Conto: Portugália – Emília no País da Gramática
Monteiro Lobato
Era uma cidade como todas as outras. A
gente importante morava no centro e a gente de baixa condição, ou decrépita,
morava nos subúrbios. Os meninos entraram por um desses bairros pobres, chamado
o bairro do Refugo, e viram grande número de palavras muito velhas, bem
corocas, que ficavam tomando sol à porta de seus casebres. Umas permaneciam
imóveis, de cócoras, como os índios das fitas americanas; outras coçavam-se.

—
Essas coitadas são bananeiras que já deram cacho — explicou Quindim. —
Ninguém as usa mais, salvo por fantasia e de longe em longe. Estão morrendo. Os
gramáticos classificam essas palavras de ARCAÍSMOS. Arcaico quer dizer coisa
velha, caduca.
—
Então, Dona Benta e Tia Nastácia são arcaísmos! — lembrou Emília.
— Mais respeito com vovó, Emília! Ao
menos na cidade da língua tenha compostura — protestou Narizinho.
O rinoceronte prosseguiu:
— As coitadas que ficam arcaicas são
expulsas do centro da cidade e passam a morar aqui, até que morram e sejam enterradas
naquele cemitério, lá no alto do morro. Porque as palavras também nascem,
crescem e morrem, como tudo mais.
Narizinho parou diante duma palavra
muito velha, bem coroca, que estava catando pulgas históricas à porta dum
casebre. Era a palavra Bofé.
—
Então, como vai a senhora? — perguntou a menina, mirando-a de alto a
baixo.
—
Mal, muito mal — respondeu à velha. — No tempo de dantes fui moça das
mais faceiras e fiz o papel de ADVÉRBIO. Os homens gostavam de empregar-me sempre
que queriam dizer Em verdade, Francamente. Mas começaram a aparecer uns
Advérbios novos, que caíram no gosto das gentes e tomaram o meu lugar. Fui
sendo esquecida. Por fim, tocaram-me lá do centro. "Já que está velha e
inútil, que fica fazendo aqui?", disseram-me. "Mude-se para os
subúrbios dos Arcaísmos", e eu tive de mudar-me para cá.
—
Por que não morre duma vez para ir descansar no cemitério? — perguntou
Emília com todo o estabanamento.
—
É que, de quando em quando, ainda sirvo aos homens. Existem certos
sujeitos que, por esporte, gostam de escrever à moda antiga; e quando um deles
se mete a fazer romance histórico, ou conto em estilo do século XV, ainda me
chama para figurar nos diálogos, em vez do tal Francamente que tomou o meu
lugar.
—
Aqui o nosso Visconde pela-se por coisas antigas — disse a menina. —
Conte-lhe toda a sua vida, desde que nasceu.
O Visconde sentou-se ao lado da palavra
Bofé e ferrou na prosa, enquanto Narizinho ia conversar com outra palavra ainda
mais coroca.
—
E a senhora, quem é? — perguntou-lhe.
—
Sou a palavra Ogano.
—
Ogano? O que quer dizer isso?
—
Nem queira saber, menina! Sou uma palavra que já perdeu até a memória da
vida passada. Apenas me lembro que vim do latim Hoc Anno, que significa Este
Ano. Entrei nesta cidade quando só havia uns começos de rua; os homens desse
tempo usavam-me para dizer Este Ano. Depois fui sendo esquecida, e hoje ninguém
se lembra de mim. A Senhora Bofé é mais feliz; os escrevedores de romances
históricos ainda a chamam de longe em longe. Mas a mim ninguém, absolutamente
ninguém, me chama. Já sou mais que Arcaísmo; sou simplesmente uma palavra
morta...
Narizinho ia dizer-lhe uma frase de
consolação quando foi interrompida por um bando de palavras jovens, que vinham
fazendo grande barulho.
—
Essas que aí vêm são o oposto dos Arcaísmos — disse Quindim. — São os
NEOLOGISMOS, isto é, palavras novíssimas, recém-saídas da fôrma.
—
E moram também nestes subúrbios de velhas?
—
Em matéria de palavras a muita mocidade é tão defeito como a muita
velhice. O Neologismo tem de envelhecer um bocado antes que receba autorização
para residir no centro da cidade. Estes cá andam em prova. Se resistirem, se
não morrerem de sarampo ou coqueluche e se os homens virem que eles prestam
bons serviços, então igualam-se a todas as outras palavras da língua e podem
morar nos bairros decentes. Enquanto isso ficam soltos pela cidade, como vagabundos,
ora aqui, ora ali.
Estavam naquele grupo de Neologismos
diversos que os meninos já conheciam, como Chutar, que é dar um pontapé;
Bilontra, que quer dizer um malandro elegante; Encrenca, que significa
embrulhada, mixórdia, coisa difícil de resolver.
—
Outro dia vovó disse que esta palavra Encrenca é a mais expressiva e
útil que ela conhece, de todas que nasceram no Brasil — lembrou Pedrinho.
