Conto: Em pleno mar dos Substantivos – Emília no país da gramática
Monteiro Lobato
Havia muita coisa a ver no bairro dos
Substantivos, e por essa razão todos protestaram quando Emília falou em visitar
as INTERJEIÇÕES.

— Espere, bonequinha aflita! — disse
Quindim. — Inda há muito pano para manga aqui. Vocês ainda não observaram que
estes Senhores Nomes estão divididos em dois gêneros, o MASCULINO e o FEMININO,
conforme o sexo das coisas ou seres que eles batizam. Paulo é masculino porque
todos os Paulos pertencem ao sexo masculino.
— Mas Panela? — advertiu Emília. — Por
que razão Panela é Nome feminino e Garfo, por exemplo, é masculino? Panela ou
Garfo têm sexo?
— Isso é uma das maluquices desta
cidade — respondeu o rinoceronte. — Já em Anglópolis não é assim. Há lá mais um
gênero, o GÊNERO NEUTRO, para todas as palavras que designam coisas sem sexo,
como Panela e Garfo.
— Coitados dos ingleses que se mudam
para o Brasil!
— Advertiu Pedrinho. — Imaginem a
trabalheira para decorar o sexo de milhares de palavras indicativas de coisas
que... não têm sexo!
— Você tem razão — disse Quindim —, mas
em matéria de língua a coisa é como é e não como deveria ser. Nesta cidade os
Substantivos terminados em O, U, I, Em, Im, Om, Um, En, L, R, S e X são quase
sempre masculinos.
— Nossa Senhora! — exclamou Narizinho.
— Quantas terminações! Os homens mostram o seu egoísmo em tudo.
"Chamaram" para o sexo deles quase todas as terminações possíveis. E
os femininos?
— São quase sempre femininos os Nomes
terminados em A, Ã, Ção, Gem, Dade e Ice.
— Bandidos! — protestou a menina. — Os
homens tomaram para si doze terminações e só deixaram seis para o sexo feminino
— a metade...
— Não faz mal, Narizinho — consolou a
boneca. — Quando nós tomarmos conta do mundo, havemos de fazer o contrário —
ficar com doze para o nosso sexo e só dar seis para o sexo deles.
O rinoceronte continuou:
— E há ainda Nomes que possuem dois
sexos, isto é, que tanto servem para indicar seres ou coisas do gênero feminino
como do masculino. Nós, gramáticos, usamos um nome muito feio para designar
tais substantivos — EPICENOS.
— Isso não é designar, é xingar! —
disse Emília.
— Nomes como Onça, Cônjuge, Criança,
Jacaré e tantos outros têm o defeito de servir para os dois sexos. São Nomes
Epicenos.
— Epiceno é o nariz dos gramáticos —
exclamou Emília.
— Um defeito a gente deve corrigir.
Xingar o defeito com um nome feio não adianta.
— E há ainda — continuou o rinoceronte
— os Nomes chamados COMUNS DE DOIS, que ora são masculinos, ora são femininos.
O Nome Artista, por exemplo, é Comum de Dois, porque a gente tanto pode dizer O
Artista como A Artista. Fora dessas duas classes de Nomes, o resto passa dum
sexo para outro por meio duma simples mudança do final. Os que terminam em O
mudam esse O em A e viram femininos. Outros, porém, arranjam um nome diferente
para o feminino, como Pai — Mãe; Frade — Freira; Cavalo — Égua; Ladrão — Ladra.
— E qual o feminino de Rabicó? —
perguntou Narizinho. O rinoceronte ficou atrapalhado.
— O feminino de Rabicó é Emília, porque
ela é a mulher de Rabicó.
Emília, que já de muito tempo se havia
divorciado de Rabicó, ficou danadinha e disse:
— Nesse caso, o masculino de Narizinho
é Bacalhau... Todos arregalaram os olhos, sem perceber a ideia da boneca.
— Sim, porque Narizinho também é casada
com o tal Príncipe Escamado, que para mim não passa dum bacalhau de porta de
venda, muito ordinário...
