sexta-feira, 10 de outubro de 2025

CONTO: E O VISCONDE? - EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: E o Visconde? –  Emília no país da gramática

           Monteiro Lobato

        Tornava-se preciso descobrir o Visconde. A sua misteriosa "sumição", como dizia a boneca, vinha preocupando a todos seriamente. As informações obtidas eram poucas e vagas. O vigia da Senhora Anticonstitucionalissimamente contara que o tinha visto por lá com um Ditongo debaixo do capote, a espernear. Uma das Frases que tomavam sol no Jardim das Orações também dissera que ele havia raptado um Ditongo. E foi só. Nada mais conseguiram colher.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLRivM5IS7kRlhbqD86wm_T771P4f6lQNhNKNYk8flNic_7pWllYWbbmltzPd8gAX-ar9tUlxucstAkMeb6yCYwYFAPAcNAuAXQ6fy68HzYk3UQnO0VFWnSzLZ9LqbcqFcgHAy3mDCfCcipOp1Qxmm1XPcbUsrKpUgti8VGZvlWiCCWtKSUTC01iC-Qag/s320/encontros-vocalicos-fundo.png


        — Um Ditongo! — murmurava Emília com ruguinhas na testa. — Raptou um Ditongo!... Mas para quê, Santo Deus? Com que fim? Há em tudo isto um grande mistério...

        — Com certeza trata-se dalgum Ditongo arcaico, que ele furtou levado pela sua mania de antiguidades — sugeriu Pedrinho.

        — Não há Ditongos Arcaicos — disse Quindim.

        O remédio era um só — irem ao bairro das Sílabas, que é onde moram os Ditongos.

        — Pois vamos — decidiu Narizinho.

        Foram — e montados em Quindim por ser meio longinho. Ao alcançar o bairro o rinoceronte parou a fim de orientar-se.

        — É aqui mesmo — disse ele, vendo as ruas cheias de Sílabas, num ir e vir constante. — Mas onde será a Rua dos Ditongos?

        — Melhor indagar — lembrou a menina, e, chamando uma silabazinha muito curica que ia passando, disse: — A senhorita poderá informar-nos onde fica a Rua dos Ditongos?

        — Com todo gosto — respondeu a lambetinha na sua voz de formiga. — Fica nesta direção, três quadras à esquerda.

        Quindim trotou para lá.

        — É aqui: — disse ele, ao penetrar numa rua onde só existiam Sílabas formadas de duas Vogais. — Os Ditongos são estes.

        — Quê! — exclamou Narizinho, surpresa. — Ditongo, uma palavra tão gorda, quer dizer só isso — sílaba de duas vogais? Pensei que fosse coisa mais importante...

        — Pois, menina, os gramáticos não tiveram dó de gastar um quilo de grego para classificar estas minúsculas silabazinhas. Eles dividem-nas em DITONGOS, SEMIDITONGOS, TRITONGOS e MONOTONGOS.

        Todos se riram daquele grande luxo "nomenclástico", como talvez dissesse a boneca, se não continuasse absorta em profundas cogitações.

        — Emília está "deduzindo!" — murmurou a menina ao ouvido de Quindim. — Quando lhe dá o sherlockismo, ninguém conte com ela.

          Havia por ali duas espécies de Ditongos — os ORAIS, que só se pronunciam com a boca, e os NASAIS, em que o som sai também pelo nariz, AI, AU, EI, EU, IU, OU, OI, UE e ui eram os Orais, ÃE, AM, EM, ÕE eram os Nasais. Mas Quindim, que conhecia todos os Ditongos de cor e salteado, estranhou não ver entre eles o mais importante de todos — o Ão.

        "Querem ver que o Visconde raptou o Ão?", refletiu, lá consigo, o paquiderme.     

        Os meninos notaram uma certa agitação entre os Ditongos. Evidentemente havia sucedido qualquer coisa grave. Andavam de cá para lá, escabichando os cantinhos e informando-se uns com os outros, na atitude clássica de quem procura objeto perdido.

