Crônica: JAGUATIRICAS A BORDO
Fernando Sabino
De repente, em pleno voo a caminho de
Lisboa, passa por mim um comissário de bordo carregando uma jaguatirica.

Os demais passageiros dormem na
penumbra do avião, eu também cochilava ainda há pouco. Estarei sonhando? Nada
disso, já vem o homem de volta com o bicho no colo.
-- Que bicho é esse? – pergunto.
-- Uma jaguatirica – responde ele
simplesmente, erguendo o felino nos braços para que eu o veja de perto: –
filhote ainda. Parece um gato, não parece?
-- Tira isso pra lá! – reajo,
encolhendo-me na poltrona. – Parece uma jaguatirica.
-- Pois é uma jaguatirica.
-- Você me disse.
Penso comigo: nada mais perecido com
uma jaguatirica do que uma jaguatirica. A longa viagem dentro da noite, os
passageiros dormindo, tudo conspira para me deixar vagamente idiota, os
passageiros flutuando no ar.
-- E posso saber o que está fazendo
essa sua jaguatirica aqui no avião? – pergunto, cauteloso.
-- Não é minha não – explica ele: – É de
um passageiro. Trouxe do Pará, vai levar para morar com ele em Lisboa. A minha
deixei no Rio, lá no meu apartamento, um amigo da comida pra ela enquanto
viajo.
-- A sua o quê?
-- A minha jaguatirica.
-- Ah! Quer dizer que você também tem
uma.
-- Tenho. Por que? O senhor não gosta
de jaguatiricas?
-- Gosto, gosto... Eu não sabia é que
estava na moda ter jaguatiricas. Confesso que no momento não tenho nenhuma.
-- Quem é que não gosta? – torna ele,
entusiasmado, procurando conter a fera, que se mexe ameaçadoramente nos seus
braços. – Um amigo meu lá em Teresópolis tem um leãozinho, mas leão dá muito
trabalho, o senhor não acha?
-- Sem dúvida – concordo, sacudindo a
cabeça: – Cortar as unhas, pentear a juba, essa coisa toda...
-- Jaguatirica não: mandei fazer umas
luvas, embaixo é peludinho, em cima é de náilon. Para não arranhar o sinteco,
sabe? Eu mesmo dou banho nela, é divertido, acredite.
-- Eu acredito – torno a concordar, sem
grande entusiasmo.
-- Não tem perigo nenhum – insiste ele:
– De morder, que eu digo. Só morde quando está com raiva. Pode é arranhar sem
querer. Mas não aparo as unhas dela, acho uma pena.
-- Realmente, seria uma pena.
Ele continua a dissertar animadamente
sobre o assunto:
-- Esse cara, por exemplo, vai se dar
mau com a jaguatirica dele. Porque, como o senhor sabe, jaguatirica não pode
viver só com o dono. Chega uma hora lá, tem de casar, não é isso mesmo?
-- Isso mesmo: não vai ser fácil
arranjar em Lisboa um jaguatirica.
-- É o que eu estou dizendo: como é que
ele vai casar a bichinha? Já tive uma que era solteira, foi ficando maluca,
acabei tendo de matar a tiro, uma pena.
Como ele não diz mais nada, olhando
embevecido a jaguatirica, me arrisco a perguntar:
-- Isso aí não é uma espécie de onça
não?
-- Não é não: é uma espécie de
jaguatirica mesmo.
E ele acrescenta, procurando me tranquilizar:
-- Pode ter certeza de uma coisa: bicho
nenhum come gente a não ser que esteja com muita fome. Com fome até o homem é
capaz de tudo, inclusive de comer gente. Ouça o que estou lhe dizendo. Ouço o
que ele está me dizendo, nos confraternizamos à base do nosso amor às
jaguatiricas, e volto a cochilar.
O gato sou eu. Rio de
Janeiro, Record, 1984.
Fonte: Português – 1º
grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia
Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 80.
Entendendo a crônica:
01 – Qual a situação inicial
que causa a surpresa do narrador?
O narrador, em
pleno voo noturno para Lisboa, é surpreendido ao ver um comissário de bordo
passando com uma jaguatirica no colo.
02 – Como o comissário
descreve a jaguatirica para o narrador?
O comissário diz
que é um filhote e o ergue para que o narrador veja de perto, comparando-o a um
gato. No entanto, o narrador reage com medo, afirmando que o animal
"parece uma jaguatirica".
03 – A jaguatirica que está no
avião pertence a quem e para onde está indo?
O comissário
explica que o animal pertence a um passageiro que o trouxe do Pará e o está
levando para morar com ele em Lisboa.
04 – O que o narrador descobre
sobre a relação do comissário com as jaguatiricas?
O narrador descobre que o comissário
também tem uma jaguatirica em seu apartamento no Rio de Janeiro. Isso o
surpreende, e ele confessa que não sabia que "estava na moda ter
jaguatiricas".
05 – Quais são os cuidados que
o comissário tem com sua jaguatirica, de acordo com o texto?
O comissário
explica que fez luvas especiais para a jaguatirica, com pelinho por baixo e
náilon por cima, para não arranhar o sinteco. Ele também diz que ele mesmo dá
banho no animal e não apara suas unhas.
06 – Qual o problema que o
comissário aponta para o passageiro que leva a jaguatirica para Lisboa?
O comissário aponta que o passageiro terá
dificuldades em Lisboa, pois "jaguatirica não pode viver só com o
dono". O animal precisa casar, e o comissário questiona como o passageiro
vai arranjar um par para a jaguatirica na nova cidade. Ele ainda relata um caso
anterior em que teve que matar uma jaguatirica que ficou "maluca" por
ser solteira.
07 – Qual a última afirmação
que o comissário faz para o narrador?
A última
afirmação do comissário é que "bicho nenhum come gente a não ser que
esteja com muita fome". Ele compara o comportamento do animal ao do ser
humano, dizendo que "com fome até o homem é capaz de tudo, inclusive de
comer gente".
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