terça-feira, 20 de outubro de 2020

CONTO: O CORAÇÃO COMIDO - PARTE 1 - GILLES MASSARDIER - COM GABARITO

 Conto: O coração comido – parte 1

  Gilles Massardier

        Pam, pam, pam...  As batidas insistentes abalavam a porta do meu quarto. Pus o livro de orações em cima da mesinha bamba.

        Ouvi gritos:

        “Frei Adalbert, abra! Depressa! Oh, meu Deus!”

        Mal corri o ferrolho e entreabri a porta, uma mulher gorda, aflita, entrou no aposento. Seu rosto estava branco como um lençol. Puxou a manga do meu hábito, suplicando que fosse com ela. Percebendo a gravidade da situação, precipitei-me para fora do quarto.

        O pátio, iluminado pelas tochas, estava em efervescência. As pessoas formavam um semicírculo em torno de um corpo que eu mal conseguia ver. Ninguém ligava para a garoa. Uma velhinha rezava, ajoelhada numa poça. Fórmulas mágicas apenas murmuradas respondiam aos sinais da cruz. À minha chegada, a aglomeração se dispersou. Li em todos os rostos a estupefação e o horror, a incompreensão e a piedade. Senti um aperto no coração enquanto baixava os olhos para o corpo inanimado. A moça estava deitada, imóvel, nas pedras do chão reluzentes da chuva. Uma leve brisa brincava nos véus que cobriam sua cabeça e franzia sua túnica de linho verde. Um sapato de feltro jazia a alguns centímetros do pé nu. Apesar do ângulo esquisito que sua cabeça fazia com o busto e do sangue que manchava seus cabelos louros, Béatrice ainda era bonita.

        Bruscamente, a torrente das lembranças submergiu-me. Lembrei-me de nossos primeiro encontro, sete meses antes. Eu havia sido enviado por meu superior ao senhor Giraud de Valgaillard, um dos protetores da nossa ordem, a fim de completar a educação de sua filha Béatrice. Sua falecida mãe fizera dela uma boa cristã e uma excelente dona de casa. Mas o barão ambicionava elevar o nome da família casando-a com o melhor partido possível. Em vista disso, ele queria que ela aprimorasse o conhecimento do latim, língua dos poderosos deste mundo, assim como da música e da literatura. Sua graça natural e seus novos talentos deviam abrir-lhe as portas douradas das cortes da França ou da Inglaterra.

        Numa bela tarde de primavera, seu pai levara até ela, num pomar junto da velha morada senhorial. O ar recendia a lilás, narciso e pilriteiro. O forte perfume dessas flores subia-me à cabeça. Um rouxinol e um melro entoavam loas ao sol. No centro desse jardim encantador, num banco de pedra, Béatrice ouvia sua dama de companhia cantar, acompanhando-se à harpa.

        O chiado dos nossos passos no cascalho fez as moças se virarem e seus companheiros de canto revoarem numa onda de penas. Ela era radiante, a mais bela criatura que Deus já pôs na terra! Uma fada com uma pele de inigualável alvura. Seus pômulos altos, seu olhar sorridente e sua boca viva, cujos lábios carmim entreabertos deixavam ver seus dentes de pérola, davam-lhe um ar de atrevimento irresistível. A simplicidade do seu vestido de linho (...) realçava sua beleza natural.

        O véu do passado rasgou-se. Pouco a pouco as recordações estufaram-se. Voltei a mim. Um guarda me relatava:

        "Ela saiu correndo pelas galerias superiores; depois, sem um grito, jogou-se no vazio. Não pude fazer nada”.

        Aquela revelação foi como um soco na boca do estômago. Por pouco não desmaiei. Por que motivo Béatrice decidiu pôr fim a seus dias? Esse pensamento me revoltava.

        “Onde está o senhor Giraud? Por que não está aqui?”, exclamei, sacudindo o sentinela como se o rapaz fosse uma ameixeira.

        “Ele se trancou em seus aposentos... Ninguém tem coragem de perturbá-lo...”.

        Virei-me sem prestar mais atenção nas suas palavras e pedi que transportassem a defunta para seu leito.

        Uma vez à sua cabeceira, mandei que a lavassem. Foi nesse instante que notei a ausência de um anel de esmeralda do qual ela nunca se separava: era uma lembrança da mãe. Perplexo, examinei atentamente suas mãos. Descobri debaixo das unhas fragmentos de carne e um fio púrpura que não provinha nem da sua roupa nem da colcha avermelhada sobre a qual ela jazia. Notei também manchas de molho e de vômitos em sua túnica.