Depois que os Neologismos acabaram de
passar, os meninos dirigiram-se a uma praça muito maltratada, cheia de capim,
sem calçamento nem polícia, onde brincavam bandos de peraltas endiabrados.
—
Que molecada é esta? — perguntou a menina.
—
São palavras da Gíria, criadas e empregadas por malandros ou gatunos, ou
então por homens dum mesmo ofício. A especialidade delas é que só os malandros
ou tais homens dum mesmo ofício as entendem. Para o resto do povo nada
significam.
Narizinho chamou uma que parecia
bastante pernóstica.
—
Conte-me a sua história, menina.
A moleca pôs as mãos na cintura e, com
ar malandríssimo, foi dizendo:
— Sou a palavra Bamba, nascida não sei
onde e filha de pais incógnitos, como dizem os jornais. Só a gente baixa, a
molecada e a malandragem das cidades é que se lembra de mim. Gente fina, a tal
que anda de automóveis e vai ao teatro, essa tem vergonha de utilizar-se dos
meus serviços.
—
E que serviço presta você, palavrinha? — perguntou Emília.
—
Ajudo os homens a exprimirem suas ideias, exatamente como fazem todas as
palavras desta cidade. Sem nós, palavras, os homens seriam mudos como peixes, e
incapazes de dizer o que pensam. Eu sirvo para exprimir valentia. Quando um
malandro de bairro dá uma surra num polícia, todos os moleques da zona
utilizam-se de mim para definir o valentão. "Fulano é um bamba!",
dizem. Mas como a gente educada não me emprega, tenho que viver nestes
subúrbios, sem me atrever a pôr o pé lá em cima.
—
Onde é lá em cima?
—
Nós chamamos "lá em cima" à parte boa da cidade; este
"lixo" por aqui é chamado "cá embaixo".
—
Vejo que você tem muitas companhias — observou Narizinho, correndo os
olhos pela molecada que formigava em redor.
—
Tenho, sim. Toda esta rapaziada é gentinha da Gíria, como eu. Preste
atenção naquela de olho arregalado. É a palavra Otário, que os gatunos usam
para significar um "trouxa" ou pessoa que se deixa lograr pelos
espertalhões. Com a palavra Otário está conversando outra do mesmo tipo, Bobo.
—
Bobo sei o que significa — disse Pedrinho. — Nunca foi gíria.
—
Lá em cima — explicou Bamba — Bobo significa uma coisa; aqui embaixo
significa outra. Em língua de gíria Bobo quer dizer relógio de bolso. Quando um
gatuno diz a outro: "Fiz um bobo", quer significar que
"abafou" um relógio de bolso.
—
E por que deram o nome de Bobo aos relógios de bolso?
—
Porque eles trabalham de graça — respondeu Bamba, dando uma risadinha
cínica.
Os meninos ficaram por ali ainda algum
tempo, conversando com outras palavras da Gíria — e por precaução Pedrinho
abotoou o paletó, embora seu paletó nem bolso de dentro tivesse. A gíria dos
gatunos metia-lhe medo...
—
Por estes subúrbios também vagabundeiam palavras de outro tipo,
malvistas lá em cima — disse o rinoceronte apontando para uma palavra loura,
visivelmente estrangeira, que naquele momento ia passando. — São palavras
exóticas, isto é, de fora — imigrantes a que os gramáticos puseram o nome geral
de BARBARISMOS.
—
Querem significar com isso que elas dizem barbaridades? — indagou
Emília.
—
Não; apenas que são de fora. Este modo de classificá-las veio dos
romanos, que consideravam bárbaros a todos os estrangeiros. Barbarismo quer
dizer coisa de estrangeiro. Se o Barbarismo vem da França tem o nome especial
de GALICISMO; se vem da Inglaterra, chama-se ANGLICISMO; se vem da Itália,
ITALIANISMO — e assim por diante. Os Galicismos são muito maltratados nesta
cidade. As palavras nascidas aqui torcem-lhes o focinho e os "grilos"
da língua (os gramáticos), implicam muito com eles. Certos críticos chegam a
considerar crime de cadeia a entrada dum Galicismo numa frase. Tratam os
coitados como se fossem leprosos. Aí vem um.
O Galicismo Desolado vinha vindo, muito
triste, de bico pendurado. Quindim apontou-o com o chifre, dizendo:
— Se você algum dia virar poeta,
Pedrinho, e cair na asneira de botar num soneto
este pobre Galicismo, os críticos xingarão você de mil nomes feios. Desolado é
o que eles consideram um Galicismo imperdoável. Já aquele outro que lá vem goza
de maior consideração. É a palavra francesa Elite, que quer dizer a nata, a
fina flor da sociedade. Veja como é petulantezinha, com o seu monóculo no olho.
—
Elite tem licença de morar no centro da cidade? — perguntou o menino.
—
Não tinha, mas hoje tem. Já está praticamente naturalizada. Durante
muito tempo, entretanto, só podia aparecer por lá metida entre ASPAS, OU em
GRIFO.
