Conto: Gente importante e gente pobre – Emília no país da gramática
Monteiro Lobato
A cidade de Portugália dava a ideia
duma fruta incõe — ou de duas cidades emendadas, uma mais nova e outra mais
velha. A separação entre ambas consistia num braço de mar.

—
A parte de lá — explicou o rinoceronte — é o bairro antigo, onde só
existiam palavras portuguesas. Com o andar do tempo essas palavras foram
atravessando o mar e deram origem ao bairro de cá, onde se misturaram com as
palavras indígenas locais. Desse modo formou-se o grande bairro de Brasilina.
—
Compreendo — disse Pedrinho. — Para cá é a parte do Brasil e para lá é a
parte de Portugal. Foi a parte de lá, ou a cidade velha, que deu origem à parte
de cá, ou a cidade nova.
—
Isso mesmo. A cidade nova saiu da cidade velha. No começo isto por aqui
não passava dum bairro humilde e malvisto na cidade velha; mas com o tempo foi
crescendo e ainda há de acabar uma cidade maior que a outra.
—
Vamos percorrer a cidade nova, que é a que mais nos interessa — propôs
Narizinho.
Montaram de novo no rinoceronte, que se
pôs a trote pelo morro abaixo. Chegados ao sopé, saltaram em terra, porque não
seria gentil penetrarem na cidade da língua montados em tão notável gramático.
Oh, ali era outra coisa! Ruas varridas,
sem mato e com "grilos" nas esquinas. Grande número de palavras
moviam-se com muita ordem, andando de cá para lá e de lá para cá, exatinho como
gente numa cidade comum.
—
Que bairro será esse? — perguntou Narizinho.
— Um muito importante — o bairro dos
NOMES, ou SUBSTANTIVOS.
—
Que emproados! — observou Emília. — Até parecem as Vogais da terra do
alfabeto.
—
E são de fato as Vogais das palavras. Sem eles seria impossível haver
linguagem, porque os Substantivos é que dão nome a todos os seres vivos e a
todas as coisas. Por isso se chamam Substantivos, como quem diz que indicam a
substância de tudo. Mas reparem que há uns orgulhosos e outros mais humildes.
—
Sim, estou notando — declarou a menina. — Uns não tiram a mão do bolso e
só falam de chapéu na cabeça. Outros parecem modestos. Quem são esses prosas,
de mão no bolso?
—
São os Nomes PRÓPRIOS, que servem para designar as pessoas, os países,
as cidades, as montanhas, os rios, os continentes, etc. — Ali vai um — Paulo,
que serve para designar certo homem.
—
Mas há muitos Paulos — observou Emília.
—
Pois esse Nome designa cada um deles, exigindo depois de si um Sobrenome
para marcar a diferença entre um Paulo e outro. Paulo Silva, Paulo Moreira,
etc. Silva e Moreira são sobrenomes que diferenciam um Paulo de outro. Já
aquela palavra que vem um pouco mais atrás goza de mais importância que o Nome
Paulo. É a palavra Himalaia, que não tem outra coisa a fazer na vida senão
designar certa montanha da índia, a mais alta do mundo. Por ter pouco serviço
está gorda assim. Só é chamada de longe em longe, quando alguém quer referir-se
à tal montanha. Paulo é um Nome mais magro porque os homens exigem dele
bastante serviço.
—
Nesse caso o Nome José deve ser fininho como um palito — disse Emília. —
E o Nome Maria também.
—
Falai no mau, aprontai o pau! — gritou Narizinho. — Lá vem o nome José,
suando em bicas, magro que nem um espeto, surrado que nem taramela de porta de
cozinha...
—
Venha cá, Senhor Nome José! — chamou Emília.
O Nome José aproximou-se, arquejante, a
limpar o suor da testa.
—
Cansadinho, hein?
—
Nem fale, menina! — disse ele. — A todo momento nascem crianças que os
pais querem que eu batize, de modo que vivo numa perpétua correria de igreja em
igreja, a grudar-me em criancinhas que ficam josezando até à morte. Eu e Maria
somos dois Nomes que não sabem o que quer dizer sossego...
Nem bem havia dito isso e — trrrlin!...
soou a campainha de um radio telefone; a telefonista atendeu e depois berrou
para a rua:
—
O Nome José está sendo chamado para batizar um menino em Curitiba,
capital do Paraná. Depressa!
E
o pobre Nome José lá se foi ventando para Curitiba, a fim de josezar mais
aquele Zezinho.
