Conto: Nos domínios da Sintaxe – Emília no país da gramática
Monteiro Lobato
O tráfego naquela cidade não era bem
regulado. Nada de flechas indicativas das direções, nem "grilos"
poliglotas que guiassem os viajantes. De modo que os meninos, em vez de darem
no bairro das Sílabas, para onde pretendiam ir a fim de saber que história era
aquela do Ditongo, foram parar num bairro desconhecido.

— Onde estamos? — quis saber Pedrinho.
— No bairro da SINTAXE — respondeu
Quindim. — Esta cidade divide-se em duas zonas. A primeira é a zona da
LEXIOLOGIA, onde todas as palavras vivem soltas, como vocês já viram. A segunda
(esta aqui) é a zona da Sintaxe, onde as palavras só saem em família,
casadinhas, com filhos e parentaIha. Uma família de palavras chama-se uma
ORAÇÃO.
Os meninos viram que realmente não
passeavam por ali palavras soltas. Apareciam sempre aos magotes, formando
frases completas.
Passou um grupo que formava esta frase:
O Visconde raptou um ditonguinho. Quindim explicou:
— Esta frase é uma Oração que leva na
frente o chefe da família, ou o SUJEITO; depois dele vem um PREDICADO.
— Quer dizer — indagou Narizinho — que
em cada Oração há sempre um chefe, que é o tal Sujeito, seguido por um
Predicado?
— Sim. Eles são chamados os TERMOS
ESSENCIAIS DA ORAÇÃO. O sujeito dirige tudo, faz e desfaz, manda e desmanda.
Quando você diz: Tia Nastácia faz bolinhos muito gostosos, o Sujeito é Tia
Nastácia — e está claro que sem esse Sujeito, adeus bolinhos! O Sujeito é
sempre um Substantivo, ou frase que corresponda a um Substantivo.
— Alto lá! — exclamou Emília. — Se eu
digo: Tu és um paquiderme gramatical, o Sujeito é Tu — e Tu não passa de muito
bom Pronome.
— Sim, Tu é Pronome, mas está na frase
representando a mim, rinoceronte, que sou um Substantivo.
Emília viu que era assim mesmo e
calou-se.
— Muito bem — continuou Quindim,
satisfeito de haver pregado um quinau na boneca. — Sujeito é isso. Vamos ver agora
quem sabe o que é Predicada.
Ninguém sabia.
— Predicado — explicou ele — é o que se
diz do Sujeito.
— Mas o que se diz do Sujeito está no
Verbo, lembrou o menino. Na frase: O gato comeu o rato, o que se diz do Sujeito
Gato é que Comeu o rato.
— Pois é isso mesmo — confirmou
Quindim. — O Predicado está dentro do Verbo. Depois aparecem os TERMOS
INTEGRANTES DA ORAÇÃO, que completam o sentido da oração e são por isso
indispensáveis.
— Já ouvi falar num tal COMPLEMENTO
VERBAL — disse o menino.
— Sim, e é muito importante. Como
alguns Verbos não completam sozinhos o sentido da Oração, eles estão sempre
exigindo outras palavras para que a Oração tenha sentido. Essas palavras que
completam o sentido do Verbo são chamadas Complemento Verbal. Na Oração: O
Gilson matou o tico-tico, o Complemento Verbal é Tico-Tico, e nesse caso é
chamado OBJETO DIRETO, porque vem diretamente ligado ao Verbo.
— Já sei — disse Emília —, o Verbo
Matar é dos tais Verbos Transitivos, que exigem Complemento.
— Isso mesmo — respondeu Quindim,
admirado com a sabedoria da boneca. — Mas nesta outra Oração: O Visconde gosta
de ditongos, o Complemento Verbal, De Ditongos, é chamado OBJETO INDIRETO,
porque o Verbo Gostar não se liga a ele diretamente, mas precisa ainda
intercalar essa Preposição De. Quem diz Gosta tem de completar a ideia dizendo
Do que gosta.
— E que mais há numa Oração?
— Há os chamados TERMOS ACESSÓRIOS, que
desempenham uma função secundária, limitando o sentido dos substantivos, ou
exprimindo alguma circunstância. Nesta Oração: Emília está aprendendo gramática
sem o perceber, este Sem O Perceber é um ADJUNTO ADVERBIAL, que exprime uma
circunstância — o modo pelo qual Emília está aprendendo. Na Oração: O pica-pau
pica o pau no terreiro, o No Terreiro é um ADJUNTO ADVERBIAL que explica em que
lugar o pica-pau está picando o pau.
