sexta-feira, 10 de outubro de 2025

CONTO: GENTE IMPORTANTE E GENTE POBRE - EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: Gente importante e gente pobre – Emília no país da gramática       

           Monteiro Lobato

        A cidade de Portugália dava a ideia duma fruta incõe — ou de duas cidades emendadas, uma mais nova e outra mais velha. A separação entre ambas consistia num braço de mar.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgqybFWXgda8r_Zas2q4yeQWOEKb9ftG0QOLAWEf6fin2n3LVxkKSFTFo5VOKx1tThrCIOhLDWKLxJwV3gpxtw4A_B6fx_DqXYsTEDIZSe5XZ4AjAxbvTzT394OlMk_FaDdc6a3b99d_KB_rEkKMz4116N0aJvfIHp07vBi9n6G5VGQS_e2FwXq8lMQU9s/s320/substantivo1.png


          A parte de lá — explicou o rinoceronte — é o bairro antigo, onde só existiam palavras portuguesas. Com o andar do tempo essas palavras foram atravessando o mar e deram origem ao bairro de cá, onde se misturaram com as palavras indígenas locais. Desse modo formou-se o grande bairro de Brasilina.

          Compreendo — disse Pedrinho. — Para cá é a parte do Brasil e para lá é a parte de Portugal. Foi a parte de lá, ou a cidade velha, que deu origem à parte de cá, ou a cidade nova.

          Isso mesmo. A cidade nova saiu da cidade velha. No começo isto por aqui não passava dum bairro humilde e malvisto na cidade velha; mas com o tempo foi crescendo e ainda há de acabar uma cidade maior que a outra.

          Vamos percorrer a cidade nova, que é a que mais nos interessa — propôs Narizinho.

        Montaram de novo no rinoceronte, que se pôs a trote pelo morro abaixo. Chegados ao sopé, saltaram em terra, porque não seria gentil penetrarem na cidade da língua montados em tão notável gramático.

        Oh, ali era outra coisa! Ruas varridas, sem mato e com "grilos" nas esquinas. Grande número de palavras moviam-se com muita ordem, andando de cá para lá e de lá para cá, exatinho como gente numa cidade comum.

          Que bairro será esse? — perguntou Narizinho.

        — Um muito importante — o bairro dos NOMES, ou SUBSTANTIVOS.

          Que emproados! — observou Emília. — Até parecem as Vogais da terra do alfabeto.

          E são de fato as Vogais das palavras. Sem eles seria impossível haver linguagem, porque os Substantivos é que dão nome a todos os seres vivos e a todas as coisas. Por isso se chamam Substantivos, como quem diz que indicam a substância de tudo. Mas reparem que há uns orgulhosos e outros mais humildes.

          Sim, estou notando — declarou a menina. — Uns não tiram a mão do bolso e só falam de chapéu na cabeça. Outros parecem modestos. Quem são esses prosas, de mão no bolso?

          São os Nomes PRÓPRIOS, que servem para designar as pessoas, os países, as cidades, as montanhas, os rios, os continentes, etc. — Ali vai um — Paulo, que serve para designar certo homem.

          Mas há muitos Paulos — observou Emília.

          Pois esse Nome designa cada um deles, exigindo depois de si um Sobrenome para marcar a diferença entre um Paulo e outro. Paulo Silva, Paulo Moreira, etc. Silva e Moreira são sobrenomes que diferenciam um Paulo de outro. Já aquela palavra que vem um pouco mais atrás goza de mais importância que o Nome Paulo. É a palavra Himalaia, que não tem outra coisa a fazer na vida senão designar certa montanha da índia, a mais alta do mundo. Por ter pouco serviço está gorda assim. Só é chamada de longe em longe, quando alguém quer referir-se à tal montanha. Paulo é um Nome mais magro porque os homens exigem dele bastante serviço.

          Nesse caso o Nome José deve ser fininho como um palito — disse Emília. — E o Nome Maria também.

          Falai no mau, aprontai o pau! — gritou Narizinho. — Lá vem o nome José, suando em bicas, magro que nem um espeto, surrado que nem taramela de porta de cozinha...

          Venha cá, Senhor Nome José! — chamou Emília.

        O Nome José aproximou-se, arquejante, a limpar o suor da testa.

          Cansadinho, hein?

          Nem fale, menina! — disse ele. — A todo momento nascem crianças que os pais querem que eu batize, de modo que vivo numa perpétua correria de igreja em igreja, a grudar-me em criancinhas que ficam josezando até à morte. Eu e Maria somos dois Nomes que não sabem o que quer dizer sossego...