—
Não vale a pena ser muito querida nesta cidade — observou Emília. — Eu,
se fosse palavra, queria ser a mais antipática de todas, para que ninguém me
incomodasse, como incomodam a este pobre José.
—
Disso estou eu livre! — murmurou uma palavra gorda, que estava sentada à
soleira duma porta. Era o Nome Urraca.
—
Sim — continuou ela. — Como os homens me acham feia, não me incomodam
com chamados quando têm filhas a batizar. Antigamente não era assim. Muitas
meninas batizei em Portugal, e até princesas. Mas hoje, nada. Deixaram-me em
paz duma vez. Desconfio que não existe no Brasil inteiro uma só menina com meu
nome.
—
Por isso está gorda assim, sua vagabunda! — observou Emília.
—
Que culpa tenho de ser feia, ou dos homens me acharem feia? Cada qual
como Deus o fez.
—
Nesse caso, se é inútil, se não tem o que fazer, se está sem emprego, a
senhora não passa dum Arcaísmo cujo lugar não é aqui e sim nos subúrbios. Está
tomando o espaço de outras.
—
Não seja tão sabida, bonequinha! Eu há muito que moro nos subúrbios, e
se vim passear hoje aqui foi apenas para matar saudades. Esta casa não é minha.
—
De quem é então?
—
Duma diaba que veio de Galópolis e anda mais chamada que uma telefonista
— uma tal Odete. Volta e meia sai daqui correndo, a batizar meninas. Mas minha
vingança é que está ficando magra que nem bacalhau de porta de venda, de tanto
corre-corre.
—
Está aí dentro, essa palavra?
—
Aqui dentro, nada! Não pára em casa um minuto. Inda agora recebeu
chamado para batizar uma menina em Itaoca. Tomara que seja uma negrinha preta
que nem carvão...
Enquanto Emília conversava com aquele
Nome sem serviço, Pedrinho ia atentando na soberbia dos Nomes indicativos de
países e continentes. O Nome Europa era o mais empavesado de todos: louro, e
dum orgulho infinito. Passou rente ao Nome América e torceu o nariz. Também o
Nome Alemanha era emproadíssimo, embora andasse com uma cruz de ponto falso no
nariz.
—
Estes Nomes Próprios — explicou Quindim — têm a seu serviço essa
infinidade de Nomes COMUNS que formigam pelas ruas. Os Nomes Comuns formam a
plebe, o povo, o operariado, e têm a obrigação de designar cada coisa que
existe, por mais insignificante que seja. Qual será a coisa mais insignificante
do mundo?
— Cuspo de micróbio — gritou Emília.
— Realmente, bonequinha, cuspo de
micróbio deve ser a coisa mais insignificante do mundo. Pois mesmo assim há
necessidade de dois Nomes Comuns para a designar. Imaginem agora a humildade
desses dois Nomes quando passam perto do Nome Próprio Deus, por exemplo, ou
Ouro, que são dos mais graduados!
—
Com certeza deitam-se no chão e viram tapete para que Deus e Ouro lhes
pisem em cima — observou Emília.
Entre a multidão de Nomes que
enxameavam naquela rua, os meninos notaram outras diferenças. Uns pertenciam à
classe dos Nomes CONCRETOS e outros à classe dos Nomes ABSTRATOS. Havia ainda
os Nomes SIMPLES e os Nomes COMPOSTOS. Quindim foi explicando a diferença.
— Os Nomes Concretos são os que marcam
coisas ou criaturas que existem mesmo de verdade, como Homem, Nastácia, Tatu,
Cebola. E os Nomes Abstratos são os que marcam coisas que a gente quer que
existam, ou imagina que existem, como Bondade, Lealdade, Justiça, Amor.
— E também Dinheiro — sugeriu Emília.
— Dinheiro é Concreto, porque dinheiro
existe — contestou Quindim.
— Para mim e para Tia Nastácia é
abstratíssimo. Ouço falar em Dinheiro, como ouço falar em Justiça, Lealdade,
Amor; mas ver, pegar, cheirar e botar no bolso dinheiro, isso nunca.
— E aquele tostão novo que dei a você
no dia do circo? — lembrou o menino.
— Tostão não é dinheiro; é cuspo de
dinheiro — retorquiu Emília.
Depois daquela asneirinha, o
rinoceronte continuou:
— Há os Nomes Simples, como a maior
parte dos que circulam por aqui, e há os Nomes Compostos, como aqueles que ali
vão. Estes Nomes Compostos formam-se de dois Nomes Simples, encangados que nem
bois.
