Conto: Passeio ortográfico – Emília no país da gramática
Monteiro Lobato
No bairro da ORTOGRAFIA os meninos
encontraram uma dama de origem grega, que tomava conta de tudo.
— Bom dia, minha senhora! — disse
Quindim fazendo uma saudação de cabeça muito desajeitada. — Trago aqui sobre o
meu lombo dois meninos e uma boneca, que desejam conhecer a vida deste bairro.

— Às ordens! — exclamou a grega. —
Desçam e venham ver como lido com as letras, na formação escrita das palavras.
Os meninos desceram pela escadinha de
corda e rodearam-na. Emília, lambetissimamente, tomou-lhe a bênção.
— Deus te abençoe, bonequinha — disse a
Ortografia sorrindo.
Por onde começar? Narizinho teve a ideia
de inquirir por que motivo ela se chamava Ortografia.
— Meu nome é grego e formado de duas
palavras gregas
— Orthos e Graphia. Orthos quer dizer
"correta" e Graphia quer dizer "escrita". Sou, portanto, a
Escrita Correta, ou a que ensina a escrever corretamente.
— Pois a senhora precisa trabalhar
muito — disse Emília —, porque a maior parte das gentes ainda não sabe escrever
na regra. Eu mesma, que sou marquesa, erro às vezes...
— Marquesa? — repetiu a Ortografia, admirada.
— Marquesa de quê?
— Marquesa de Rabicó, para a servir,
minha senhora! — respondeu Emília, de mãos na cintura e queixo erguido.
Narizinho confirmou o título da boneca
e narrou várias passagens da sua
vidinha, inclusive o casamento e o divórcio com o Marquês de Rabicó. A
Ortografia espantou-se grandemente de tais prodígios. Em seguida falou da sua
vida ali. — Antigamente o sistema de escrever as palavras era o SISTEMA
ETIMOLÓGICO, o qual mandava escrevê-las de acordo com a origem. Isso trazia
muitas complicações e dificuldades.
Por esse sistema, a palavra Cisma, por
exemplo, escrevia-se Scisma, com uma letra inútil, mas justificada pela origem.
A palavra Tísica escrevia-se Phthisica, com três letras inúteis, sempre por
causa da origem. Ditongo escrevia-se Diphthongo. De modo que havia uma enorme
trabalheira entre os homens para decorar a forma das palavras — e trabalheira
inútil, porque ninguém ganhava coisa nenhuma com isso...
— Só os tipógrafos — lembrou Narizinho.
— Esses engordavam.
— Sim, só os tipógrafos — confirmou a
Ortografia. — Todos os mais perdiam tempo e fósforo cerebral. Em consequência
disso ergueu-se um movimento para mudar — para acabar com a ORTOGRAFIA
ETIMOLÓGICA e pôr em lugar dela outra mais fonética, isto é, que só conservasse
nas palavras as letras que se pronunciam. Esse movimento venceu, afinal, e
acabou sendo sancionado por um decreto do governo, depois de muito estudado
pela Academia Brasileira de Letras.
— Quer dizer que agora ninguém mais
erra? — disse Pedrinho.
— Está muito enganado, meu filho. Há
regras que têm de ser seguidas, e os que se afastarem dessas regras erram. Mas
tudo se torna muito mais simples e lógico. Eu gostei da mudança, confesso — mas
a minha amiga, a velha Ortografia Etimológica, está furiosíssima. Não se
conforma com a simplificação das palavras.
A dama grega levou os meninos para sua
casa, onde havia uma bela coleção de letras e sinais gráficos.
— As letras vocês já conhecem — disse
ela. — São as do Alfabeto. Deste lado tenho as MAIÚSCULAS; e daquele lado, as
MINÚSCULAS. Aqui nesta gaveta guardo os ACENTOS e outros sinais.
— Quando é que a senhora emprega as
Maiúsculas? — indagou Pedrinho.
— Ponho em Maiúsculo todas as primeiras
letras das palavras que abrem os Períodos, e também escrevo em Maiúsculo a
primeira letra de todos os Nomes Próprios.
— Só? — perguntou Narizinho.
— Não. Uso Maiúsculas também nos
títulos, como Vossa Senhoria, Senhor Doutor, etc. E nos Epítetos, ou Alcunhas
dos homens célebres, como Napoleão, o Grande; Guilherme, o Taciturno; o
Tiradentes, etc.
Uso-as nas palavras que designam
divindade, como: o Eterno, o Todo-Poderoso.
Uso-as em certos Nomes Abstratos,
quando aparecem sob forma de pessoas, como nesta frase: O monstro vinha
escoltado pela Ira, pela Traição e pelo Ciúme.
Uso-as para os pontos cardeais, quando
designam regiões, como nestas frases: Os povos do Oriente; Os mares do Sul. Mas
digo sem Maiúscula: O oriente da China, porque aqui oriente significa apenas
uma direção geográfica. Pela mesma razão também digo: O norte do Brasil.
— E os tais Acentos? — perguntou o
menino.
— Acentos, lido com dois — o AGUDO (´)
e o CIRCUNFLEXO (^). E ainda lido com outros sinaizinhos aparentados com os
Acentos, como o TIL (~), o APÓSTROFO ('), a CEDILHA (,), que é uma caudinha no
C, e o HÍFEN, OU o TRAÇO DE UNIÃO (-).
Introduziram-se na língua outros
Acentos, como o acento grave (‘), muito usado pelos franceses, e ainda o TREMA
(••). Sou contra isso: quanto menos Acentos houver numa língua, melhor. A
língua inglesa, que é a mais rica de todas, não se utiliza de nenhum Acento. Os
ingleses são homens práticos. Não perdem tempo em enfeitar as palavras com
bolostroquinhas dispensáveis.