— Calma, calma! — exclamou o
rinoceronte. — Deixem as brigas para quando regressarem. Em vez disso prestem
atenção a outra particularidade dos Substantivos. Além de Gênero, ou Sexo, eles
têm NÚMERO, como dizem os gramáticos. Ter Número quer dizer ter SINGULAR e
PLURAL. Quando um Substantivo designa uma coisa só, vai para o Singular; quando
designa duas ou mais coisas, vai para o Plural. O meio de passar do Singular
para o Plural consiste no ajustamento dum rabinho chamado S. Exemplo: Gato, é
Singular; põe o rabinho e vira Gatos — Plural.
— É assim com todos os Substantivos? —
perguntou Emília.
— Não; existem muitos que fazem o
Plural de outros modos. Os que terminam em A, Ol e Il tônicos trocam o L final
por Is, como Sol, que faz Sóis; Canal, que faz Canais; Barril, que faz Barris.
Os terminados em El e os terminados em
Il átonos mudam o El e o Il em Eis assim: Anel, Anéis; Fóssil, Fósseis. Os
terminados em Ul trocam o L por Is, como Azul, que faz Azuis. Alguns não seguem
a regra, como Cônsul, que faz Cônsules.
— Enjoado! — comentou Emília, fazendo
bico. — E os terminados em R, Z e N?
—
Esses fazem o plural juntando Es — Mulher, Mulheres; Nariz,
Narizes; Abdômen, Abdômenes. E os que terminam em M trocam esse M por
Ns, como Homem, que faz Homens. E os que terminam em S não mudam, como Pires,
Lápis. Um pires, dois pires. Entretanto, os terminados em Ês fazem o plural
acrescentando Es, exemplo Mês, Meses; Cortês, Corteses.
— Chega de Número, Quindim — disse
Emília. — Já me está enjoando as tripas. Mude de tecla.
Nesse momento surgiu o Visconde, que
ficara nos subúrbios de prosa com a velha Bofé e outras corujas. Vinha correndo
e a tapar os ouvidos com as mãos.
— Que aconteceu, Visconde? Que carreira
é essa?
O pobre sábio parou, arque jante, de
língua de fora como um cachorro cansado.
— Oh, estou envergonhadíssimo! —
exclamou com esforço, enxugando a testa com as palhinhas de milho do pescoço. —
Imaginem que ao vir para cá errei e fui dar com os costados num bairro
horrível, que nem sei como a polícia deixa! O bairro das PALAVRAS OBSCENAS...
Que coisa feia, Santo Deus! Vi por lá, soltas nas ruas, esmolambadas e
sórdidas, as palavras mais sujas da língua. Sarnentas, vestidas de farrapos e sem
a menor compostura nos modos. Assim que me viram deram-me uma grande vaia nos
termos mais infames. Os nomes que ouvi eram de fazer cor ar a um
frade-de-pedra. E vim correndo avisar vocês para que não passem por lá.
Mas a pestinha da Emília, que era
boneca e não achava nada no mundo indecente, assanhou-se logo.
— Vocês, sabugos, são tão cheios de
histórias como as gentes de carne — disse ela. — As coitadas das palavras que
culpa têm de existirem no mundo coisas que os homens consideram feias? Vou lá,
sim. Quero consolar as pobres infelizes e dar-lhes uns bons conselhos.
Narizinho, porém, não deixou.
— Não vai, não, Emília. Inocentes ou
culpadas, o melhor é não nos metermos com elas. Vovó, se soubesse, ficaria
aborrecida. Por aqui ainda há muita coisa decente para vermos. Olhe aquela
palavra esquisita, que vem latindo. Senhora Palavra, venha cá!
A palavra Canzarrão aproximou-se,
latindo.
— Au! Au! Que é que a menina deseja?
— Saber quem é a senhora e o que faz.
— Sou a mesma palavra Cão aumentada; se
tenho de designar um cão grande, viro Canzarrão; e se tenho de designar um cão
pequenino, viro Cãozinho.
— Isto é o que os gramáticos chamam
GRAU — mudança nas palavras para dar ideia do tamanho das coisas — explicou o
rinoceronte. — Há o Grau AUMENTATIVO, para aumentar, e o Grau DIMINUTIVO, para
diminuir.
— Sei disso — declarou Emília. — As
palavras quando querem significar uma coisa grande, latem; e quando querem
significar uma coisa pequena, choramingam.
Ninguém entendeu.