— E fora esse Adjunto Adverbial, que
outro Acessório existe? — perguntou Emília, torcendo o nariz para as palavras
difíceis.
— Há o ADJUNTO ADNOMINAL, que determina
ou qualifica o Substantivo que ele complementa. Na expressão: Narizinho
arrebitado; este Adjetivo Arrebitado é o Adjunto Adnominal do Sujeito
Narizinho.
Estavam nesse ponto quando ouviram um
rebuliço na praça. Era uma senhora de maneiras distintas, com lornhão de cabo
de madrepérola, que vinha vindo, seguida de um cortejo de frases.
— Quem será aquela grande dama? —
indagou Narizinho.
— Oh, é a Senhora Sintaxe, a dona de
tudo isto por aqui. Quem governa e dirige a concordância das palavras nas
frases é sempre ela. Uma senhora exigentíssima.
Os meninos foram ao encontro da grande
dama, à qual Narizinho fez as necessárias apresentações. Ela gostou muito da
carinha da Emília, mas achou que o chifre de Quindim podia ser menos pontudo.
Depois de alguns instantes de prosa, disse Dona Sintaxe:
— Pois é isso, meus meninos. Sou eu
quem faz estas palavrinhas comportarem-se como é preciso dentro das Orações.
Obrigo-as a terem boas maneiras, a seguirem as regras do bom-tom. Forço o Verbo
a concordar sempre com o Sujeito, e o Adjetivo a concordar com o Substantivo.
Também não deixo que o Pronome discorde do Substantivo. Se não fossem as minhas
exigências, as frases virariam verdadeiras bagunças. Passo a vida fiscalizando
a concordância das Senhoras Palavras.
Nesse momento passou a certa distância,
muito envergonhada de si própria, uma frase que dizia assim: Os gatos comeu os ratos.
Dona Sintaxe ficou vermelha de cólera e chamou-a com um gesto enérgico.
— Venha cá! Então não sabe que o Verbo
tem de concordar sempre com o Sujeito? Lambona! Vivo dizendo isto...
— A culpa é do Verbo — fungou o
Sujeito. — Eu bem que o avisei...
Dona Sintaxe tocou dali o Comeu e pôs
no lugar um Comeram. — Agora sim — disse
ela sorrindo.
— Agora a frase está certíssima. Os
gatos comeram os ratos. Pode ir, e nunca mais me apareça de Verbo torto, ouviu?
Dona Sintaxe encontrou mais adiante
outra aleijadinha — uma Oração que rezava assim: Nós vai brincar, e
consertou-a, pondo o Verbo no plural — Vamos.
Depois, voltando-se para Emília, que
estava de mãozinhas na cintura gozando a cena, explicou:
—
Minha vida aqui é o que se vê. Tenho de estar fiscalizando todas estas
senhoritas para que a cidade não vire salada de batatas. As frases que andam
com a concordância na regra tornam-se claras como água da fonte — e a clareza é
a maior qualidade que existe. Tenho também de cuidar da COLOCAÇÃO ou da ordem
das palavras na frase.
— Então elas não podem arrumar-se como
querem? — perguntou Emília.
— Absolutamente não. Têm de seguir
certas regras para que o pensamento fique bem claro e bem vestido. A minha
preocupação é sempre a mesma — clareza. As frases formam-se para exprimir o
pensamento dos homens, e a boa ordem das palavras na frase ajuda a expressão do
pensamento.
— A senhora tem toda a razão —
concordou a boneca.
— Lá no sítio de Dona Benta o
Substantivo Nastácia também gosta de dar ordem a tudo, porque a ordem facilita
a vida, diz ela.
— Eu uso aqui várias regras — continuou
Dona Sintaxe — umas para a ORDEM DIRETA e outras para a ORDEM INVERSA. Na Ordem
Direta ponho sempre os Sujeitos antes do Verbo; ponho os Complementos logo
depois das palavras que eles complementam; ponho os Adjetivos logo depois dos
Substantivos que eles modificam; e ponho as palavrinhas de ligação entre os
termos que elas ligam. Fica tudo uma beleza, de tão claro e simples. Mas há
também a Ordem Inversa, na qual estas regras não são seguidas.
