Crônica: JAGUATIRICAS A BORDO
Fernando Sabino
De repente, em pleno voo a caminho de
Lisboa, passa por mim um comissário de bordo carregando uma jaguatirica.
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-AnuPJMJHKQxe8XsHMbc49ggGQLC21Gsr7lXjwWf3pzNz9DEmyu7ysjwlK17laMPFVGQiv9ujmwU2L2MoEmQEAjk4_1_QTN9peN63Z9ziH8v_KhHBeOdoEq1ZLCVC2cjM48HpyrjdZbEaSBWGJTnE71V-w2O3Z4JT8jz7Ri0-lzJDuJgTGWs_y1vo1mw/s320/JAGUA.jpg Os demais passageiros dormem na
penumbra do avião, eu também cochilava ainda há pouco. Estarei sonhando? Nada
disso, já vem o homem de volta com o bicho no colo.
-- Que bicho é esse? – pergunto.
-- Uma jaguatirica – responde ele
simplesmente, erguendo o felino nos braços para que eu o veja de perto: –
filhote ainda. Parece um gato, não parece?
-- Tira isso pra lá! – reajo,
encolhendo-me na poltrona. – Parece uma jaguatirica.
-- Pois é uma jaguatirica.
-- Você me disse.
Penso comigo: nada mais perecido com
uma jaguatirica do que uma jaguatirica. A longa viagem dentro da noite, os
passageiros dormindo, tudo conspira para me deixar vagamente idiota, os
passageiros flutuando no ar.
-- E posso saber o que está fazendo
essa sua jaguatirica aqui no avião? – pergunto, cauteloso.
-- Não é minha não – explica ele: – É de
um passageiro. Trouxe do Pará, vai levar para morar com ele em Lisboa. A minha
deixei no Rio, lá no meu apartamento, um amigo da comida pra ela enquanto
viajo.
-- A sua o quê?
-- A minha jaguatirica.
-- Ah! Quer dizer que você também tem
uma.
-- Tenho. Por que? O senhor não gosta
de jaguatiricas?
-- Gosto, gosto... Eu não sabia é que
estava na moda ter jaguatiricas. Confesso que no momento não tenho nenhuma.
-- Quem é que não gosta? – torna ele,
entusiasmado, procurando conter a fera, que se mexe ameaçadoramente nos seus
braços. – Um amigo meu lá em Teresópolis tem um leãozinho, mas leão dá muito
trabalho, o senhor não acha?
-- Sem dúvida – concordo, sacudindo a
cabeça: – Cortar as unhas, pentear a juba, essa coisa toda...
-- Jaguatirica não: mandei fazer umas
luvas, embaixo é peludinho, em cima é de náilon. Para não arranhar o sinteco,
sabe? Eu mesmo dou banho nela, é divertido, acredite.
-- Eu acredito – torno a concordar, sem
grande entusiasmo.
-- Não tem perigo nenhum – insiste ele:
– De morder, que eu digo. Só morde quando está com raiva. Pode é arranhar sem
querer. Mas não aparo as unhas dela, acho uma pena.
-- Realmente, seria uma pena.
Ele continua a dissertar animadamente
sobre o assunto:
-- Esse cara, por exemplo, vai se dar
mau com a jaguatirica dele. Porque, como o senhor sabe, jaguatirica não pode
viver só com o dono. Chega uma hora lá, tem de casar, não é isso mesmo?
-- Isso mesmo: não vai ser fácil
arranjar em Lisboa um jaguatirica.
-- É o que eu estou dizendo: como é que
ele vai casar a bichinha? Já tive uma que era solteira, foi ficando maluca,
acabei tendo de matar a tiro, uma pena.
Como ele não diz mais nada, olhando
embevecido a jaguatirica, me arrisco a perguntar:
-- Isso aí não é uma espécie de onça
não?
-- Não é não: é uma espécie de
jaguatirica mesmo.
E ele acrescenta, procurando me tranquilizar:
-- Pode ter certeza de uma coisa: bicho
nenhum come gente a não ser que esteja com muita fome. Com fome até o homem é
capaz de tudo, inclusive de comer gente. Ouça o que estou lhe dizendo. Ouço o
que ele está me dizendo, nos confraternizamos à base do nosso amor às
jaguatiricas, e volto a cochilar.
O gato sou eu. Rio de
Janeiro, Record, 1984.
Fonte: Português – 1º
grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia
Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 80.
Entendendo a crônica:
01 – Qual a situação inicial
que causa a surpresa do narrador?
O narrador, em
pleno voo noturno para Lisboa, é surpreendido ao ver um comissário de bordo
passando com uma jaguatirica no colo.
02 – Como o comissário
descreve a jaguatirica para o narrador?
O comissário diz
que é um filhote e o ergue para que o narrador veja de perto, comparando-o a um
gato. No entanto, o narrador reage com medo, afirmando que o animal
"parece uma jaguatirica".
03 – A jaguatirica que está no
avião pertence a quem e para onde está indo?
O comissário
explica que o animal pertence a um passageiro que o trouxe do Pará e o está
levando para morar com ele em Lisboa.
04 – O que o narrador descobre
sobre a relação do comissário com as jaguatiricas?
O narrador descobre que o comissário
também tem uma jaguatirica em seu apartamento no Rio de Janeiro. Isso o
surpreende, e ele confessa que não sabia que "estava na moda ter
jaguatiricas".
05 – Quais são os cuidados que
o comissário tem com sua jaguatirica, de acordo com o texto?
O comissário
explica que fez luvas especiais para a jaguatirica, com pelinho por baixo e
náilon por cima, para não arranhar o sinteco. Ele também diz que ele mesmo dá
banho no animal e não apara suas unhas.
06 – Qual o problema que o
comissário aponta para o passageiro que leva a jaguatirica para Lisboa?
O comissário aponta que o passageiro terá
dificuldades em Lisboa, pois "jaguatirica não pode viver só com o
dono". O animal precisa casar, e o comissário questiona como o passageiro
vai arranjar um par para a jaguatirica na nova cidade. Ele ainda relata um caso
anterior em que teve que matar uma jaguatirica que ficou "maluca" por
ser solteira.
07 – Qual a última afirmação
que o comissário faz para o narrador?
A última
afirmação do comissário é que "bicho nenhum come gente a não ser que
esteja com muita fome". Ele compara o comportamento do animal ao do ser
humano, dizendo que "com fome até o homem é capaz de tudo, inclusive de
comer gente".