Ia passando o Nome Guarda-Chuva, de
braço dado com o Nome Couve-Flor.
— Parecem bananas incões — observou
Emília.
— E há ainda os Nomes COLETIVOS —
continuou Quindim. — São os que indicam uma coleção, ou uma porção de coisas —
como aquele, acolá! Emília chamou-o.
— Venha cá, Senhor Coletivo!
Explique-se. Diga quem é.
— Sou o Nome Cafezal e indico uma
porção de pés de café. Deseja mais alguma coisa, senhorita?
— Quero saber se não está com a broca.
— Broca só dá nos arbustos que eu
batizo quando são muitos.
— E quando são poucos?
— Só os batizo quando são muitos. Se se
trata apenas de dois, três ou uma dúzia, não dou confiança. Ficam sendo dois,
três ou uma dúzia de pés de café, mas nunca um Cafezal. Está satisfeita?
— Estaria — respondeu Emília,
despedindo-o espevitadamente — se em vez de tantos pés de café você me desse
uma xícara de café com bolinhos...
OBRA INFANTO-JUVENIL DE
MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.
Entendendo o conto:
01 – Como a cidade de
Portugália é descrita por Quindim, e qual elemento natural faz a separação
entre suas duas partes?
Ela é descrita
como se fosse uma "fruta incõe" ou "duas cidades
emendadas". O elemento que separa as duas partes é um braço de mar.
02 – Quais são os nomes dos
dois bairros/cidades que compõem Portugália (a parte velha e a parte nova), e
de onde veio a origem da cidade nova?
A parte de lá é o bairro antigo (Portugal) e a parte de cá é
o grande bairro de Brasilina (Brasil). A cidade nova (Brasilina) saiu da cidade
velha (o bairro antigo).
03 – Qual é o nome do bairro
importante que os meninos visitam, e qual é a função essencial das palavras que
vivem lá, de acordo com Quindim?
É o bairro dos
NOMES, ou SUBSTANTIVOS. A função essencial é que eles dão nome a todos os seres
vivos e a todas as coisas (por isso indicam a "substância de tudo").
04 – Como Quindim diferencia os
Nomes Próprios dos Nomes Comuns em termos de comportamento e função social?
Os Nomes Próprios
são orgulhosos e emproados (andando de chapéu e mão no bolso) e servem para
designar indivíduos específicos (pessoas, países). Os Nomes Comuns formam a plebe,
o povo, o operariado e têm a obrigação de designar cada coisa que existe, por
mais insignificante que seja.
05 – Por que os Nomes Próprios
como José e Maria são descritos como "magro que nem um espeto" e
vivem em "perpétua correria"?
Isso acontece
porque eles são nomes muito usados (queridos) e vivem numa correria "de
igreja em igreja" para batizar inúmeras crianças que nascem, exigindo
muito serviço deles.
06 – Qual era a história da
palavra Urraca, e por que ela se considera mais feliz do que Nomes como José?
Urraca era um
Nome Próprio que foi muito usado em Portugal (batizando até princesas), mas
hoje os homens a acham feia e não a usam mais. Ela está gorda por estar sem
serviço, e se considera feliz por estar livre do corre-corre e dos chamados.
07 – O que são Nomes Concretos
e Nomes Abstratos, segundo a definição de Quindim?
Nomes Concretos
são os que marcam coisas ou criaturas que existem mesmo de verdade (Ex: Homem,
Tatu). Nomes Abstratos são os que marcam coisas que a gente quer que existam,
ou imagina que existem (Ex: Bondade, Justiça, Amor).
08 – Por que Emília discorda
de Quindim e insiste que a palavra Dinheiro é um Nome Abstrato?
Emília diz que,
para ela e Tia Nastácia, Dinheiro é Abstrato porque, assim como Justiça e
Lealdade, ela apenas ouve falar sobre ele, mas nunca consegue "ver, pegar,
cheirar e botar no bolso".
09 – O que são os Nomes
Compostos, e quais exemplos foram citados no texto?
São Nomes que se
formam de dois Nomes Simples, "encangados que nem bois". Os exemplos
citados são Guarda-Chuva e Couve-Flor.
10 – O que são os Nomes
Coletivos, e qual exemplo foi chamado para se explicar aos meninos?
São os Nomes que
indicam uma coleção, ou uma porção de coisas. O exemplo chamado por Emília foi
a palavra Cafezal, que indica uma porção de pés de café.
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