – O narrador percebe uma transformação depois que seus olhos cruzaram com os do homem. Que transformação é essa?

      O narrador deixa de ter medo do destino ou do futuro por ter ganhado a certeza de que nada de ruim poderia acontecer a ele.

09 – Segundo a lógica do trecho abaixo, o que seria mais humano?

        “A diferença entre mim e elas, que me torna um pouco humano, é que eu sei que nada de ruim vai me acontecer. Desde aquele dia.”

      O medo, a angústia diária por causa das incertezas da vida.

10 – De acordo com o texto, o que você leu sobre talismãs. Então, responda:

a)   Que poderes uma pessoa que acredita em um talismã imagina que esse objeto tem?

O poder de dar sorte, de levar a fazer as escolhas certas, de evitar que algum mal lhe aconteça.

b)   No texto, a que elemento é atribuído o poder de talismã? Justifique sua resposta.

No texto, à flor foi atribuído o poder de talismã; primeiro porque ela é levada com imenso cuidado, com grande solenidade, depois, porque um evento mágico é atribuído a ela, sua transformação em um pássaro.

c)   O narrador conta que se transformou após cruzar o olhar com o do homem da flor. Na sua opinião, a confiança depositada em um objeto ou em um acontecimento pode realmente promover uma mudança na forma de enxergar a realidade?

Resposta pessoal do aluno.

d)   A que deve ser atribuída essa mudança suave, mas tão significativa na vida do narrador?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Pode ser atribuída ao elemento mágico (a flor) e ao homem pela confiança que o narrador passou a ter nas circunstâncias e em si mesmo após ter cruzado seus olhos com os dele.

 

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