Conto: O coração comido – parte 1
Gilles Massardier Pam, pam, pam... As batidas insistentes abalavam a porta do meu
quarto. Pus o livro de orações em cima da mesinha bamba.
Ouvi gritos:
“Frei Adalbert, abra! Depressa! Oh, meu
Deus!”
Mal corri o ferrolho e entreabri a
porta, uma mulher gorda, aflita, entrou no aposento. Seu rosto estava branco
como um lençol. Puxou a manga do meu hábito, suplicando que fosse com ela. Percebendo
a gravidade da situação, precipitei-me para fora do quarto.
O pátio, iluminado pelas tochas, estava
em efervescência. As pessoas formavam um semicírculo em torno de um corpo que
eu mal conseguia ver. Ninguém ligava para a garoa. Uma velhinha rezava, ajoelhada
numa poça. Fórmulas mágicas apenas murmuradas respondiam aos sinais da cruz. À
minha chegada, a aglomeração se dispersou. Li em todos os rostos a estupefação
e o horror, a incompreensão e a piedade. Senti um aperto no coração enquanto baixava
os olhos para o corpo inanimado. A moça estava deitada, imóvel, nas pedras do chão
reluzentes da chuva. Uma leve brisa brincava nos véus que cobriam sua cabeça e
franzia sua túnica de linho verde. Um sapato de feltro jazia a alguns
centímetros do pé nu. Apesar do ângulo esquisito que sua cabeça fazia com o
busto e do sangue que manchava seus cabelos louros, Béatrice ainda era bonita.
Bruscamente, a torrente das lembranças
submergiu-me. Lembrei-me de nossos primeiro encontro, sete meses antes. Eu
havia sido enviado por meu superior ao senhor Giraud de Valgaillard, um dos
protetores da nossa ordem, a fim de completar a educação de sua filha Béatrice.
Sua falecida mãe fizera dela uma boa cristã e uma excelente dona de casa. Mas o
barão ambicionava elevar o nome da família casando-a com o melhor partido
possível. Em vista disso, ele queria que ela aprimorasse o conhecimento do
latim, língua dos poderosos deste mundo, assim como da música e da literatura.
Sua graça natural e seus novos talentos deviam abrir-lhe as portas douradas das
cortes da França ou da Inglaterra.
Numa bela tarde de primavera, seu pai
levara até ela, num pomar junto da velha morada senhorial. O ar recendia a
lilás, narciso e pilriteiro. O forte perfume dessas flores subia-me à cabeça.
Um rouxinol e um melro entoavam loas ao sol. No centro desse jardim encantador,
num banco de pedra, Béatrice ouvia sua dama de companhia cantar,
acompanhando-se à harpa.
O chiado dos nossos passos no cascalho
fez as moças se virarem e seus companheiros de canto revoarem numa onda de
penas. Ela era radiante, a mais bela criatura que Deus já pôs na terra! Uma
fada com uma pele de inigualável alvura. Seus pômulos altos, seu olhar
sorridente e sua boca viva, cujos lábios carmim entreabertos deixavam ver seus
dentes de pérola, davam-lhe um ar de atrevimento irresistível. A simplicidade
do seu vestido de linho (...) realçava sua beleza natural.
O véu do passado rasgou-se. Pouco a
pouco as recordações estufaram-se. Voltei a mim. Um guarda me relatava:
"Ela saiu correndo pelas galerias
superiores; depois, sem um grito, jogou-se no vazio. Não pude fazer nada”.
Aquela revelação foi como um soco na
boca do estômago. Por pouco não desmaiei. Por que motivo Béatrice decidiu pôr
fim a seus dias? Esse pensamento me revoltava.
“Onde está o senhor Giraud? Por que não
está aqui?”, exclamei, sacudindo o sentinela como se o rapaz fosse uma
ameixeira.
“Ele se trancou em seus aposentos...
Ninguém tem coragem de perturbá-lo...”.
Virei-me sem prestar mais atenção nas
suas palavras e pedi que transportassem a defunta para seu leito.
Uma vez à sua cabeceira, mandei que a
lavassem. Foi nesse instante que notei a ausência de um anel de esmeralda do
qual ela nunca se separava: era uma lembrança da mãe. Perplexo, examinei
atentamente suas mãos. Descobri debaixo das unhas fragmentos de carne e um fio
púrpura que não provinha nem da sua roupa nem da colcha avermelhada sobre a
qual ela jazia. Notei também manchas de molho e de vômitos em sua túnica.
Meu cérebro fervia de tantas perguntas.