— Sim — insistiu ela. — Botar um Ao no
fim duma palavra é latir, porque latido de cachorro é assim — ão, ão, ao! E
botar um Inho, ou um Zinho no fim das palavras é choramingar como criança nova.
Panela, por exemplo; se late, vira Panelão e se choraminga, vira
"Panelinha...
O rinoceronte admirou-se da esperteza
da boneca.
— Muito bem, senhorita! — exclamou ele.
— Está certo. Mas nem sempre é assim. Aquelas duas palavras que vêm vindo para
o nosso lado estão aumentadas — e aumentaram sem latir.
Vinha vindo a palavra Cabeçorra, de
braço dado à palavra Copázio.
— São aumentativos de Cabeça e Copo —
explicou Quindim. — Cabeça — Cabeçorra; Copo — Copázio.
—
Mas eu posso dizer Cabeção e Copão — insistiu Emília.
— Pode, mas também existem aquelas
formas de aumentativo sem Ao. Bicho, por exemplo, dá Bichão e Bichaço. Corpo dá
Corpão e Corpanzil. No caso de serem palavras femininas, em vez de Ão elas
botam no fim Ona. Mulher, Mulherona.
— Ou Mulher aça — advertiu Narizinho. —
Já ouvi vovó dizer que a viúva do Maluf da venda é uma Mulheraça.
— Está certo — confirmou Quindim —, e
portanto fica visto que com Ão, On, Zarão, Rão, Aço ou Aça, Az, Ázio e Orra, as
palavras aumentam. E para diminuírem, além do chorinho que Emília descobriu,
como é que fazem?
Ninguém sabia diminuir sem chorinho. O
rinoceronte explicou:
— Além do Inho e Zinho que Emília já
disse, elas diminuem com Ito...
— Mosca, Mosquito — lembrou logo
Pedrinho.
— E também com Ete, Eto, Oto, Ico...
— Antônio, Antonico — lembrou a menina.
— E com Ejo — continuou Quindim —, e
com Ilho, Elho, El, lm, Olo, Ulo e Elo.
— Quantos jeitos! — exclamou Emília. —
Isso é que aborrece na língua. Em vez de haver um jeito só para cada coisa, há
muitos. Tal abundância de jeitos só serve para dar trabalho à gente.
— Dá um pouco de trabalho, sim — disse
o rinoceronte —, mas em compensação traz muitas vantagens. Se Pedrinho virar
algum dia escritor de histórias, há de ver que esta variedade ajuda grandemente
o estilo, permitindo a composição de frases mais bonitas e musicais.
Narizinho olhou para Quindim com ar de
surpresa. Como é que um bicho cascudo daqueles, vindo lá dos fundões da África,
entendia até de "estilo" e frases "musicais"?
— Não posso compreender como ele virou
tamanho gramático assim dum momento para outro...
— Para mim — sugeriu Emília — Quindim
comeu aquela gramaticorra que Dona Benta comprou. Lembre-se que a bichona
desapareceu justamente no dia em que Quindim dormiu no pomar. O Visconde tinha
estado às voltas com ela, estudando ditongos debaixo da jabuticabeira. Com
certeza esqueceu-a lá e o rinoceronte papou-a.
— Que bobagem, Emília! Gramática nunca
foi alimento.
— Bobagem, nada! — sustentou a boneca.
— Dona Benta vive dizendo que os livros são o pão do espírito. Ora, gramática é
livro; logo é pão; logo é alimento.
— Boba! — gritou a menina. — Pão do
espírito está aí empregado no sentido figurado. No sentido material um livro
não é pão de coisa nenhuma.
Emília deu uma gargalhada.
— Pensa que não sei que os livros são
feitos de papel de madeira? Madeira é vegetal. Vegetal é alimento de
rinocerontes. Logo, Quindim podia muito bem alimentar-se com os vegetais que se
transformaram no papel que virou gramática.
Apesar do absurdo de semelhante
hipótese, Narizinho ficou meio abalada. Quem sabe lá se Quindim não tinha mesmo
comido a Gramática histórica de Eduardo Carlos Pereira? Acontece tanta coisa
esquisita neste mundo...
— Bom — disse o rinoceronte. — Chega de
Substantivos. Vamos agora dar uma volta pelo bairro dos Adjetivos.
OBRA INFANTO-JUVENIL DE
MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.
