sexta-feira, 19 de setembro de 2025

CRÔNICA: JAGUATIRICAS A BORDO - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

 Crônica: JAGUATIRICAS A BORDO

              Fernando Sabino

        De repente, em pleno voo a caminho de Lisboa, passa por mim um comissário de bordo carregando uma jaguatirica.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-AnuPJMJHKQxe8XsHMbc49ggGQLC21Gsr7lXjwWf3pzNz9DEmyu7ysjwlK17laMPFVGQiv9ujmwU2L2MoEmQEAjk4_1_QTN9peN63Z9ziH8v_KhHBeOdoEq1ZLCVC2cjM48HpyrjdZbEaSBWGJTnE71V-w2O3Z4JT8jz7Ri0-lzJDuJgTGWs_y1vo1mw/s320/JAGUA.jpg


        Os demais passageiros dormem na penumbra do avião, eu também cochilava ainda há pouco. Estarei sonhando? Nada disso, já vem o homem de volta com o bicho no colo.

        -- Que bicho é esse? – pergunto.            

        -- Uma jaguatirica – responde ele simplesmente, erguendo o felino nos braços para que eu o veja de perto: – filhote ainda. Parece um gato, não parece?

        -- Tira isso pra lá! – reajo, encolhendo-me na poltrona. – Parece uma jaguatirica.

        -- Pois é uma jaguatirica.       

        -- Você me disse.

        Penso comigo: nada mais perecido com uma jaguatirica do que uma jaguatirica. A longa viagem dentro da noite, os passageiros dormindo, tudo conspira para me deixar vagamente idiota, os passageiros flutuando no ar.

        -- E posso saber o que está fazendo essa sua jaguatirica aqui no avião? – pergunto, cauteloso.

        -- Não é minha não – explica ele: – É de um passageiro. Trouxe do Pará, vai levar para morar com ele em Lisboa. A minha deixei no Rio, lá no meu apartamento, um amigo da comida pra ela enquanto viajo.
        -- A sua o quê?

        -- A minha jaguatirica.

        -- Ah! Quer dizer que você também tem uma.

        -- Tenho. Por que? O senhor não gosta de jaguatiricas?

        -- Gosto, gosto... Eu não sabia é que estava na moda ter jaguatiricas. Confesso que no momento não tenho nenhuma.

        -- Quem é que não gosta? – torna ele, entusiasmado, procurando conter a fera, que se mexe ameaçadoramente nos seus braços. – Um amigo meu lá em Teresópolis tem um leãozinho, mas leão dá muito trabalho, o senhor não acha?

        -- Sem dúvida – concordo, sacudindo a cabeça: – Cortar as unhas, pentear a juba, essa coisa toda...

        -- Jaguatirica não: mandei fazer umas luvas, embaixo é peludinho, em cima é de náilon. Para não arranhar o sinteco, sabe? Eu mesmo dou banho nela, é divertido, acredite.

        -- Eu acredito – torno a concordar, sem grande entusiasmo.

        -- Não tem perigo nenhum – insiste ele: – De morder, que eu digo. Só morde quando está com raiva. Pode é arranhar sem querer. Mas não aparo as unhas dela, acho uma pena.

        -- Realmente, seria uma pena.

        Ele continua a dissertar animadamente sobre o assunto:

        -- Esse cara, por exemplo, vai se dar mau com a jaguatirica dele. Porque, como o senhor sabe, jaguatirica não pode viver só com o dono. Chega uma hora lá, tem de casar, não é isso mesmo?

        -- Isso mesmo: não vai ser fácil arranjar em Lisboa um jaguatirica.

        -- É o que eu estou dizendo: como é que ele vai casar a bichinha? Já tive uma que era solteira, foi ficando maluca, acabei tendo de matar a tiro, uma pena.

        Como ele não diz mais nada, olhando embevecido a jaguatirica, me arrisco a perguntar:

        -- Isso aí não é uma espécie de onça não?

        -- Não é não: é uma espécie de jaguatirica mesmo.

        E ele acrescenta, procurando me tranquilizar:

        -- Pode ter certeza de uma coisa: bicho nenhum come gente a não ser que esteja com muita fome. Com fome até o homem é capaz de tudo, inclusive de comer gente. Ouça o que estou lhe dizendo. Ouço o que ele está me dizendo, nos confraternizamos à base do nosso amor às jaguatiricas, e volto a cochilar.

O gato sou eu. Rio de Janeiro, Record, 1984.

Fonte: Português – 1º grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 80.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a situação inicial que causa a surpresa do narrador?

      O narrador, em pleno voo noturno para Lisboa, é surpreendido ao ver um comissário de bordo passando com uma jaguatirica no colo.

02 – Como o comissário descreve a jaguatirica para o narrador?

      O comissário diz que é um filhote e o ergue para que o narrador veja de perto, comparando-o a um gato. No entanto, o narrador reage com medo, afirmando que o animal "parece uma jaguatirica".

03 – A jaguatirica que está no avião pertence a quem e para onde está indo?

      O comissário explica que o animal pertence a um passageiro que o trouxe do Pará e o está levando para morar com ele em Lisboa.

04 – O que o narrador descobre sobre a relação do comissário com as jaguatiricas?

      O narrador descobre que o comissário também tem uma jaguatirica em seu apartamento no Rio de Janeiro. Isso o surpreende, e ele confessa que não sabia que "estava na moda ter jaguatiricas".

05 – Quais são os cuidados que o comissário tem com sua jaguatirica, de acordo com o texto?

      O comissário explica que fez luvas especiais para a jaguatirica, com pelinho por baixo e náilon por cima, para não arranhar o sinteco. Ele também diz que ele mesmo dá banho no animal e não apara suas unhas.

06 – Qual o problema que o comissário aponta para o passageiro que leva a jaguatirica para Lisboa?

      O comissário aponta que o passageiro terá dificuldades em Lisboa, pois "jaguatirica não pode viver só com o dono". O animal precisa casar, e o comissário questiona como o passageiro vai arranjar um par para a jaguatirica na nova cidade. Ele ainda relata um caso anterior em que teve que matar uma jaguatirica que ficou "maluca" por ser solteira.

07 – Qual a última afirmação que o comissário faz para o narrador?

      A última afirmação do comissário é que "bicho nenhum come gente a não ser que esteja com muita fome". Ele compara o comportamento do animal ao do ser humano, dizendo que "com fome até o homem é capaz de tudo, inclusive de comer gente".

 

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