Eu não conseguia explicar nem a ausência do barão nem minhas descobertas. Tudo
aquilo era estranho, muito estranho. Pouco a pouco formei a convicção de que a
morte da minha aluna ocultava um terrível segredo. Prometi-me descobri-lo. Dei
algumas orientações para que preparassem o corpo para sua derradeira viagem,
depois desci precipitadamente a escada que levava à grande sala senhorial.
Sua porta dupla de largos batentes
entreaberta. Parei um segundo e corri os olhos pela vasta peça. Estava tal qual
a deixáramos desde o jantar. As últimas achas acabavam de consumir-se na
monumental lareira, enquanto a cera das velas escorria ao longo dos grandes
candelabros de prata. Uma poltrona derrubada quebrava a bela ordem do lugar.
Inspecionei cada canto, cada móvel, começando pela mesa.
Ainda estava repleta dos pratos mais
diversos. Fora posta para três comensais. Mas somente duas taças – a do senhor
e a de sua filha – haviam sido utilizadas: um pouco de tanino permanecia no fundo
de cada uma delas. Béatrice e seu pai
teriam esperado em vão uma visita? Outro detalhe me perturbava: uma só fatia de
pão estava embebida de molho – um molho igual ao que eu tinha encontrado na
túnica da morta.
No chão, perto da poltrona derrubada,
notei sinais de vômito. De quatro, sondei o assoalho. Debaixo da mesa, descobri
o anel de esmeralda perdido no vão entre duas tábuas.
Revirei na minha cabeça os fracos
indícios que possuía. Impossível encontrar um nexo lógico entre eles! Pensei
então na dama de companhia e confidente de Béatrice: Agnès. Eu sabia dos
vínculos de amizade que a uniam à minha aluna. Será que ela sabia de alguma
coisa? A noite ia alta; resolvi então deixar para o dia seguinte meu encontro
com Agnès.
Naquela noite, tentei em vão dormir. Eram
muitas as perguntas sem resposta que turbilhonavam o meu espírito. Deitado no
colchão de palha, meus olhos relutavam em fechar-se, fixos no teto descascado.
Só de manhãzinha é que consegui adormecer, exausto.
Já passava da terça quando fui ter com
Agnès em seu quarto. Sentada num tamborete, ela remendava uma comprida
camisola. Ergueu para mim uma cara fechada, as pálpebras inchadas de tanto
chorar. Depois desviou os olhos, continuando seu trabalho. Era evidente que Agnès
não tinha a menor vontade de falar comigo. Peguei-a pelo queixo, forçando-a a
olhar para a joia que eu lhe mostrava.
“Agnès, reconhece este anel?”
Como única resposta, o sangue sumiu do
rosto da moça, e ela desmaiou em meus braços! Quando voltou a si, seus olhos
encheram-se de lagrimas. Tentou em vão contê-las. Seu lábio superior era
agitado por um tique nervoso, suas mãos tremiam.
“Santa Mãe misericordiosa! O anel de...
Eu sabia que aquilo acabaria mal...”
Os soluços entrecortavam suas palavras,
tornando-se quase inaudíveis.
“Vamos, vamos, minha filha... Você tem
que se controlar e contar-me tudo que sabe. Preciso saber a verdade.”
Agnès enxugou as lágrimas e inspirou
profundamente para deter a disparada do seu coração. Com uma voz frouxa, ela
revelou-me que Béatrice conhecera pouco tempo antes um rapaz. Trovador, nobre,
mas sem dinheiro, corria o mundo, vivendo da sua pena, da sua viela e da sua
espada. O barão o convidara uma noite para vir cantar umas trovas. Seus versos
impressionaram muito Béatrice, seu encanto a conquistou. Resumindo, a moça
ficou loucamente apaixonada por ele. Por sua vez, o rapaz não ficou nem um
pouco insensível à beleza de Béatrice – beleza que ele cantou diante de todos,
para grande desprazer do castelão.
Nas semanas que se seguiram,
encontraram-se às escondidas, com a cumplicidade de Agnès. Para selar um amor
eterno, Béatrice deu ao jovem cavalheiro seu precioso anel de esmeralda.
Mas os dois pombinhos ficaram cada vez
mais audaciosos e imprudentes. Tanto assim que o barão, que não tinha nada de
bobo, ficou a par dos encontros.
“Dois dias atrás”, revelou-me Agnès, “o
senhor Giraud e seus homens apareceram no pomar. Diante dos olhos assustados da
minha senhorinha, arrancaram seu amado de seus braços, jogaram-no no chão e
espancaram-no sem dó nem piedade. Ela bem que tentou protege-lo com seu corpo,
mas imobilizaram-na, segurando-lhe os pulsos nas costas. Béatrice conseguiu
escapar do soldado e prosternou-se aos pés do pai, implorando-lhe que poupasse
a vida do amado. Obteve do barão que o moço não fosse morto, apenas expulso de
suas terras. Os guardas arrastaram o pobre coitado, pés e mãos amarrados, para
fora do pomar... Não sei de mais nada. Desse dia em diante, não me deixaram
mais aproximar-me dela.”