        Emília entrou em cena. Agarrou um dos Ditongos Nasais pelo til e pousou-o na palminha da mão. Era o Ditongo ÕE. — Diga-me, ditonguinho, que foi que houve por aqui? Noto uma certa agitação entre vocês, como em formigueiro de saúva em dia que sai içá.

        — De fato, estamos agitados — respondeu o ditonguinho. — Um dos meus manos, o Ão, que era justamente o mais importante da família, desapareceu misteriosamente. Temo-lo procurado por toda parte, mas sem resultado. Sumiu...

        — Quem sabe se alguém o raptou? — sugeriu a boneca.

        — Impossível! Que alguém haverá no mundo que queira um Ditongo Nasal? Nós só servimos para formar palavras; não temos outra função na vida, e nenhuma casa de ferro velho daria um vintém por todos nós juntos.

        — Espere — disse Emília, refletindo. — Diga-me uma coisa: Não andou por aqui um filósofo de fora, sem cartolinha na cabeça e com umas palhas de milho ao pescoço?

        — Andou, sim. Um sábio um tanto embolorado, não é?

        — Isso mesmo! Bolor verde...

        — Esteve cá, sim. Esteve de prosa conosco e depois desapareceu. Foi logo em seguida que demos pela falta do Ão. A senhora acha que...

        — Mais que acho! Sei que foi ele quem raptou o Ditongo. O que não consigo achar é a explicação de semelhante coisa. Esse sábio é o grande Visconde de Sabugosa, que mora no sítio de Dona Benta. O guarda da Senhora Anticonstitucionalissimamente me disse que o viu com um Ditongo debaixo do capote; e mais tarde uma Frase, lá no Jardim das Orações, também nos declarou positivamente que o Visconde havia raptado um Ditongo.

        — Ora veja!... — exclamou o ditonguinho arregalando os olhos. — Mas, para quê? Para que um tão ilustre sábio quererá um Ditongo? 

        É o que me preocupa — disse Emília, recaindo em cismas.

        O mistério do sumiço do Visconde continuava a embaraçar os meninos. Teria sido preso como gatuno? Teria sido assassinado? Teria voltado para o sítio com o Ditongo no bolso? Mistério...

        — Se houvesse por aqui um jornal, poderíamos pôr um anúncio: "Perdeu-se um Visconde assim, assim; dá-se boa gratificação a quem o achar".

        — Mas não existe jornal, e é tolice ficarmos toda a vida a campeá-lo. Vamos esquecer o Visconde. Olhem que ainda temos de visitar a Senhora Ortografia.

        Foi resolvido esquecerem o Visconde e visitarem a Senhora Ortografia. Montaram de novo em Quindim e partiram. A meio caminho Emília bateu na testa.

        — Heureca! Achei! Achei!... Já descobri tudo! Já descobri a razão do "delito" do Visconde...

        Todos se voltaram para ela.

        — O Visconde — explicou Emília — sofre do coração, como vocês muito bem sabem, e por isso se assusta com as palavras que trazem o tal Ditongo Ão. O coitado assusta-se como se o Ão fosse um tiro, ou um latido de cachorro bravo...

        — É verdade! — confirmou Narizinho. — Lembro-me que uma vez ele levou um grandíssimo tombo, quando Tia Nastácia berrou da cozinha para o camarada do compadre Teodorico, que ia para a cidade: "Seo Chico, não esqueça de me trazer da venda um pão de sabão!" Aquele "pão de sabão" berrado foi o mesmo que dois tiros de espingarda de dois canos no coraçãozinho do Visconde, que estava distraído lendo a sua álgebra. O coitado caiu de costas. Lembro-me perfeitamente disso... ele até andou de coranchim machucado uma porção de dias.

        — Pois é — concluiu a boneca, radiante. — O Visconde raptou esse Ditongo para livrar a língua de todas as palavras que dão tiros, ou que latem como cachorro bravo...