— Muito bem! — disse Emília, que tinha
gana em Acentos. — Gosto de ouvir uma grande dama como a senhora falar assim,
porque é exatamente como penso. Essas pulgas só servem para nos tomar tempo.
Acho que só devem ser usados quando forem necessários, para evitar confusão.
Hoje, escreve-se êle e há, com Acentos. Acho desnecessário, porque, com ou sem
Acentos, só há um jeito de pronunciar essas palavras. E as letras? Fale das
letras.
— Entre as letras — continuou a Senhora
Ortografia —, uma das mais curiosas é o H. O diabinho por si só não tem som
nenhum, mas ligado a outras letras produz sons especiais. No começo duma
palavra é o mesmo que não existir. Em Homem, Hoje ou Haver, por exemplo, tanto
faz existir o H como não existir.
— Então, por que continua o H nessas
palavras? — indagou o menino.
— Porque elas são filhas de palavras
latinas que também se escreviam com H, e todo o mundo está acostumado. Se
fôssemos escrever Ornem, haveria um berreiro de protestos...
Mas quando o H se liga ao C, ele chia
que nem pingo d'água em chapa de fogão, como em Machado, Achar, Chá, China. E
se se liga a um L, ou a um N, produz um som que os gramáticos chamam Palatal,
como nas palavras Alho, Trilho, Cunha, Vinho. Na Antiga Ortografia também se
ligava ao P para dar um som igual ao F, como em Phosphoro, Philosopho, Phantasia.
Emília ficou muito tempo de prosa com a
dama grega,
aprendendo as regras da Nova Ortografia. Por ela soube que a Senhora
Ortografia Etimológica tinha residência num bairro próximo, onde todas as
palavras continuavam a trajar pelo sistema antigo.
— A Ortografia Etimológica
entrincheirou-se lá, furiosa da vida, e não admite que ninguém toque na
vestimenta das suas palavras. Essa boa velha sustenta as modas antigas.
Palavras que vieram do latim com letras dobradas, ela as conserva direitinhas.
Não admite mudanças.
— A boba! — exclamou Emília, com toda a
irreverência. — Se tudo na vida muda, por que as palavras não haveriam de
mudar? Até eu mudo. Quantas vezes não mudei esta carinha que a senhora está
vendo?
— Muda de cara, como? — indagou Dona
Ortografia, franzindo a testa.
— Sei lá. Mudo. Ou, antes, eles mudam a
minha cara.
— Quem são eles?
— Esses diabos que desenham minha
figura nos livros. Cada qual me faz de um jeito, e houve um tal que me fez tão
feia que piquei o livro em mil pedacinhos.
— Pois é uma grande injustiça —
declarou a dama. — Na minha opinião, você é uma bonequinha encantadora.
— E sabe que sou também um pocinho de
it? — acrescentou Emília, piscando.
Narizinho puxou-a por um braço. Era
demais aquele assanhamento.
OBRA INFANTO-JUVENIL DE
MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.
Entendendo o conto:
01
– Qual é a origem grega e o significado do nome da dama responsável pelo bairro
da Ortografia?
O nome
"Ortografia" é formado por duas palavras gregas: "Orthos",
que significa "correta", e "Graphia", que significa
"escrita". Assim, a Ortografia é a "Escrita Correta", ou a
que ensina a escrever corretamente.
02
– O que era o antigo Sistema Etimológico de escrita e qual era o principal
problema que ele causava na língua?
O Sistema
Etimológico mandava escrever as palavras de acordo com a sua origem, o que
exigia a manutenção de letras que já não eram pronunciadas. O principal
problema era que isso trazia "muitas complicações e dificuldades" e
resultava em uma "trabalheira inútil" para decorar formas de palavras
com letras desnecessárias (como Scisma ou Phthisica).
03
– Qual sistema substituiu a Ortografia Etimológica e qual foi o princípio
fundamental dessa mudança, sancionada por decreto?
O movimento
venceu e pôs em lugar da Etimológica uma Ortografia mais fonética, isto é, que
só conservasse nas palavras as letras que se pronunciam.
04
– De acordo com a Senhora Ortografia, quais são duas das principais regras para
o uso das Letras Maiúsculas?
As Maiúsculas são
usadas, principalmente, em:
Todas as primeiras letras
das palavras que abrem os Períodos.
A primeira letra de todos os
Nomes Próprios.
Títulos, Epítetos ou
Alcunhas (ex: Napoleão, o Grande) e Nomes Abstratos quando aparecem como
pessoas (a Ira).
05
– Quais são os dois principais Acentos com os quais a Ortografia lida e qual é
a sua opinião sobre a inclusão de muitos sinais na língua, como o acento grave
ou o trema?
Os dois principais acentos
são o Agudo (´) e o Circunflexo (^). A Ortografia é contra a introdução de mais
sinais, como o grave e o trema, defendendo a praticidade: "quanto menos
Acentos houver numa língua, melhor."
06
– Qual é a característica curiosa da letra H e por que ela é mantida em certas
palavras (como Homem ou Haver), mesmo quando não possui som?
O H é um
"diabinho" que por si só não tem som nenhum no começo de uma palavra.
Ele é mantido nessas palavras porque elas são "filhas de palavras latinas
que também se escreviam com H," e todo o mundo está acostumado, evitando
um "berreiro de protestos" se fossem escritas de outra forma.
07
– Qual a opinião da "velha Ortografia Etimológica" sobre as
simplificações e o que ela faz atualmente?
A velha
Ortografia Etimológica está "furiosíssima" e "não se conforma com
a simplificação das palavras". Ela se entrincheirou num bairro próximo,
onde não admite que ninguém toque na vestimenta das suas palavras, sustentando
as modas antigas.
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