“Por que não me contou nada?”,
perguntei-lhe.
Seus ombros cederam, ela mordeu os
lábios.
“Eu
estava aterrorizada... O barão é um homem violento. Eu... não tive coragem.”
Fiz o que pude para consolar Agnès
antes de afastar-me, pensativo. Quer dizer então que uma simples, uma banal
história de amor havia se transformado em um tragédia?
Tentei reconstruir os últimos instantes
de Béatrice. Na última ceia, feita em companhia de seu pai, ela parece ter
perdido toda esperança de rever um dia o ser amado. Uma ideia desagradável teimava
na minha cabeça: o barão não era homem de deixar viva uma pessoa capaz de
arruinar seus projetos matrimoniais. Só que eu precisava obter provas da sua
culpa. Aproveitei uma das suas ausências para me aventurar em seus aposentos.
A luz do dia quase não passava pelas
estreitas janelas do quarto, vasto e alto. No centro do cômodo, um braseiro
ardia; suas chamas refletiam-se nos móveis à volta: uma enorme cama de madeira
de lei, ladeada por baús finamente esculpidos com cenas de falcoaria.
Tapeçarias historiadas, cada uma mais magnífica que a outra, cobriam as
paredes. Dei uma volta pelo quarto, vasculhei-o minunciosamente. Uma das
tapeçarias tinha marcas de um desgaste anormal do lado esquerdo, na altura do
ombro, como se fosse manipulada com frequência. Afastando com um gesto vivo o
pesado tecido, descobri uma porta oculta.
Adaptado de Gilles
MASSARDIER. Contos e lendas da Europa Medieval. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
Fonte: Língua
Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula
Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P.11-7.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Acha: pequeno pedaço de madeira usado como lenha.
·
Castelão: senhor feudal que vivia em castelo e administrava a justiça
em sua região.
·
Falcoaria: arte da caça com falcões.
·
Historiado: decorado com personagens, geralmente de episódios das
escrituras.
·
Jazer: encontrar-se; estar como morto.
·
Loa: elogio, louvor.
·
Tamborete: pequeno banco.
·
Terça: as 9 horas da manhã, de acordo com os rituais católicos.
·
Viela: antigo instrumento musical de cordas.
02 – Você acabou de ler a
primeira parte do conto “O coração comido”. Resuma-a no caderno, em no máximo
cinco linhas.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A
jovem Béatrice, aluna de frei Adalbert e filha de um castelão poderoso,
lança-se das galerias superiores do castelo node vive e morre. Intrigado com as
causas do suicídio, o frei resolve investigar o caso. Agnès, ama de Béatrice,
lhe dá algumas informações. O frei entra no quarto do barão.
03 – Ao longo da narrativa,
fica clara a preocupação do narrador em não se limitar a contar os fatos. Com
poucas palavras, ele faz referências ao ambiente onde acontecem as ações da
história. Compare os trechos a seguir. Observe que cada um deles se refere a um
momento diferente da história:
I – “O pátio, iluminado pelas tochas, estava
em efervescência. [...] Ninguém ligava para a garoa. [...]. A moça estava deitada, imóvel, nas pedras do chão reluzentes da chuva.
Uma leve brisa brincava nos véus que cobriam sua cabeça e franzia sua
túnica de linho verde.”
II – “Numa bela tarde de primavera, seu pai levara até ela [...]. O ar recendia a lilás, narciso e
pilriteiro. [...]. Um
rouxinol e um melro entoavam loas ao sol. No centro desse jardim encantador,
num banco de pedra, Béatrice ouvia sua dama de companhia cantar,
acompanhando-se à harpa.”.
a)
Com qual fato vivenciado pelo narrador o
trecho do primeiro quadro se relaciona? E o do segundo quadro?
O primeiro quadro está relacionado ao momento em que o narrador
encontra Béatrice morta; O segundo apresenta um momento mais antigo, quando o
narrador conhecera Béatrice.
b)
Que relação se percebe entre cada um desses
ambientes e o fato que ocorre neles? O ambiente também está associado à situação
das personagens Agnès e o senhor Giraud de Valgaillard.
O escuro da noite iluminado por tochas, a garota e uma leve brisa
estão associados ao suicídio de Béatrice, um fato trágico. Já o primeiro
encontro com a menina, um momento descontraído, em que ela está feliz, é
relacionado à primavera, à luz do sol, ao canto dos pássaros, ao perfume das
flores.
c)
Que tipo de ambiente está associado à ama
Agnès antes da tragédia, isto é, onde ela se encontra no momento em que o
narrador a apresenta? Qual deve ser seu estado de espírito nesse momento? E
depois do suicídio?