        — E fez muito bem — disse Quindim. — O maior defeito que acho nesta língua portuguesa é esse latido de cachorro, que a gente não encontra em nenhuma outra língua viva. Até a mim, que sou bicho africano, o Ão me assustava no começo. Trazia-me a idéia de latido de cães de caça, seguidos de homens armados de carabinas...

        Como fosse ali o bairro ortográfico, Narizinho propôs que se procurasse a pessoa que tomava conta da zona.

        — Quem sabe se ela sabe onde está o Visconde? — sugeriu.

        — Pode ser, mas duvido muito — disse Emília. — O Visconde ou está na cadeia, como gatuno, ou está no cemitério, enterrando o coitadinho do Ditongo. Eu bem que compreendo a ideia dele. E se ele fizer isso, vai haver a maior das atrapalhações na língua. Sem o Ão como é que a gente se arruma para, comprar um Pão? Fica Pao... E Sabão fica Sabao... E Ladrão fica Ladrao... Atrapalha a língua completamente.

OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.

Entendendo o conto:

01 – O que levou os meninos a irem ao bairro das Sílabas, e qual era o rumor a respeito do Visconde?

      A "sumição" (desaparecimento) misteriosa do Visconde preocupava a todos. As informações indicavam que ele havia sido visto com um Ditongo debaixo do capote, e por isso o remédio era ir ao bairro das Sílabas, onde os Ditongos moravam, para investigar o rapto.

02 – O que Narizinho pensou que significasse a palavra "Ditongo" e como Quindim desfez essa ideia?

      Narizinho pensou que "Ditongo" — por ser uma palavra tão "gorda" — significasse algo mais importante. Quindim explicou que Ditongo significa apenas "sílaba de duas Vogais" e que os gramáticos gastaram "um quilo de grego" para classificar essas minúsculas sílabas em Ditongos, Semiditongos, Tritongos e Monotongos.

03 – Quais eram as duas espécies de Ditongos que existiam na Rua dos Ditongos e qual era o Ditongo que Quindim notou que estava faltando?

      As duas espécies eram:

      Orais: Que só se pronunciam com a boca (exemplos: AI, AU, EI, EU, OU).

      Nasais: Em que o som sai também pelo nariz (exemplos: ÃE, AM, EM, ÕE). O Ditongo que Quindim estranhou não ver entre eles, e que era o mais importante da família, era o "Ão".

04 – Qual foi o indício que Emília usou para ligar o desaparecimento do Ditongo "Ão" ao Visconde de Sabugosa?

      Emília perguntou ao Ditongo ÕE se havia andado por ali "um filósofo de fora, sem cartolinha na cabeça e com umas palhas de milho ao pescoço" (o Visconde). O Ditongo confirmou que o "sábio embolorado" esteve de prosa com eles e desapareceu logo em seguida à falta do Ão. Emília juntou isso à informação anterior do vigia e da Frase de que o Visconde havia raptado um Ditongo.

05 – Qual foi a teoria (a "Heureca!" de Emília) que finalmente explicou o motivo do "delito" do Visconde?

      A teoria foi que o Visconde sofre do coração e se assusta com as palavras que trazem o Ditongo "Ão", pois o som o atinge "como se o Ão fosse um tiro, ou um latido de cachorro bravo". Ele raptou o Ditongo para livrar a língua desses sons que o assustavam.

06 – Como Narizinho confirma a teoria de Emília, lembrando-se de um episódio real com o Visconde?

      Narizinho lembrou-se de que o Visconde levou um grande tombo e machucou o "coranchim" quando Tia Nastácia berrou da cozinha a frase: "Seo Chico, não esqueça de me trazer da venda um pão de sabão!" O som berrado do "pão de sabão" assustou o Visconde como "dois tiros de espingarda".

07 – Se o Visconde tivesse sucesso em remover o Ditongo "Ão" da língua, quais seriam as consequências práticas na fala, de acordo com o que Emília prevê?

      Emília prevê que haveria a "maior das atrapalhações na língua". Palavras como Pão ficariam Pao, Sabão ficaria Sabao, e Ladrão ficaria Ladrao, atrapalhando a língua completamente.

 

 

 

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