        Nem bem havia dito isso e — trrrlin!... soou a campainha de um radio telefone; a telefonista atendeu e depois berrou para a rua:

          O Nome José está sendo chamado para batizar um menino em Curitiba, capital do Paraná. Depressa!

        E o pobre Nome José lá se foi ventando para Curitiba, a fim de josezar mais aquele Zezinho.

          Não vale a pena ser muito querida nesta cidade — observou Emília. — Eu, se fosse palavra, queria ser a mais antipática de todas, para que ninguém me incomodasse, como incomodam a este pobre José.

          Disso estou eu livre! — murmurou uma palavra gorda, que estava sentada à soleira duma porta. Era o Nome Urraca.

          Sim — continuou ela. — Como os homens me acham feia, não me incomodam com chamados quando têm filhas a batizar. Antigamente não era assim. Muitas meninas batizei em Portugal, e até princesas. Mas hoje, nada. Deixaram-me em paz duma vez. Desconfio que não existe no Brasil inteiro uma só menina com meu nome.

          Por isso está gorda assim, sua vagabunda! — observou Emília.

          Que culpa tenho de ser feia, ou dos homens me acharem feia? Cada qual como Deus o fez.

          Nesse caso, se é inútil, se não tem o que fazer, se está sem emprego, a senhora não passa dum Arcaísmo cujo lugar não é aqui e sim nos subúrbios. Está tomando o espaço de outras.

          Não seja tão sabida, bonequinha! Eu há muito que moro nos subúrbios, e se vim passear hoje aqui foi apenas para matar saudades. Esta casa não é minha.

          De quem é então?

          Duma diaba que veio de Galópolis e anda mais chamada que uma telefonista — uma tal Odete. Volta e meia sai daqui correndo, a batizar meninas. Mas minha vingança é que está ficando magra que nem bacalhau de porta de venda, de tanto corre-corre.

          Está aí dentro, essa palavra?

          Aqui dentro, nada! Não pára em casa um minuto. Inda agora recebeu chamado para batizar uma menina em Itaoca. Tomara que seja uma negrinha preta que nem carvão...

        Enquanto Emília conversava com aquele Nome sem serviço, Pedrinho ia atentando na soberbia dos Nomes indicativos de países e continentes. O Nome Europa era o mais empavesado de todos: louro, e dum orgulho infinito. Passou rente ao Nome América e torceu o nariz. Também o Nome Alemanha era emproadíssimo, embora andasse com uma cruz de ponto falso no nariz.

          Estes Nomes Próprios — explicou Quindim — têm a seu serviço essa infinidade de Nomes COMUNS que formigam pelas ruas. Os Nomes Comuns formam a plebe, o povo, o operariado, e têm a obrigação de designar cada coisa que existe, por mais insignificante que seja. Qual será a coisa mais insignificante do mundo?

        — Cuspo de micróbio — gritou Emília.

        — Realmente, bonequinha, cuspo de micróbio deve ser a coisa mais insignificante do mundo. Pois mesmo assim há necessidade de dois Nomes Comuns para a designar. Imaginem agora a humildade desses dois Nomes quando passam perto do Nome Próprio Deus, por exemplo, ou Ouro, que são dos mais graduados!

          Com certeza deitam-se no chão e viram tapete para que Deus e Ouro lhes pisem em cima — observou Emília.

        Entre a multidão de Nomes que enxameavam naquela rua, os meninos notaram outras diferenças. Uns pertenciam à classe dos Nomes CONCRETOS e outros à classe dos Nomes ABSTRATOS. Havia ainda os Nomes SIMPLES e os Nomes COMPOSTOS. Quindim foi explicando a diferença.

        — Os Nomes Concretos são os que marcam coisas ou criaturas que existem mesmo de verdade, como Homem, Nastácia, Tatu, Cebola. E os Nomes Abstratos são os que marcam coisas que a gente quer que existam, ou imagina que existem, como Bondade, Lealdade, Justiça, Amor.

        — E também Dinheiro — sugeriu Emília.

        — Dinheiro é Concreto, porque dinheiro existe — contestou Quindim.

        — Para mim e para Tia Nastácia é abstratíssimo. Ouço falar em Dinheiro, como ouço falar em Justiça, Lealdade, Amor; mas ver, pegar, cheirar e botar no bolso dinheiro, isso nunca.

        — E aquele tostão novo que dei a você no dia do circo?  — lembrou o menino.

        — Tostão não é dinheiro; é cuspo de dinheiro — retorquiu Emília.

