Conto: E o Visconde? – Emília no país da gramática
Monteiro Lobato
Tornava-se preciso descobrir o
Visconde. A sua misteriosa "sumição", como dizia a boneca, vinha
preocupando a todos seriamente. As informações obtidas eram poucas e vagas. O
vigia da Senhora Anticonstitucionalissimamente contara que o tinha visto por lá
com um Ditongo debaixo do capote, a espernear. Uma das Frases que tomavam sol
no Jardim das Orações também dissera que ele havia raptado um Ditongo. E foi
só. Nada mais conseguiram colher.

— Um Ditongo! — murmurava Emília com
ruguinhas na testa. — Raptou um Ditongo!... Mas para quê, Santo Deus? Com que
fim? Há em tudo isto um grande mistério...
— Com certeza trata-se dalgum Ditongo
arcaico, que ele furtou levado pela sua mania de antiguidades — sugeriu
Pedrinho.
— Não há Ditongos Arcaicos — disse
Quindim.
O remédio era um só — irem ao bairro
das Sílabas, que é onde moram os Ditongos.
— Pois vamos — decidiu Narizinho.
Foram — e montados em Quindim por ser
meio longinho. Ao alcançar o bairro o rinoceronte parou a fim de orientar-se.
— É aqui mesmo — disse ele, vendo as
ruas cheias de Sílabas, num ir e vir constante. — Mas onde será a Rua dos
Ditongos?
— Melhor indagar — lembrou a menina, e,
chamando uma silabazinha muito curica que ia passando, disse: — A senhorita
poderá informar-nos onde fica a Rua dos Ditongos?
— Com todo gosto — respondeu a
lambetinha na sua voz de formiga. — Fica nesta direção, três quadras à
esquerda.
Quindim trotou para lá.
— É aqui: — disse ele, ao penetrar numa
rua onde só existiam Sílabas formadas de duas Vogais. — Os Ditongos são estes.
— Quê! — exclamou Narizinho, surpresa.
— Ditongo, uma palavra tão gorda, quer dizer só isso — sílaba de duas vogais?
Pensei que fosse coisa mais importante...
— Pois, menina, os gramáticos não
tiveram dó de gastar um quilo de grego para classificar estas minúsculas
silabazinhas. Eles dividem-nas em DITONGOS, SEMIDITONGOS, TRITONGOS e
MONOTONGOS.
Todos se riram daquele grande luxo
"nomenclástico", como talvez dissesse a boneca, se não continuasse
absorta em profundas cogitações.
— Emília está "deduzindo!" —
murmurou a menina ao ouvido de Quindim. — Quando lhe dá o sherlockismo, ninguém
conte com ela.
—
Havia por ali duas espécies de Ditongos — os ORAIS, que só se pronunciam
com a boca, e os NASAIS, em que o som sai também pelo nariz, AI, AU, EI, EU,
IU, OU, OI, UE e ui eram os Orais, ÃE, AM, EM, ÕE eram os Nasais. Mas Quindim,
que conhecia todos os Ditongos de cor e salteado, estranhou não ver entre eles
o mais importante de todos — o Ão.
"Querem ver que o Visconde raptou
o Ão?", refletiu, lá consigo, o paquiderme.
Os meninos notaram uma certa agitação
entre os Ditongos. Evidentemente havia sucedido qualquer coisa grave. Andavam
de cá para lá, escabichando os cantinhos e informando-se uns com os outros, na
atitude clássica de quem procura objeto perdido.
Emília entrou em cena. Agarrou um dos
Ditongos Nasais pelo til e pousou-o na palminha da mão. Era o Ditongo ÕE. —
Diga-me, ditonguinho, que foi que houve por aqui? Noto uma certa agitação entre
vocês, como em formigueiro de saúva em dia que sai içá.
— De fato, estamos agitados — respondeu
o ditonguinho. — Um dos meus manos, o Ão, que era justamente o mais importante
da família, desapareceu misteriosamente. Temo-lo procurado por toda parte, mas
sem resultado. Sumiu...