— Nesse caso a clareza deve sofrer
muito — observou a menina.
— Há limites. Se o sentido da frase
fica bem claro, eu deixo que a frase se afaste da Ordem Direta; mas se o
sentido fica obscuro ou duvidoso, ah, não admito! O que quero saber nesta
cidade é de clareza e mais clareza, porque a clareza é o sol da língua.
— E quais as regras para a Ordem
Inversa? — perguntou Pedrinho.
— Uma delas é que o Verbo deve vir
antes do Sujeito, se a frase está na forma interrogativa. Eu não deixo dizer,
por exemplo: Ele é quem? Obrigo a dizer: Quem é ele? Nas chamadas frases
OPTATIVAS e IMPERATIVAS também mando pôr o Sujeito em seguida ao Verbo, como
neste exemplo: Vaze tu o que ordeno, que é frase Imperativa. Ou nesta: Seja
você muito feliz, que é frase Optativa.
— E que mais?
— Os Pronomes Demonstrativos eu os
ponho antes dos Substantivos por eles determinados. Digo, pois: Aquele
pica-pau, e não pica-pau aquele. Este rinoceronte, e não Rinoceronte este.
Também os Numerais são escritos antes
dos Substantivos por eles determinados. Assim: Três meninos, e não Meninos
três.
— E os Pronomes Oblíquos, que é que a
senhora faz com eles?
— Esses eu mando colocar de três modos
diferentes — antes do Verbo, no meio do Verbo e depois do Verbo.
— No meio do Verbo? — indagou Emília
com cara de espanto. — Como? Então a senhora corta o Verbo com uma faca para
enfiar o Pronome dentro?
— Exatamente. Abro o Verbo e ponho o
Pronome dentro. Nesta frase: O gato se fartará de ratos, eu posso fazer essa
operação cirúrgica. Abro o Verbo Fartará e ponho o Pronome dentro, assim:
Fartar-se-á. E a frase fica esta: O gato fartar-se-á de ratos — muito mais
elegante que a outra.
— Tal qual Tia Nastácia costuma fazer
com os pimentões. Abre os coitados pelo meio, tira as sementes e enfia dentro
uma carne oblíqua.
Dona Sintaxe aprovou os pimentões de
Tia Nastácia. Depois disse:
— Os gramáticos chamam PRONOME
PROCLÍTICO ao que vem antes do Verbo, como em: O menino SE queimou. Chamam
PRONOME ENCLÍTICO ao que vem depois do Verbo, como em: O menino queimou-SE. E
chamam PRONOME MESOCLÍTICO ao que vem no meio do Verbo, como em: O menino
queimar-SE-á.
— Quanta complicação para dar dor de
cabeça nas crianças! — comentou Narizinho. — Eu, se apanhasse um gramático por
aqui, atiçava Quindim em cima dele...
Nisto Emília deu uma vastíssima
gargalhada.
— Que é isso, bonequinha? — perguntou a
Sintaxe. — Viu o passarinho verde?
— Estou me lembrando dos pimentões
mesoclíticos que Tia Nastácia faz sem saber... — respondeu a diabinha.
OBRA INFANTO-JUVENIL DE
MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.
Entendendo o conto:
01
– Qual é a distinção fundamental entre a zona da Lexiologia e a zona da Sintaxe,
de acordo com a explicação de Quindim?
A zona da
Lexiologia (onde os meninos estavam anteriormente) é onde as palavras vivem
soltas, individualmente. A zona da Sintaxe é onde as palavras vivem "em
família, casadinhas, com filhos e parentaiha", ou seja, onde elas se
organizam para formar grupos com sentido completo, chamados Orações.
02
– O que são os Termos Essenciais da Oração? Cite-os e defina a função de cada
um, conforme as explicações de Quindim.
Os Termos Essenciais da
Oração são o Sujeito e o Predicado.
Sujeito: É o chefe da
família, que dirige a Oração. É sempre um Substantivo ou uma frase que o
represente (como um Pronome).
Predicado: É "o
que se diz do Sujeito". Quindim explica que o Predicado está contido no
Verbo.
03
– Explique a diferença entre Objeto Direto e Objeto Indireto, usando os
exemplos de Complemento Verbal citados por Quindim no texto.