        Meu cérebro fervia de tantas perguntas. Eu não conseguia explicar nem a ausência do barão nem minhas descobertas. Tudo aquilo era estranho, muito estranho. Pouco a pouco formei a convicção de que a morte da minha aluna ocultava um terrível segredo. Prometi-me descobri-lo. Dei algumas orientações para que preparassem o corpo para sua derradeira viagem, depois desci precipitadamente a escada que levava à grande sala senhorial.

        Sua porta dupla de largos batentes entreaberta. Parei um segundo e corri os olhos pela vasta peça. Estava tal qual a deixáramos desde o jantar. As últimas achas acabavam de consumir-se na monumental lareira, enquanto a cera das velas escorria ao longo dos grandes candelabros de prata. Uma poltrona derrubada quebrava a bela ordem do lugar. Inspecionei cada canto, cada móvel, começando pela mesa.

        Ainda estava repleta dos pratos mais diversos. Fora posta para três comensais. Mas somente duas taças – a do senhor e a de sua filha – haviam sido utilizadas: um pouco de tanino permanecia no fundo de cada uma delas.  Béatrice e seu pai teriam esperado em vão uma visita? Outro detalhe me perturbava: uma só fatia de pão estava embebida de molho – um molho igual ao que eu tinha encontrado na túnica da morta.

        No chão, perto da poltrona derrubada, notei sinais de vômito. De quatro, sondei o assoalho. Debaixo da mesa, descobri o anel de esmeralda perdido no vão entre duas tábuas.

       Revirei na minha cabeça os fracos indícios que possuía. Impossível encontrar um nexo lógico entre eles! Pensei então na dama de companhia e confidente de Béatrice: Agnès. Eu sabia dos vínculos de amizade que a uniam à minha aluna. Será que ela sabia de alguma coisa? A noite ia alta; resolvi então deixar para o dia seguinte meu encontro com Agnès.

        Naquela noite, tentei em vão dormir. Eram muitas as perguntas sem resposta que turbilhonavam o meu espírito. Deitado no colchão de palha, meus olhos relutavam em fechar-se, fixos no teto descascado. Só de manhãzinha é que consegui adormecer, exausto.

        Já passava da terça quando fui ter com Agnès em seu quarto. Sentada num tamborete, ela remendava uma comprida camisola. Ergueu para mim uma cara fechada, as pálpebras inchadas de tanto chorar. Depois desviou os olhos, continuando seu trabalho. Era evidente que Agnès não tinha a menor vontade de falar comigo. Peguei-a pelo queixo, forçando-a a olhar para a joia que eu lhe mostrava.

        “Agnès, reconhece este anel?”

        Como única resposta, o sangue sumiu do rosto da moça, e ela desmaiou em meus braços! Quando voltou a si, seus olhos encheram-se de lagrimas. Tentou em vão contê-las. Seu lábio superior era agitado por um tique nervoso, suas mãos tremiam.

        “Santa Mãe misericordiosa! O anel de... Eu sabia que aquilo acabaria mal...”

        Os soluços entrecortavam suas palavras, tornando-se quase inaudíveis.

        “Vamos, vamos, minha filha... Você tem que se controlar e contar-me tudo que sabe. Preciso saber a verdade.”

        Agnès enxugou as lágrimas e inspirou profundamente para deter a disparada do seu coração. Com uma voz frouxa, ela revelou-me que Béatrice conhecera pouco tempo antes um rapaz. Trovador, nobre, mas sem dinheiro, corria o mundo, vivendo da sua pena, da sua viela e da sua espada. O barão o convidara uma noite para vir cantar umas trovas. Seus versos impressionaram muito Béatrice, seu encanto a conquistou. Resumindo, a moça ficou loucamente apaixonada por ele. Por sua vez, o rapaz não ficou nem um pouco insensível à beleza de Béatrice – beleza que ele cantou diante de todos, para grande desprazer do castelão.

        Nas semanas que se seguiram, encontraram-se às escondidas, com a cumplicidade de Agnès. Para selar um amor eterno, Béatrice deu ao jovem cavalheiro seu precioso anel de esmeralda.

        Mas os dois pombinhos ficaram cada vez mais audaciosos e imprudentes. Tanto assim que o barão, que não tinha nada de bobo, ficou a par dos encontros.