—
Que é isso?
—
Aspas e Grifo são os sinais que elas têm de trazer sempre que se metem
no meio das palavras nativas. Na cidade das palavras inglesas não é assim — as
palavras de fora gozam lá de livre trânsito, podendo apresentar-se sem aspas e
sem grifo. Mas aqui nesta nossa Portugália há muito rigor nesse ponto. Palavra
estrangeira, ou de gíria, só entra no centro da cidade se estiver aspada ou grifada.
—
Olhem! — gritou Emília. — Aquela palavrinha acolá acaba de tirar do
bolso um par de aspas, com as quais está se enfeitando, como se fossem asinhas...
— É que recebeu chamado para figurar
nalguma frase lá no centro e está vestindo o passaporte. Trata-se da palavra
francesa Soirée. Reparem que perto dela está outra a botar-se em grifo. É a
palavra Bouquet...
— Judiação! — comentou Narizinho. —
Acho odioso isso. Assim como num país entram livremente homens de todas as
raças — italianos, franceses, ingleses, russos, polacos, assim também devia ser
com as palavras. Eu, se fosse ditadora, abria as portas da nossa língua a todas
as palavras que quisessem entrar — e não exigia que as coitadinhas de fora
andassem marcadas com os tais grifos e as tais aspas.
—
Mesmo assim — explicou o rinoceronte — muitas palavras estrangeiras vão
entrando e com o correr do tempo acabam "naturalizando-se". Para isso
basta que mudem a roupa com que vieram de fora e sigam os figurinos desta cidade.
Bouquet, por exemplo, se trocar essa
sua roupinha francesa e vestir um terno feito aqui, pode andar livremente pela
cidade. Basta que vire Buquê...
Perto havia uma elevação donde se
descortinava toda a cidade; o rinoceronte levou os meninos para lá.
OBRA
INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País
da Gramática. As
figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.
Entendendo
o conto:
01 – Onde
moram as "palavras muito velhas, bem corocas" e como elas são
classificadas pelos gramáticos?
Elas moram em um
dos bairros pobres chamado o bairro do Refugo (nos subúrbios). Os gramáticos as
classificam como Arcaísmos.
02 – Qual
é o significado de "Arcaísmo", de acordo com a explicação de Quindim?
Arcaico quer
dizer "coisa velha, caduca".
03 – Que
palavra arcaica é mencionada no texto como uma antiga Advérbio que significa
"Em verdade" ou "Francamente", mas foi esquecida?
A palavra é Bofé.
04 – Qual
a diferença entre a palavra "Bofé" e a palavra "Ogano" em
relação à frequência de uso?
A palavra Bofé é
mais feliz, pois ainda é chamada "de longe em longe" por sujeitos que
gostam de escrever à moda antiga (romances históricos, por exemplo). Já a
palavra Ogano (que veio do latim Hoc Anno) é mais que Arcaísmo; é considerada
uma palavra morta, pois ninguém, absolutamente ninguém, a usa mais.
05 – Como
são chamadas as "palavras novíssimas, recém-saídas da fôrma", e o que
acontece com elas antes de poderem morar no centro da cidade?
São chamadas
Neologismos. Elas precisam envelhecer um bocado e passar por uma prova
(resistir e prestar bons serviços) antes de receberem autorização para residir
no centro.
06 – O
que são as palavras da "Gíria", e quem as emprega principalmente?
São palavras criadas e
empregadas por malandros ou gatunos, ou então por homens dum mesmo ofício. A
especialidade delas é que só esses grupos as entendem.
07 – Qual
é o significado da palavra "Bamba" na gíria, e por que ela não pode
morar no centro da cidade?
A palavra Bamba
serve para exprimir valentia ("Fulano é um bamba!"). Ela tem que
viver nos subúrbios (o "cá embaixo") porque a gente educada ou fina
tem vergonha de utilizá-la.
08 – O
que significa a palavra "Bobo" na língua da gíria dos gatunos, e por
que ela recebeu esse nome?
Na gíria dos
gatunos, Bobo significa relógio de bolso. Recebeu esse nome porque, segundo
Bamba, "eles trabalham de graça".
09 – Qual
é o nome geral dado pelos gramáticos às "palavras exóticas, isto é, de
fora — imigrantes"? Dê um exemplo de classificação específica e de onde
ela se origina.
O nome geral é
Barbarismos. Um exemplo é o Galicismo, que é um Barbarismo que vem da França.
10 – Que
condição é imposta às palavras estrangeiras, como os Galicismos, para que elas
possam entrar no centro da cidade de Portugália, e como elas podem se
"naturalizar"?
Para entrar no
centro, elas têm de estar aspadas (entre aspas) ou grifadas (em grifo). Para se
"naturalizar", elas precisam mudar a roupa (a forma) com que vieram
de fora e seguir os figurinos da cidade, como, por exemplo, a palavra francesa
Bouquet virar Buquê.
Nenhum comentário:
Postar um comentário