— Quem sabe se alguém o raptou? —
sugeriu a boneca.
— Impossível! Que alguém haverá no
mundo que queira um Ditongo Nasal? Nós só servimos para formar palavras; não
temos outra função na vida, e nenhuma casa de ferro velho daria um vintém por
todos nós juntos.
— Espere — disse Emília, refletindo. —
Diga-me uma coisa: Não andou por aqui um filósofo de fora, sem cartolinha na
cabeça e com umas palhas de milho ao pescoço?
— Andou, sim. Um sábio um tanto
embolorado, não é?
— Isso mesmo! Bolor verde...
— Esteve cá, sim. Esteve de prosa
conosco e depois desapareceu. Foi logo em seguida que demos pela falta do Ão. A
senhora acha que...
— Mais que acho! Sei que foi ele quem
raptou o Ditongo. O que não consigo achar é a explicação de semelhante coisa. Esse
sábio é o grande Visconde de Sabugosa, que mora no sítio de Dona Benta. O
guarda da Senhora Anticonstitucionalissimamente me disse que o viu com um
Ditongo debaixo do capote; e mais tarde uma Frase, lá no Jardim das Orações,
também nos declarou positivamente que o Visconde havia raptado um Ditongo.
— Ora veja!... — exclamou o ditonguinho
arregalando os olhos. — Mas, para quê? Para que um tão ilustre sábio quererá um
Ditongo?
É o que me preocupa — disse Emília,
recaindo em cismas.
O
mistério do sumiço do Visconde continuava a embaraçar os meninos. Teria sido
preso como gatuno? Teria sido assassinado? Teria voltado para o sítio com o
Ditongo no bolso? Mistério...
— Se houvesse por aqui um jornal,
poderíamos pôr um anúncio: "Perdeu-se um Visconde assim, assim; dá-se boa
gratificação a quem o achar".
— Mas não existe jornal, e é tolice
ficarmos toda a vida a campeá-lo. Vamos esquecer o Visconde. Olhem que ainda
temos de visitar a Senhora Ortografia.
Foi resolvido esquecerem o Visconde e
visitarem a Senhora Ortografia. Montaram de novo em Quindim e partiram. A meio
caminho Emília bateu na testa.
— Heureca! Achei! Achei!... Já descobri
tudo! Já descobri a razão do "delito" do Visconde...
Todos se voltaram para ela.
— O Visconde — explicou Emília — sofre
do coração, como vocês muito bem sabem, e por isso se assusta com as palavras
que trazem o tal Ditongo Ão. O coitado assusta-se como se o Ão fosse um tiro,
ou um latido de cachorro bravo...
— É verdade! — confirmou Narizinho. —
Lembro-me que uma vez ele levou um grandíssimo tombo, quando Tia Nastácia
berrou da cozinha para o camarada do compadre Teodorico, que ia para a cidade:
"Seo Chico, não esqueça de me trazer da venda um pão de sabão!"
Aquele "pão de sabão" berrado foi o mesmo que dois tiros de
espingarda de dois canos no coraçãozinho do Visconde, que estava distraído
lendo a sua álgebra. O coitado caiu de costas. Lembro-me perfeitamente disso...
ele até andou de coranchim machucado uma porção de dias.
— Pois é — concluiu a boneca, radiante.
— O Visconde raptou esse Ditongo para livrar a língua de todas as palavras que
dão tiros, ou que latem como cachorro bravo...
— E fez muito bem — disse Quindim. — O
maior defeito que acho nesta língua portuguesa é esse latido de cachorro, que a
gente não encontra em nenhuma outra língua viva. Até a mim, que sou bicho
africano, o Ão me assustava no começo. Trazia-me a idéia de latido de cães de
caça, seguidos de homens armados de carabinas...