O Objeto Direto e
o Objeto Indireto são Complementos Verbais que completam o sentido de um Verbo
Transitivo:
Objeto Direto:
Liga-se diretamente ao Verbo, sem a necessidade de uma preposição. Exemplo: O
Gilson matou o tico-tico.
Objeto Indireto:
Liga-se ao Verbo de forma indireta, exigindo a interposição de uma preposição.
Exemplo: O Visconde gosta de ditongos.
04
– O que são os Termos Acessórios da Oração e qual a função do Adjunto
Adverbial? Cite dois exemplos de circunstâncias que ele pode exprimir.
Os Termos
Acessórios são aqueles que desempenham uma função secundária, não essencial
para a formação básica da Oração, mas que limitam o sentido de substantivos ou
exprimem alguma circunstância. O Adjunto Adverbial exprime a circunstância na
qual a ação ocorre, como:
Modo (ex: sem o perceber).
Lugar (ex: no terreiro).
05
– Qual é o principal papel de Dona Sintaxe na "cidade" e qual é o
"mandamento" mais importante que ela exige das palavras, ilustrado
pela correção da frase "Os gatos comeu os ratos"?
O principal papel
de Dona Sintaxe é governar e dirigir a concordância das palavras nas frases,
obrigando-as a seguir as regras do bom-tom. O mandamento mais importante que
ela exige é a Concordância Verbal, forçando o Verbo a concordar sempre com o
Sujeito. A frase "Os gatos comeu os ratos" estava errada
(aleijadinha) e foi corrigida para "Os gatos comeram os ratos".
06
– Segundo Dona Sintaxe, qual é a "maior qualidade que existe" em uma
frase, e de que forma a colocação das palavras ajuda a atingir essa qualidade?
A maior qualidade
de uma frase é a clareza ("a clareza é o sol da língua"). A Colocação
(a ordem das palavras na frase) ajuda a atingir essa clareza porque, ao seguir
certas regras, a frase expressa o pensamento humano de forma "bem clara e
bem vestida", evitando que a cidade vire "salada de batatas".
07
– Quais são as regras básicas para a Ordem Direta da oração, conforme
explicadas por Dona Sintaxe aos meninos?
Na Ordem Direta,
Dona Sintaxe estabelece que:
Os Sujeitos vêm sempre antes
do Verbo.
Os Complementos vêm logo
depois das palavras que eles complementam.
Os Adjetivos vêm logo depois
dos Substantivos que eles modificam.
As palavrinhas de ligação
(preposições, etc.) ficam entre os termos que ligam.
08
– Em quais formas de frase (tipos de oração) a Ordem Inversa é obrigatoriamente
utilizada, de acordo com o texto? Cite um exemplo para cada forma.
A Ordem Inversa é
obrigatória nos seguintes casos:
Frase Interrogativa:
O Verbo deve vir antes do Sujeito. Exemplo: Quem é ele? (em vez de Ele é
quem?).
Frase Optativa e Imperativa:
O Sujeito deve vir em seguida ao Verbo. Exemplos: Vaze tu o que ordeno
(Imperativa) ou Seja você muito feliz (Optativa).
09
– Explique o que é a Mesóclise (Pronome Mesoclítico) e a que tipo de analogia
inusitada Emília compara essa operação linguística.
A Mesóclise
ocorre quando o pronome oblíquo átono (Pronome Mesoclítico) é colocado no meio
do Verbo. Isso exige que o Verbo seja "aberto" (cortado) para inserir
o pronome. Exemplo: Fartar-se-á. Emília compara essa "operação
cirúrgica" do Verbo à forma como Tia Nastácia faz pimentões, abrindo-os
pelo meio, tirando as sementes e enfiando 'uma carne oblíqua' (o recheio)
dentro.
10
– Qual foi o destino final do Visconde de Sabugosa, revelado pela palavra que
os meninos viram na rua? O que ele estava fazendo?
O Visconde de
Sabugosa, que havia se ausentado, estava raptando ou capturando um Ditongo (o
'ditonguinho'). A primeira frase que os meninos veem é "O Visconde raptou
um ditonguinho". Eles confirmam o rapto ao perguntar a uma palavra e ao guarda,
que o viram levando o Ditongo 'esperneando' debaixo do capote, e antes disso,
ele havia ido ao cercado para tomar notas sobre a palavra mais comprida,
Anticonstitucionalissimamente.
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