        Depois daquela asneirinha, o rinoceronte continuou:

        — Há os Nomes Simples, como a maior parte dos que circulam por aqui, e há os Nomes Compostos, como aqueles que ali vão. Estes Nomes Compostos formam-se de dois Nomes Simples, encangados que nem bois.

        Ia passando o Nome Guarda-Chuva, de braço dado com o Nome Couve-Flor.

        — Parecem bananas incões — observou Emília.

        — E há ainda os Nomes COLETIVOS — continuou Quindim. — São os que indicam uma coleção, ou uma porção de coisas — como aquele, acolá! Emília chamou-o.

        — Venha cá, Senhor Coletivo! Explique-se. Diga quem é.

        — Sou o Nome Cafezal e indico uma porção de pés de café. Deseja mais alguma coisa, senhorita?

        — Quero saber se não está com a broca.

        — Broca só dá nos arbustos que eu batizo quando são muitos.

        — E quando são poucos?

        — Só os batizo quando são muitos. Se se trata apenas de dois, três ou uma dúzia, não dou confiança. Ficam sendo dois, três ou uma dúzia de pés de café, mas nunca um Cafezal. Está satisfeita?

        — Estaria — respondeu Emília, despedindo-o espevitadamente — se em vez de tantos pés de café você me desse uma xícara de café com bolinhos...

OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.

Entendendo o conto:

01 – Como a cidade de Portugália é descrita por Quindim, e qual elemento natural faz a separação entre suas duas partes?

      Ela é descrita como se fosse uma "fruta incõe" ou "duas cidades emendadas". O elemento que separa as duas partes é um braço de mar.

02 – Quais são os nomes dos dois bairros/cidades que compõem Portugália (a parte velha e a parte nova), e de onde veio a origem da cidade nova?

      A parte de lá é o bairro antigo (Portugal) e a parte de cá é o grande bairro de Brasilina (Brasil). A cidade nova (Brasilina) saiu da cidade velha (o bairro antigo).

03 – Qual é o nome do bairro importante que os meninos visitam, e qual é a função essencial das palavras que vivem lá, de acordo com Quindim?

      É o bairro dos NOMES, ou SUBSTANTIVOS. A função essencial é que eles dão nome a todos os seres vivos e a todas as coisas (por isso indicam a "substância de tudo").

04 – Como Quindim diferencia os Nomes Próprios dos Nomes Comuns em termos de comportamento e função social?

      Os Nomes Próprios são orgulhosos e emproados (andando de chapéu e mão no bolso) e servem para designar indivíduos específicos (pessoas, países). Os Nomes Comuns formam a plebe, o povo, o operariado e têm a obrigação de designar cada coisa que existe, por mais insignificante que seja.

05 – Por que os Nomes Próprios como José e Maria são descritos como "magro que nem um espeto" e vivem em "perpétua correria"?

      Isso acontece porque eles são nomes muito usados (queridos) e vivem numa correria "de igreja em igreja" para batizar inúmeras crianças que nascem, exigindo muito serviço deles.

06 – Qual era a história da palavra Urraca, e por que ela se considera mais feliz do que Nomes como José?

      Urraca era um Nome Próprio que foi muito usado em Portugal (batizando até princesas), mas hoje os homens a acham feia e não a usam mais. Ela está gorda por estar sem serviço, e se considera feliz por estar livre do corre-corre e dos chamados.

07 – O que são Nomes Concretos e Nomes Abstratos, segundo a definição de Quindim?

      Nomes Concretos são os que marcam coisas ou criaturas que existem mesmo de verdade (Ex: Homem, Tatu). Nomes Abstratos são os que marcam coisas que a gente quer que existam, ou imagina que existem (Ex: Bondade, Justiça, Amor).

08 – Por que Emília discorda de Quindim e insiste que a palavra Dinheiro é um Nome Abstrato?

      Emília diz que, para ela e Tia Nastácia, Dinheiro é Abstrato porque, assim como Justiça e Lealdade, ela apenas ouve falar sobre ele, mas nunca consegue "ver, pegar, cheirar e botar no bolso".

09 – O que são os Nomes Compostos, e quais exemplos foram citados no texto?

      São Nomes que se formam de dois Nomes Simples, "encangados que nem bois". Os exemplos citados são Guarda-Chuva e Couve-Flor.

10 – O que são os Nomes Coletivos, e qual exemplo foi chamado para se explicar aos meninos?

      São os Nomes que indicam uma coleção, ou uma porção de coisas. O exemplo chamado por Emília foi a palavra Cafezal, que indica uma porção de pés de café.

 

 

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