        “Dois dias atrás”, revelou-me Agnès, “o senhor Giraud e seus homens apareceram no pomar. Diante dos olhos assustados da minha senhorinha, arrancaram seu amado de seus braços, jogaram-no no chão e espancaram-no sem dó nem piedade. Ela bem que tentou protege-lo com seu corpo, mas imobilizaram-na, segurando-lhe os pulsos nas costas. Béatrice conseguiu escapar do soldado e prosternou-se aos pés do pai, implorando-lhe que poupasse a vida do amado. Obteve do barão que o moço não fosse morto, apenas expulso de suas terras. Os guardas arrastaram o pobre coitado, pés e mãos amarrados, para fora do pomar... Não sei de mais nada. Desse dia em diante, não me deixaram mais aproximar-me dela.”

        “Por que não me contou nada?”, perguntei-lhe.

        Seus ombros cederam, ela mordeu os lábios.

        “Eu estava aterrorizada... O barão é um homem violento. Eu... não tive coragem.”

        Fiz o que pude para consolar Agnès antes de afastar-me, pensativo. Quer dizer então que uma simples, uma banal história de amor havia se transformado em um tragédia?

        Tentei reconstruir os últimos instantes de Béatrice. Na última ceia, feita em companhia de seu pai, ela parece ter perdido toda esperança de rever um dia o ser amado. Uma ideia desagradável teimava na minha cabeça: o barão não era homem de deixar viva uma pessoa capaz de arruinar seus projetos matrimoniais. Só que eu precisava obter provas da sua culpa. Aproveitei uma das suas ausências para me aventurar em seus aposentos.

        A luz do dia quase não passava pelas estreitas janelas do quarto, vasto e alto. No centro do cômodo, um braseiro ardia; suas chamas refletiam-se nos móveis à volta: uma enorme cama de madeira de lei, ladeada por baús finamente esculpidos com cenas de falcoaria. Tapeçarias historiadas, cada uma mais magnífica que a outra, cobriam as paredes. Dei uma volta pelo quarto, vasculhei-o minunciosamente. Uma das tapeçarias tinha marcas de um desgaste anormal do lado esquerdo, na altura do ombro, como se fosse manipulada com frequência. Afastando com um gesto vivo o pesado tecido, descobri uma porta oculta.

Adaptado de Gilles MASSARDIER. Contos e lendas da Europa Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Fonte: Língua Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P.11-7.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Acha: pequeno pedaço de madeira usado como lenha.

·        Castelão: senhor feudal que vivia em castelo e administrava a justiça em sua região.

·        Falcoaria: arte da caça com falcões.

·        Historiado: decorado com personagens, geralmente de episódios das escrituras.

·        Jazer: encontrar-se; estar como morto.

·        Loa: elogio, louvor.

·        Tamborete: pequeno banco.

·        Terça: as 9 horas da manhã, de acordo com os rituais católicos.

·        Viela: antigo instrumento musical de cordas.

02 – Você acabou de ler a primeira parte do conto “O coração comido”. Resuma-a no caderno, em no máximo cinco linhas.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A jovem Béatrice, aluna de frei Adalbert e filha de um castelão poderoso, lança-se das galerias superiores do castelo node vive e morre. Intrigado com as causas do suicídio, o frei resolve investigar o caso. Agnès, ama de Béatrice, lhe dá algumas informações. O frei entra no quarto do barão.

03 – Ao longo da narrativa, fica clara a preocupação do narrador em não se limitar a contar os fatos. Com poucas palavras, ele faz referências ao ambiente onde acontecem as ações da história. Compare os trechos a seguir. Observe que cada um deles se refere a um momento diferente da história:

I – “O pátio, iluminado pelas tochas, estava em efervescência. [...] Ninguém ligava para a garoa. [...]. A moça estava deitada, imóvel, nas pedras do chão reluzentes da chuva. Uma leve brisa brincava nos véus que cobriam sua cabeça e franzia sua túnica de linho verde.”

II – “Numa bela tarde de primavera, seu pai levara até ela [...]. O ar recendia a lilás, narciso e pilriteiro. [...]. Um rouxinol e um melro entoavam loas ao sol. No centro desse jardim encantador, num banco de pedra, Béatrice ouvia sua dama de companhia cantar, acompanhando-se à harpa.”.

a)   Com qual fato vivenciado pelo narrador o trecho do primeiro quadro se relaciona? E o do segundo quadro?

O primeiro quadro está relacionado ao momento em que o narrador encontra Béatrice morta; O segundo apresenta um momento mais antigo, quando o narrador conhecera Béatrice.

b)   Que relação se percebe entre cada um desses ambientes e o fato que ocorre neles? O ambiente também está associado à situação das personagens Agnès e o senhor Giraud de Valgaillard.