Entendendo o conto:
01 – Por que Emília questiona
a divisão dos Substantivos em gêneros Masculino e Feminino em Portugália?
Ela questiona
porque palavras que designam objetos inanimados (sem sexo), como
"Panela" (feminino) e "Garfo" (masculino), têm um gênero
determinado, o que ela classifica como uma "maluquice desta cidade".
02 – Qual é a diferença entre
as regras de Gênero em Portugália e em Anglópolis (Inglaterra)?
Em Anglópolis, há
um terceiro gênero, o GÊNERO NEUTRO, para designar todas as palavras que
indicam coisas sem sexo (como Panela e Garfo), enquanto em Portugália só
existem os gêneros Masculino e Feminino.
03 – Como os gramáticos
classificam os Nomes que servem para os dois sexos, e qual é a distinção entre
Epicenos e Comuns de Dois?
O nome genérico
usado pelos gramáticos para designar tais substantivos é Epicenos.
Epicenos (Ex: Onça, Criança) são
Nomes que usam a mesma palavra (e o mesmo gênero gramatical) para ambos os
sexos.
Comuns de Dois (Ex: Artista) são
Nomes que podem ser masculinos ou femininos, sendo o gênero marcado pela
palavra que os acompanha (O Artista / A Artista).
04 – Quais são as terminações
que indicam Nomes Femininos, segundo Quindim, e qual é a queixa de Narizinho
sobre essa distribuição?
São quase sempre
femininos os Nomes terminados em A, Ã, Ção, Gem, Dade e Ice. Narizinho protesta
porque os homens (gênero masculino) "tomaram" doze terminações e só
deixaram seis (a metade) para o sexo feminino.
05 – Qual é o meio de passar
um Substantivo do Singular para o Plural na regra geral, e qual é a regra para
os terminados em M e em S?
O meio mais comum
para passar para o Plural é o ajustamento dum rabinho chamado S (Ex: Gato →
Gatos).
Os terminados em M trocam esse M por Ns
(Ex: Homem → Homens).
Os terminados em S (como Pires e Lápis)
não mudam (Ex: Um pires, dois pires).
06 – Como é formado o plural
dos substantivos terminados em L, dependendo da pronúncia?
Os terminados em
A, Ol e Il tônicos trocam o L final por Is (Ex: Sol → Sóis; Canal → Canais).
Os terminados em El e Il átonos mudam o
El e o Il em Eis (Ex: Anel → Anéis; Fóssil → Fósseis).
07 – O que o Visconde de
Sabugosa encontrou no "bairro horrível" e qual foi sua reação?
Ele encontrou o
bairro das PALAVRAS OBSCENAS, palavras "esmolambadas e sórdidas". Sua
reação foi de envergonhamento e ele veio correndo avisar os outros para que não
passassem por lá, pois as palavras o vaiaram nos "termos mais
infames".
08 – Qual é o nome que os
gramáticos dão à mudança nas palavras para dar ideia do tamanho das coisas, e
quais são os seus dois graus principais?
Chamam de GRAU.
Os dois graus principais são o Grau AUMENTATIVO, para aumentar (Ex: Canzarrão),
e o Grau DIMINUTIVO, para diminuir (Ex: Cãozinho).
09 – Segundo Quindim, quais
são alguns dos sufixos de Aumentativo e Diminutivo que existem além de
"-ão" e "-inho" / "-zinho"?
Aumentativos:
-on, -zarão, -rão, -aço ou -aça, -az, -ázio e -orra (Ex: Cabeçorra, Copázio).
Diminutivos: -ito, -ete, -eto, -oto,
-ico, -ejo, -ilho, -elho, -el, -im, -olo, -ulo e -elo (Ex: Mosquito, Antonico).
10 – Qual foi a teoria de
Emília para explicar como Quindim, um rinoceronte, se tornou um grande
gramático?
Ela teorizou que
Quindim comeu a Gramática histórica de Eduardo Carlos Pereira, que o Visconde
havia esquecido. Ela defendeu essa ideia com o argumento de que livros são
"pão do espírito" e, no sentido material, como livros são feitos de
papel de madeira (vegetal), e vegetal é alimento de rinocerontes, Quindim
poderia muito bem ter se alimentado da gramática.
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