Agnès é apresentada cantando e tocando harpa no pomar para Béatrice;
pode-se pensar que esteja feliz, descontraída nesse momento. Depois da
tragédia, frei Adalbert a encontra em seu quarto, chorosa e com medo da
violência do senhor de Valgaillard.
d)
E o barão? Qual era sua situação sete meses
antes do suicídio da filha? E logo depois da tragédia?
Sete meses antes da tragédia, o senhor de Valgaillard mostra-se um
homem ambicioso, desejoso de ver a filha casada com algum nobre da corte da
França ou da Inglaterra; após a tragédia, tranca-se em seus aposentos.
04 – Qual é a primeira
informação que o leitor recebe sobre Béatrice?
A informação de
que ela está morta por ter se atirado das galerias do castelo de seu pai.
05 – Em seguida por meio da
técnica do flashback, o leitor fica sabendo de acontecimentos anteriores da
vida da moça. Portanto nesse conto o tempo é psicológico, e não cronológico.
Lembrando que “O coração comido” é um conto de mistério, responda: teria sido
adequado o uso do tempo cronológico?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Em um conto de mistério, o foco deve recair sobre as
investigações, sobre a resolução do enigma, daí a adequação de iniciar a
história pela morte de Béatrice.
06 – Qual a importância de
empregar a técnica do flashback em um conto de mistério iniciado pelo fato que
motivou a investigação?
Voltar no tempo é
fundamental para que as informações que explicam o acontecimento investigado
venham à tona, dando sentido aos eventos narrados.
07 – Por meio de uma
sequência de quadrinhos ou de frases, reconte a primeira parte de “O coração
comido” usando o tempo cronológico.
O frei é enviado
ao castelo do senhor de Valgaillard para completar a educação da sua filha
Béatrice; o frei conhece Béatrice; Béatrice conhece um trovador, e eles se
apaixonam; o romance é descoberto pelo pai; Béatrice se atira das galerias
superiores do castelo e morre; o frei é chamado e inicia suas investigações.
08 – Contado no tempo
cronológico, esse conto de mistério conseguiria envolver o leitor?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: No tempo cronológico, o conto não seria tão envolvente.
09 – Ao longo da narrativa
são adotados diversos tons: o trágico, o de perplexidade, o de equilíbrio e
felicidade, o de mistério, o investigativo. Entre todos eles, no entanto,
destacam-se os tons de mistério e o investigativo adotados pelo
narrador-personagem a certa altura do texto.
a)
Que mistério ocupará os pensamentos do
narrador-personagem, frei Adalbert?
A razão do suicídio de Béatrice é o mistério que intriga frei
Adalbert, já que ela era uma moça feliz e cheia de vida.
b)
Em que momento da narrativa fica claro o tom
investigativo da história?
No momento em que frei Adalbert, ao examinar as mãos da jovem morta,
nota a ausência do anel de esmeralda.
10 – No caderno, faça um
levantamento dos dados observados por frei Adalbert e que, na sua opinião,
poderiam ajudar a desvendar o mistério.
Resposta pessoal do aluno.
11 – Releia o depoimento de
Agnès ao frei. Mentalmente, relacione o depoimento da ama aos dados anotados na
questão 10 e a esta constatação de Adalbert:
“Uma ideia desagradável teimava na
minha cabeça: o barão não era homem de deixar viva uma pessoa capaz de arruinar
seus projetos matrimoniais. Só que eu precisava obter provas da sua culpa.”
Elabore uma hipótese que explique a
causa da morte de Béatrice. Essa hipótese deve explicar todos os dados e as
evidências encontrados por frei Adalbert.
Resposta pessoal do aluno.
12 – Releia o trecho final
da primeira parte do conto: “A luz do
dia quase não passava pelas estreitas janelas do quarto, vasto e alto. No
centro do cômodo, um braseiro ardia; suas chamas refletiam-se nos móveis à
volta: uma enorme cama de madeira de lei, ladeada por baús finamente esculpidos
com cenas de falcoaria. Tapeçarias historiadas, cada uma mais magnífica que a
outra, cobriam as paredes.”
Nesse
trecho foi usado um recurso que revela o lado sombrio e sinistro do barão
Valgaillard. Que recurso é esse?
A descrição do
espaço: os aposentos do barão quase não recebem luz, há no centro um braseiro
cujas chamas refletem-se nos móveis. Trata-se de um ambiente que mistura luxo e
mistério.
Muito Obgd
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