O escuro da noite iluminado por tochas, a garota e uma leve brisa estão associados ao suicídio de Béatrice, um fato trágico. Já o primeiro encontro com a menina, um momento descontraído, em que ela está feliz, é relacionado à primavera, à luz do sol, ao canto dos pássaros, ao perfume das flores.

c)   Que tipo de ambiente está associado à ama Agnès antes da tragédia, isto é, onde ela se encontra no momento em que o narrador a apresenta? Qual deve ser seu estado de espírito nesse momento? E depois do suicídio?

Agnès é apresentada cantando e tocando harpa no pomar para Béatrice; pode-se pensar que esteja feliz, descontraída nesse momento. Depois da tragédia, frei Adalbert a encontra em seu quarto, chorosa e com medo da violência do senhor de Valgaillard.

d)   E o barão? Qual era sua situação sete meses antes do suicídio da filha? E logo depois da tragédia?

Sete meses antes da tragédia, o senhor de Valgaillard mostra-se um homem ambicioso, desejoso de ver a filha casada com algum nobre da corte da França ou da Inglaterra; após a tragédia, tranca-se em seus aposentos.

04 – Qual é a primeira informação que o leitor recebe sobre Béatrice?

      A informação de que ela está morta por ter se atirado das galerias do castelo de seu pai.

05 – Em seguida por meio da técnica do flashback, o leitor fica sabendo de acontecimentos anteriores da vida da moça. Portanto nesse conto o tempo é psicológico, e não cronológico. Lembrando que “O coração comido” é um conto de mistério, responda: teria sido adequado o uso do tempo cronológico?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Em um conto de mistério, o foco deve recair sobre as investigações, sobre a resolução do enigma, daí a adequação de iniciar a história pela morte de Béatrice.

06 – Qual a importância de empregar a técnica do flashback em um conto de mistério iniciado pelo fato que motivou a investigação?

      Voltar no tempo é fundamental para que as informações que explicam o acontecimento investigado venham à tona, dando sentido aos eventos narrados.

07 – Por meio de uma sequência de quadrinhos ou de frases, reconte a primeira parte de “O coração comido” usando o tempo cronológico.

      O frei é enviado ao castelo do senhor de Valgaillard para completar a educação da sua filha Béatrice; o frei conhece Béatrice; Béatrice conhece um trovador, e eles se apaixonam; o romance é descoberto pelo pai; Béatrice se atira das galerias superiores do castelo e morre; o frei é chamado e inicia suas investigações.

08 – Contado no tempo cronológico, esse conto de mistério conseguiria envolver o leitor?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: No tempo cronológico, o conto não seria tão envolvente.

09 – Ao longo da narrativa são adotados diversos tons: o trágico, o de perplexidade, o de equilíbrio e felicidade, o de mistério, o investigativo. Entre todos eles, no entanto, destacam-se os tons de mistério e o investigativo adotados pelo narrador-personagem a certa altura do texto.

a)   Que mistério ocupará os pensamentos do narrador-personagem, frei Adalbert?

A razão do suicídio de Béatrice é o mistério que intriga frei Adalbert, já que ela era uma moça feliz e cheia de vida.

b)   Em que momento da narrativa fica claro o tom investigativo da história?

No momento em que frei Adalbert, ao examinar as mãos da jovem morta, nota a ausência do anel de esmeralda.

10 – No caderno, faça um levantamento dos dados observados por frei Adalbert e que, na sua opinião, poderiam ajudar a desvendar o mistério.

      Resposta pessoal do aluno.

11 – Releia o depoimento de Agnès ao frei. Mentalmente, relacione o depoimento da ama aos dados anotados na questão 10 e a esta constatação de Adalbert:

        “Uma ideia desagradável teimava na minha cabeça: o barão não era homem de deixar viva uma pessoa capaz de arruinar seus projetos matrimoniais. Só que eu precisava obter provas da sua culpa.”

        Elabore uma hipótese que explique a causa da morte de Béatrice. Essa hipótese deve explicar todos os dados e as evidências encontrados por frei Adalbert.

      Resposta pessoal do aluno.

12 – Releia o trecho final da primeira parte do conto: “A luz do dia quase não passava pelas estreitas janelas do quarto, vasto e alto. No centro do cômodo, um braseiro ardia; suas chamas refletiam-se nos móveis à volta: uma enorme cama de madeira de lei, ladeada por baús finamente esculpidos com cenas de falcoaria. Tapeçarias historiadas, cada uma mais magnífica que a outra, cobriam as paredes.”

        Nesse trecho foi usado um recurso que revela o lado sombrio e sinistro do barão Valgaillard. Que recurso é esse?

      A descrição do espaço: os aposentos do barão quase não recebem luz, há no centro um braseiro cujas chamas refletem-se nos móveis. Trata-se de um ambiente que mistura luxo e mistério.

 

     

 

 

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