Como fosse ali o bairro ortográfico,
Narizinho propôs que se procurasse a pessoa que tomava conta da zona.
— Quem sabe se ela sabe onde está o
Visconde? — sugeriu.
— Pode ser, mas duvido muito — disse
Emília. — O Visconde ou está na cadeia, como gatuno, ou está no cemitério,
enterrando o coitadinho do Ditongo. Eu bem que compreendo a ideia dele. E se
ele fizer isso, vai haver a maior das atrapalhações na língua. Sem o Ão como é
que a gente se arruma para, comprar um Pão? Fica Pao... E Sabão fica Sabao... E
Ladrão fica Ladrao... Atrapalha a língua completamente.
OBRA INFANTO-JUVENIL DE
MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.
Entendendo o conto:
01
– O que levou os meninos a irem ao bairro das Sílabas, e qual era o rumor a
respeito do Visconde?
A
"sumição" (desaparecimento) misteriosa do Visconde preocupava a
todos. As informações indicavam que ele havia sido visto com um Ditongo debaixo
do capote, e por isso o remédio era ir ao bairro das Sílabas, onde os Ditongos
moravam, para investigar o rapto.
02
– O que Narizinho pensou que significasse a palavra "Ditongo" e como
Quindim desfez essa ideia?
Narizinho pensou
que "Ditongo" — por ser uma palavra tão "gorda" —
significasse algo mais importante. Quindim explicou que Ditongo significa
apenas "sílaba de duas Vogais" e que os gramáticos gastaram "um
quilo de grego" para classificar essas minúsculas sílabas em Ditongos,
Semiditongos, Tritongos e Monotongos.
03
– Quais eram as duas espécies de Ditongos que existiam na Rua dos Ditongos e
qual era o Ditongo que Quindim notou que estava faltando?
As duas espécies
eram:
Orais: Que só se
pronunciam com a boca (exemplos: AI, AU, EI, EU, OU).
Nasais: Em que o som
sai também pelo nariz (exemplos: ÃE, AM, EM, ÕE). O Ditongo que Quindim
estranhou não ver entre eles, e que era o mais importante da família, era o
"Ão".
04
– Qual foi o indício que Emília usou para ligar o desaparecimento do Ditongo
"Ão" ao Visconde de Sabugosa?
Emília perguntou
ao Ditongo ÕE se havia andado por ali "um filósofo de fora, sem cartolinha
na cabeça e com umas palhas de milho ao pescoço" (o Visconde). O Ditongo
confirmou que o "sábio embolorado" esteve de prosa com eles e
desapareceu logo em seguida à falta do Ão. Emília juntou isso à informação
anterior do vigia e da Frase de que o Visconde havia raptado um Ditongo.
05
– Qual foi a teoria (a "Heureca!" de Emília) que finalmente explicou
o motivo do "delito" do Visconde?
A teoria foi que
o Visconde sofre do coração e se assusta com as palavras que trazem o Ditongo
"Ão", pois o som o atinge "como se o Ão fosse um tiro, ou um
latido de cachorro bravo". Ele raptou o Ditongo para livrar a língua
desses sons que o assustavam.
06
– Como Narizinho confirma a teoria de Emília, lembrando-se de um episódio real
com o Visconde?
Narizinho
lembrou-se de que o Visconde levou um grande tombo e machucou o
"coranchim" quando Tia Nastácia berrou da cozinha a frase: "Seo
Chico, não esqueça de me trazer da venda um pão de sabão!" O som berrado
do "pão de sabão" assustou o Visconde como "dois tiros de
espingarda".
07
– Se o Visconde tivesse sucesso em remover o Ditongo "Ão" da língua,
quais seriam as consequências práticas na fala, de acordo com o que Emília
prevê?
Emília prevê que
haveria a "maior das atrapalhações na língua". Palavras como Pão
ficariam Pao, Sabão ficaria Sabao, e Ladrão ficaria Ladrao, atrapalhando a
língua completamente.
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